Eis uma das afirmações mais essenciais do cristianismo: somente a Verdade que é a sua pode dar testemunho de si mesma. Somente ela pode atestar-se a si mesma – revelar-se a si mesma, de si mesma e por si mesma. Esta única Verdade que tem o poder de se revelar a si mesma é a de Deus. E Deus mesmo que se revela, ou o Cristo enquanto é Deus. Mais radicalmente, a essência divina consiste na própria Revelação como autorrevelação, como revelação de si em si a partir de si. Somente aquele a quem esta revelação é feita pode entrar nela, em sua verdade absoluta. Somente aquele que entra nesta verdade absoluta pode, esclarecido por ela, ouvir o que é dito no Evangelho e que não é precisamente senão esta Verdade absoluta que, revelando-se a si mesma, se revela a ele. Que a Verdade absoluta, revelando-se a si mesma, se revele também àquele a quem é dado ouvi-la, é o que faz daquele que a ouve filho desta verdade, FILHO DE DEUS – segundo a tese de que ela é constitutiva do conteúdo essencial do cristianismo. Mas a verdade desta última tese não é dada a nenhum texto para promovê-la ou ouvi-la. MHESV INTRODUÇÃO
A marcha da análise deve, pois, prosseguir como se segue: 1º A autogeração da Vida absoluta como geração do Primeiro Vivente – do “Filho primogênito e único” – que chamaremos, por razões que serão explicadas, o Arqui-Filho transcendental. 2º A autogeração da Vida absoluta como geração do homem transcendental – ou seja, a geração do homem como “FILHO DE DEUS”. Nesses dois casos trata-se, com o cristianismo, de uma fenomenologia transcendental cujos conceitos centrais são o de Pai e o de Filho. O conceito cristão do nascimento transcendental subverte nossa ideia habitual de nascimento, assim como o conceito cristão de Pai e o de Filho transformam as representações correntes de “pai” e de “filho”. Essa é a razão por que introduzimos o conceito filosófico de “transcendental”, que não designa as coisas tal como as vemos – um nascimento, um pai, um filho –, mas remonta à sua possibilidade mais interior, à sua essência. