HENRY, Michel. Encarnação: uma filosofia da carne. Tr. Carlos Nougué (modificada). São Paulo: É Realizações, 2014, p. 348-353
Segundo Heidegger, o fracasso das filosofias da intencionalidade não é imputável à própria intencionalidade — mais precisamente, à essência da fenomenalidade — na qual ela se desdobra. Heidegger tampouco conhece nenhuma espécie de fenomenalidade além desta: a autoexteriorização original da exterioridade pura que ele chamou de diferentes nomes, como, por exemplo, o horizonte ek-stático da temporalidade, na segunda parte de Sein und Zeit. O que Heidegger reprova em Husserl de maneira muito clara — por exemplo, no último seminário de Zähringen — é a inserção da intencionalidade numa “consciência” ou “subjetividade” e a manutenção, graças a esses conceitos inadequados, de uma “interioridade” de que já não será possível evadir-se verdadeiramente a fim de encontrar o Objeto original em si mesmo e tal como é, de fazer-lhe justiça em seu modo de se mostrar a nós na iluminação do Ser. É verdade que em Husserl, no caso da experiência do outro que nos interessa aqui, o outro [348] se envolve nesse gênero de interioridade próprio da consciência do pensamento clássico, de maneira que só com seu corpo aparecendo no mundo (ainda que no mundo reduzido de sua “esfera de pertença”) se dá a uma percepção efetiva, enquanto sua vida própria nos escapa, nunca sendo senão “apresentada” com esse corpo na forma de uma significação intencional e, como tal, irreal.1
Descartando os conceitos de “consciência” e de “subjetividade”, erradicando definitivamente toda forma de “interioridade”, o Dasein heideggeriano — que já não é mais que “ser no mundo” (In-der-Welt-sein) — fornece ao problema da experiência do outro uma solução muito buscada. O Da-sein — o fato de ser-aí — é, por si mesmo, um “ser-com” e, desse modo, um ser-aí com os outros. O Dasein já não é, pois, “ser-com” porque, abrindo-nos ao mundo, ele nos abriria aos outros e, ao mesmo tempo, a tudo o que se mostra no mundo, na mesma imediação, sem que seja necessário sair de uma esfera individual qualquer na qual estaríamos inicialmente encerrados. Não é porque, de fato, estamos com alguém, ou com muitos, que somos esse “ser-com”. Estejamos sós ou com outros, o “ser-com” precede sempre. A solidão, por exemplo, só é possível sobre o fundo desse “ser-com”, como modalidade privativa deste. Jamais poderíamos sentir-nos sós se o outro não viesse a nos faltar, e jamais ele poderia faltar-nos se nós não estivéssemos primitivamente com ele.
Essas análises admiráveis são conhecidas. Todas essas modalidades de nossa experiência de outro — as de sua presença ou as de sua ausência — supõem, com efeito, esse antecedente do “ser-com” sem o qual nenhuma delas seria possível. Mas é a possibilidade desse próprio antecedente, do “ser-com”enquanto tal, que deve ser estabelecida. Podemos lê-la no próprio Dosei« e como idêntica a ele? Se olharmos com mais atenção o modo como Heidegger procede para remontar a essa última condição da experiência do outro, é forçoso reconhecer [349] que não é uma análise imanente do próprio Dasein que abre a via para o “ser-com”: são, exatamente, o mundo e, mais ainda, os entes que se mostram nele, os entes “intramundanos”, que servem de ponto de partida. É porque esses entes não são puros objetos, mas “instrumentos”, porque trazem inevitavelmente em si, como constitutivo de seu ser, uma relação com o outro, que esta funciona como um dado primeiro sem o qual nenhum “instrumento” existe. E assim que, se vejo um barco ancorado na margem, ele remete a um familiar que o utiliza para suas excursões — “mas, mesmo enquanto barco desconhecido, ele manifesta outro”. É assim que, no próprio conteúdo do mundo — conteúdo constituído por um contexto de “instrumentos ‘ao alcance da mão’”-, o outro está presente como utilizador ou produtor do instrumento — mas não como se o instrumento preexistisse em si a outro — seu utilizador: o instrumento implica em si e, assim, mostra em si outro como preexistindo-o, ainda que este último não seja aí. O outro, algum outro, isto é, um Dasein, é, então, ele próprio presente a priori no mundo dos instrumentos, “ele também é aí e aí com”. De maneira que, como o declara Heidegger com muita força, “se se quiser identificar o mundo em geral com o ente intramundano, será forçoso dizer que o ‘mundo’ também é Dasein”.2 Essa onipresença tanto dos outros como das coisas do mundo não é o “ser-com” como tal, o qual regula nossa abertura ao mundo e se identifica, assim, com o Dasein?
