Henry (2000:§5) – fenomenalidade

Carlos Nougué

A grande descoberta da fenomenologia concernente à linguagem é o ter subordinado a análise desta última a um fundamento sem o qual ela já não está em condições de funcionar. Ora, tal subordinação é conforme à pressuposição da fenomenologia: é a subordinação dos fenômenos da linguagem à fenomenalidade pura. Uma vez que tal subordinação oblitera a especificidade dos fenômenos da linguagem, só ela nos situa diante de sua possibilidade mais originária. Esta se chama Logos.

Reconhecemos um dos dois termos a partir dos quais é construído o título “fenômeno-logia”. Na análise do § 7, phainomenon, o fenômeno, designava num primeiro momento o objeto da fenomenologia, e Logos seu método. Quando, num segundo momento, a fenomenalidade pura, a vinda à luz do dia na luz do mundo, foi substituída pelo (65) simples fenômeno — pelo que se mostra nessa luz — para definir o verdadeiro objeto da fenomenologia, sua “coisa mesma”, a identidade entre o objeto da fenomenologia e seu método se mostrou a nós. É a fenomenalidade do fenômeno, a luz em que ele se mostra o que conduz até ele, definindo assim o método por seguir para atingi-lo.

Mas essa redução do método ao objeto verdadeiro da fenomenologia concerne também à linguagem, se é verdade que não podemos falar de uma coisa qualquer sem que ela previamente se mostre a nós. Assim também tudo o que diremos dela e poderemos dizer dela, todas as prédicas que formularemos a seu respeito obedecem a essa condição incontornável. Tal é a intuição decisiva que surge no § 7: o Logos é a possibilidade última de toda linguagem, é a Palavra originária que fala em toda palavra. E isso na medida em que é identificado com a fenomenalidade pura sobre a qual repousa, com a qual não constitui senão algo uno. Fenomenalidade e Logos não dizem afinal de contas senão uma mesma coisa.

Como esquecer, todavia, no momento em que a linguagem entendida como Logos recebe sua possibilidade da fenomenalidade a ponto de se identificar com ela, a pressuposição que governa toda a análise heideggeriana? Fenomenalidade e Logos são compreendidos no sentido grego: o aparecer que um e outro designam é o do mundo. Mas é esse aparecer que interrogamos com respeito a seus traços principais. Depois de termos estabelecido como tal aparecer difere de tudo o que se mostra nele, constatamos sua impotência ontológica de fundo — sua incapacidade para pôr no ser aquilo que ele dá a aparecer. Ele descobre o ente, dizia Heidegger, mas não o cria. Ora, o “ente” designa a totalidade do que é, o conjunto das coisas cuja infinita diversidade compõe o conteúdo do mundo: é desse conteúdo, de sua realidade — com que desde sempre os homens têm relação — que se trata. O que seria o aparecer puro do mundo independentemente desse conteúdo, o que seria esse puro horizonte de visibilização do Ek-stase do tempo se jamais nada se tornasse visível nele? Um tempo puro não pode ser percebido, dizia Kant. (66) Em todo estado de causa, uma formidável dificuldade subsiste: se o aparecer do mundo é incapaz de pôr a realidade daquilo a que ele dá o aparecer, de onde vem ela?

É essa indigência do aparecer do mundo, incapaz de trazer à existência qualquer realidade, o que a linguagem põe em evidência – essa linguagem que encontra sua possibilidade no Logos e no phainesthai gregos: no aparecer do mundo! Se toda linguagem concebível — aquela, em todo caso — deve fazer ver tanto o que ela fala como o que ela diz dele, o que há de espantoso então em que ela reproduza a carência do aparecer que torna possível todo fazer-ver?

Do mesmo modo, ela repete sua estrutura. É próprio da linguagem, com efeito — de uma linguagem desse gênero –, que se refira a um referente exterior a ela cuja realidade não pode fundar. Semelhante defeito permanece oculto no caso da linguagem cotidiana, que em geral se limita a acompanhar a percepção de objetos que temos sob os olhos. “Faça sair esse cão que não para de latir!” Essa maneira que a linguagem corrente tem de acompanhar a realidade e seguir no mesmo passo dela oculta o abismo que as separa.

Original

(MH2000)

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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