Henry (2002b) – ato arque-fundador da ciência

nossa tradução

(…) Galileu realizou o que chamo enquanto fenomenólogo, o ato arque-fundador da ciência moderna e ao mesmo tempo o ato arque-fundador do mundo moderno. Este ato nasceu de uma decisão intelectual. Galileu estimou que é preciso conhecer o universo no qual vivemos, pois deste conhecimento procede a ética, nosso dever-ser e nosso dever-fazer. Mas este conhecimento do universo tem por condição essencial a rejeição de todas as outras formas de conhecimento, em particular aquelas originárias das qualidades sensíveis. Trata-se desde então de substituir o conhecimento sensível pelo conhecimento verdadeiro, a geometria, que é conhecimento das figuras dos corpos estendidos quer dizer situados no espaço. Fenomenologicamente estes dois conhecimentos apresentam, do ponto de vista de sua cientificidade e de sua racionalidade, uma oposição completa. O conhecimento sensível é variável de um indivíduo para outro de tal maneira que não pode engendrar a respeito da ciência senão proposições singulares, aleatórias, subjetivas e contingentes. O conhecimento geométrico suscita proposições racionais, verdadeiras. Assim a geometria é o modo exclusivo de conhecimento do universo material que se compõe de corpos estendidos.


Esta expressão matemática dos conhecimentos geométricos vai fundar a ciência moderna que jamais será nada além que a abordagem geométrico-matemática das partículas microfísicas. Todas as crises advirão doravante no interior deste horizonte imodificável. A própria crise da cultura, interpretada como uma crise do saber científico, se situa neste horizonte. Arrisco dizer que este horizonte do saber está circunscrito à abordagem físico-matemática da coisa material estendida no espaço — res extensa.


Estamos em condições de levantar duas questões: o que é a ética e o que é o ser humano? Estas questões são fundamentais. Com efeito, se se concebe a vida como a vida dos indivíduos vivos, ou ao contrário se se considera a vida como um sistema inerte, as consequências não são evidentemente as mesmas de um ponto de vista ético. A maior parte dos pesquisadores que estudam as ciências da matéria e as ciências ditas humanas querem aplicar as metodologias, as normas e os pressupostos do saber galileano. Ora, considero que não existe possibilidade para um fundamento da ética neste campo do saber físico-matemático do universo material. O estudo deste campo é certo perfeitamente legítimo na medida que ela se limita a este campo, mas é fortemente provável que as partículas microfísicas ou as moléculas não são habitadas de nenhum desejo, de nenhuma vontade de carreira, de reconhecimento social, de sede de poder, etc. Galileu e Descartes tinham razão de precisar que na matéria nada há que se assemelhe à sensibilidade.

Original

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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