Henry (2009:61-63) – sentir

Rodrigo Vieira Marques

O que significa sentir? Na proposição “sentimus nos videre” – equivalente a videre videor –, sentir fará referência ao mesmo poder que aquele no seio do qual se desenvolve o ver? Em suma, ver é, pois, um modo de sentir da mesma maneira que ouvir ou tocar e, como tal, é o que é próprio deles. Descartes aceitaria a tese heideggeriana segundo a qual a visão e a audição são possíveis apenas sobre o fundo neles do Dasein distanciador. No próprio cartesianismo, a visão sensível não é estranha a um ver transcendental, mas antes o pressupõe. Se a percepção dos homens que passam na rua com seus chapéus implica o conhecimento da ideia de homem, isto é, de uma substância pensante, a qual unicamente faz com que essas aparências que se movem sejam as de seres humanos, essa própria ideia tem um aspecto, é na ek-stasis que a inteligência pura a descobre, assim como ela descobre ali o conjunto de seus conteúdos específicos que são as ideias. Inteligência, sentido, imaginação, têm uma condição comum. Ora, sentir em geral não será ver, na medida em que o sentido designa a afecção como um ser estranho e pressupõe, a esse título, a ek-stasis da diferença onde o ser se dá como outro na alteridade?

Três teses cartesianas tornam impossível toda redução ao videre do sentir imanente ao pensamento. A primeira, já exposta, mostra que a certeza do começo não reside no ver enganador. A segunda, igualmente decisiva, postula que a alma não pode ser sentida. Não é a simples sensorialidade do sentir, o fato, seguramente, de que a alma não pode ser nem sentida, nem tocada, nem vista, que se encontra aqui excluída. A problemática radical instituída pelo cartesianismo do começo se move inteiramente no interior de uma atitude de redução – é isso justamente o que faz a sua radicalidade: “eu adverti expressamente que não se tratava aqui da visão ou do tocar que se fazem por intermédio destes órgãos corporais, mas unicamente do pensamento de ver e de tocar”. O “conhecimento da alma”, a saber, o aparecer originário no qual o próprio pensamento se sente de modo imediato e faz a prova de si [s’éprouve] no videor que lhe é consubstancial –, porquanto traga em si a ek-stasis do sentir –, furta-se a esse pensamento de ver e de (63) tocar, à ek-stasis e ao próprio sentir. O conceito cartesiano de “pensamento” postula essa imediação essencial. “Por pensamento, eu compreendo tudo o que está de tal modo em nós que dele somos imediatamente conscientes (ut ejus immediate conscii sumus)”. “Por pensamento, eu entendo tudo o que se faz em nós de tal modo que o apercebamos imediatamente por nós mesmos”.

Assim se desdobra, na problemática do começo e para que este se desvele, o conceito de sentir. Ao sentir que reina no ver, no ouvir, no tocar, mas também no entendimento, porquanto ele próprio é um ver – intueri –, ao ver transcendental em geral que habita todas essas determinações e encontra ele mesmo a sua essência na ek-stasis, opõe-se radicalmente o sentir primitivo do pensamento – o sentir do sentimus nos videre – a saber, o sentir a si mesmo que dá originariamente o pensamento a si mesmo e faz dele o que ele é, o originário aparecer a si do aparecer. O sentir a si mesmo, no qual reside a essência do pensamento, não é somente diferente do sentir que se apoia na ek-stasis, mas o primeiro exclui de si o segundo e é essa exclusão que formula o conceito de imediatidade. Mas a ek-stasis funda a exterioridade, ele é seu desenvolvimento em si. O pensamento – porquanto em seu sentir-se a si mesmo, exclui a exterioridade da ek-stasis –, essencializa-se como uma interioridade radical. As definições cartesianas do pensamento indicam essa interioridade consubstancial à sua essência e idêntica ao seu poder. O pensamento designa, conforme acabamos de ver, “o que está de tal modo em nós que somos dele imediatamente conscientes”, de tal maneira que é esse modo de estar em nós, esse modo de interioridade como expulsão de toda transcendência, que constitui propriamente, com a imediatidade que determina, a essência primeira da consciência, a revelação sob sua forma originária. Assim torna-se transparente a proposição enigmática e, todavia, decisiva pela qual Descartes remete toda mediação a “esta espécie de conhecimento interior (cognitione illa interna) que precede sempre o adquirido”1 e sobre a qual, com efeito, tudo se funda. Os textos fundamentais fazem referência a essa interioridade radical e muito pouco pensada, seja qual for o modo pelo qual é expressa, e isso cada vez que se trata de desvelar, em sua possibilidade última, a essência do aparecer como aparecer a si, essência apreendida no cogito como “pensamento” e, de modo mais cabal ainda, como “consciência”.

Original

  1. Réponses aux Sixièmes Objections, FA, II, p. 861 ; AT, VII, p. 422.[↩]
  2. Cf. Lettre à Mersenne, juillet 1641, FA, 11, p. 347 ; AT, iii, p. 394.[↩]
  3. Réponses aux Cinquièmes Objections, FA, 11, p. 803 ; AT, vii, p. 360.[↩]
  4. Raisons qui prouvent l’existence de Dieu…, FA, ii, p. 586 ; AT, ix, p. 124.[↩]
  5. Principes, 1, 9 ; FA, iii, p. 95 ; AT, ix, ii, p. 28.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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