Henry (2000:92-94) – Afetividade

Nougué

Em que consiste essa vinda a si que precede nela toda impressão concebível?

É a vinda a si da vida. Pois a vida não é nada além do que se experimenta a si mesmo sem diferir de si, de modo que essa experiência é uma experiência de si e não de outra coisa, uma autorreve-lação em sentido radical. Como se cumpre a revelação que está em curso nessa autorrevelação e a torna possível como tal — como uma autoafecção radicalmente imanente, exclusiva de toda hetero-afecção? A vida se experimenta a si mesma num páthos; é uma Afetividade originária e pura, uma Afetividade que nós chamamos transcendental porque é ela, com efeito, que torna possível o experimentar-se a si mesmo sem distância no sofrer inexorável e na passividade insuperável de uma paixão. E nessa Afetividade e como Afetividade que se cumpre a autorrevelação da vida. A Afetividade originária é a matéria fenomenológica da autorrevelação que constitui a essência da vida. Ela faz dessa matéria uma matéria impressionai, que jamais é uma matéria inerte, a identidade morta de uma coisa. É uma matéria impressionai que se experimentando a si mesma impressionalmente e não cessa de fazê-lo, uma autoimpressionalidade vivente. Essa autoimpressionalidade vivente é uma carne. É somente porque pertence a uma carne, porque traz em si essa autoimpressionalidade patética e vivente, que toda impressão concebível pode ser o que é, uma “impressão”, (92) essa matéria impressionai sofredora e fruidora em que se autoim-pressiona a si mesma.

O caráter afetivo, “impressionai” da impressão não é, portanto, nada de que nos devamos limitar a constatar a facticidade sua vinda não se sabe como, nem de onde, nem a quê: ele remete à sua possibilidade mais interior, à sua pertença a uma carne, à autorre-velação patética desta na vida. E aí está por que a impressão considerada em sua matéria tampouco é cega, aí está por que ela não tem de pedir ao fazer-ver da intencionalidade, à estrutura ek-stática do fluxo, que no-la mostre quando esta não pode senão aniquilá-la: porque, em sua própria impressionalidade, na matéria fenomeno-lógica pura de sua autoafecção, como matéria afetiva, ela é em si mesma, e inteiramente, revelação.

Perguntávamos, apoiados na tese de Husserl: não é verdade que toda impressão, assim que chega, desaparece? Cada uma de nossas impressões, tanto as mais fortes como as mais fracas, aquelas que, por assim dizer, não percebemos, e aquelas, ao contrário, cuja lembrança guardamos para sempre, cada um desses “instantes” aos quais quereríamos dizer, como Fausto em Goethe: “Para, tu és tão belo!”, todas essas epifanias efêmeras não deslizaram, com efeito, para um passado cada vez mais remoto, para desaparecer por fim no “inconsciente”? A vida ser breve não tem que ver com seus limites num tempo objetivo, mas diz respeito ao fato de que, com efeito, ela é um fluxo em que nenhuma impressão, feliz ou infeliz, permanece, no nada que a corrói a cada um de seus passos.

No apólogo intitulado A Cidade Mais Próxima, Kafka conta a história de um velho homem cuja casa é a última do vilarejo e que, na soleira da porta, vê passar aqueles que vão para a cidade vizinha. Se eles suspeitassem, pensa ele, como é breve a vida, nem sequer partiríam para a cidade mais próxima, sabendo que não têm tempo de chegar até ela. E essa irrealidade principiai do tempo — o fato de nenhuma realidade nunca se edificar nele — o que era expresso pela (93) intuição de Eckhart segundo a qual o que aconteceu ontem está tão longe de mim quanto o que aconteceu há milhares de anos.

Original

(MH2000)

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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