Henry (2000:7-9) – seres encarnados

Carlos Nougué

(…) O que caracteriza os seres encarnados é que possuem um corpo. O universo inteiro é composto de corpos, considerados desde muito tempo pelo sentido comum como por inúmeros filósofos assim como pela totalidades de cientistas, como corpos materiais. O corpo que pertence aos seres vivos é o mesmo corpo material que se ocupa a física quântica, a qual serve de suporte a estas outras ciências duras que são a química e a biologia? Que muitos assim pensem em nossa época, que é precisamente aquela da ciência, não impede que um abismo separe desde sempre os corpos materiais que povoam o universo e de outro lado, o corpo de um ser “encarnado” tal qual o homem.

(…) cada homem e cada mulher, a cada instante de sua existência faz a experiência imediata de seu próprio corpo, experimenta a pena que lhe causa a subida desta ruela em declive ou prazer de uma bebida fresca no verão, ou ainda uma brisa leve na face — enquanto sua relação ao corpo animal é de uma outra ordem. A ponto que certos pensadores, e não poucos, consideraram todos os seres vivos outros que o homem como espécies de computadores que nada compreendem do que fazem. Quanto a apreender o corpo dos homens desta maneira, como um computador ele também, mais elaborado e de uma “geração” mais avançada, este pensamento mais e mais difundido s choca com uma objeção maior.

É aqui se abre o abismo. Um corpo inerte semelhante àqueles que se encontra no universo material — ou ainda que se pode construir utilizando processos materiais retirados deste, organizando-os e combinando-os segundo leis da física —, um tal corpo não sente nem experiencia nada. Não sente nem experiencia ele mesmo, não se ama nem se deseja. Ainda menos sente ou experiencia, ama ou deseja qualquer das coisas que o cercam. Segundo uma nota profunda de Heidegger, a mesa não “toca” a parede contra a qual é posta. O próprio de um corpo como o nosso, ao contrário, é que ele sente cada objeto próximo dele; percebe cada uma de suas qualidades, vê as cores, entende os sons, respira um odor, mede com o pé a dureza de um chão, com a mão a doçura de uma almofada. Só sente tudo isso, as qualidades de todos estes objetos que compõem seu ambiente, só experiencia o mundo que o pressiona de toda parte, porque se experiencia a si mesmo, no esforço que realiza para subir uma ruela, na impressão de prazer na qual se resume o frescor da água ou do vento.

Esta diferença entre os dois corpos que distinguimos — o nosso que se experiencia a si mesmo ao mesmo tempo que sente o que o cerca por um lado, e um corpo inerte do universo por outro, que se trate de uma pedra sobre o caminho ou partículas microfísicas que a constituem —, nós a fixamos agora em uma terminologia apropriada. Chamaremos “carne” o primeiro, reservando o uso da palavra corpo ao segundo. Pois nossa carne nada mais é que isso que se experienciando, se sofrendo, se submetendo e se suportando a si mesma e assim desfrutando de si segundo as impressões sempre renascente, se encontra, por esta razão, suscetível de sentir o corpo, que lhe exterior, de tocá-lo tanto quanto ser tocada por ele. Isso portanto cujo corpo exterior, o corpo inerte do universo material, é por princípio incapaz.

Original

(MH2000)

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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