Sucede, porém, que, segundo o próprio Heidegger, o mundo não se identifica de modo algum com o ente intramundano; difere dele, ao contrário, a ponto de ser nessa Diferença que consiste tal manifestação do ente que é o mundo mesmo. O mundo desvela o ente, mas, como se viu, não o cria, sendo assim incapaz de dar conta dele em sua diversidade infinita. O instrumento intramundano, remetendo a um utilizador ou a um produtor, está longe de mostrar em si um “outro” — e, assim, nosso estar primitivo com o outro: é somente esse “ser-com” primitivo que torna possível algo como um “instrumento” e esse contexto de instrumentos que constitui o conteúdo ôntico do mundo. Não se pode, portanto, ler o “ser-com” num ente que não possa, ele próprio, ser reconhecido como instrumento senão sobre o fundo do “ser-com”. A explicação heideggeriana gira em círculo. Mas ela não gira em círculo senão porque é incapaz de compreender o “ser-com” legitimando, de alguma maneira, a significação que lhe dá.
Múltiplas dificuldades estão aqui ocultas. Em uma fenomenologia, compreender o “ser-com” quer dizer elucidar o modo de manifestação que lhe é próprio — o que, por sua vez, pode querer dizer duas coisas: ou elucidar o modo de manifestação em que o “ser-com” se dá a nós; ou considerar que o “ser-com” constitui seu modo de manifestação enquanto tal e, muito mais, todo e qualquer modo de manifestação em geral. São essas duas significações que Heidegger lhe confere. Tal é, com efeito, o alcance da afirmação reiterada segundo a qual o Dasein (o fato de ser aí enquanto “ser no mundo”) e o Mitsein (o “ser-com”) não constituem senão algo uno. Disso ressalta claramente que o “ser-com” encontra sua possibilidade transcendental enquanto última possibilidade fenomenológica na abertura ao mundo como tal. Permanece aberta a questão da realidade com a qual somos postos em relação com essa abertura. Que se trate de outra realidade em geral, podemos pensá-lo, se é verdade que a exterioridade pura significa uma alteridade pura. Mas qual é o conteúdo dessa alteridade pura? Ou se trata do horizonte do mundo puro — o qual ainda não tem nenhum conteúdo por si mesmo, não sendo senão uma forma vazia onde ainda não há nem barco nem utilizador do barco — não há nenhum outro no sentido de alguém outro, de outro “eu”, tal qual o meu. Se o “ser-com” deve significar um “ser-com outrem”, não se pode fazer sair este último de uma cartola. Tal é o duplo sofisma de Heidegger quando crê ler outrem na totalidade racional dos instrumentos que formam o conteúdo do mundo, ao passo que não há instrumento senão se outrem (não o “ser-com” em geral) se encontra doravante [351] pressuposto e, por outro lado, o “ser-com” enquanto abertura ao mundo jamais explica nada de seu conteúdo, nem esse sistema instrumental relacional em que se considera que outrem se mostra nele. O círculo em que se encontra constantemente pressuposto isso de que se pretende dar conta é dissimulado por uma última equação que é evidente para Heidegger: o outro, no sentido de outrem, é outro Dasein, outro “ser no mundo”. Desse modo, o “ser no mundo” se encontra em todas as partes, tanto no “ser-com” quanto nesse com quem nós estamos em relação no “ser-com”: outrem que não é ele mesmo senão “ser no mundo”.
É preciso, pois, interrogar novamente e sem rodeios a possibilidade, para o “ser no mundo”, de ser um “ser-com” enquanto “ser-com o outro” — já não sendo o outro um outro qualquer, nem, menos ainda, a alteridade como tal, mas outrem: outro que é o que eu próprio sou, outro eu. Ao longo de Sein und Zeit corre uma afirmação que não é formulada senão en passant, como evidente ela também: “Das Dasein ist je-meines” (“O Dasein é sempre meu”). Ser meu quer dizer pertencer a mim, o que pressupõe: 1) um eu; 2) que esse eu é o meu, é o que eu sou — ou, ainda, que este que eu sou é um eu; 3) aquele precisamente que eu sou e nenhum outro, nenhum outro eu, o qual apresenta, aliás, enquanto eu, todos os caracteres que são os de meu próprio eu. Mas, como o mostramos longamente, algo como um “eu” pressupõe, a cada vez, uma Ipseidade original, um “experimentar-se a si mesmo” em que consiste todo Si concebível e que não advém a si senão na vinda a si mesma da vida em sua autorrevelação patética — jamais na exterioridade de uma Ek-stase. É mesmo um problema saber se em tal exterioridade uma “relação” ainda é possível. Não foi o próprio Heidegger quem nos lembrou que, no mundo, “a mesa não toca a parede”? O que não é fato da mesa não é privilégio do Dasein: essa possibilidade fenomenológica primordial de uma “relação com” como tal? Mas tocar, como a fenomenologia do “eu posso” o estabeleceu, supõe o “mover-se em si mesmo” do movimento de tocar, o Si imanente a esse movimento e [352] oculto nele, Si sem o qual nenhum movimento de nenhuma espécie seria possível e que o processo de exteriorização da exterioridade é incapaz de fundar.
(MH2000)
- Sobre isso, cf. nosso trabalho Phénoménologie Materielle. Paris, PUF, 1990, III, 1.[
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- Sein und Zeit, op. eit., p. 118.[
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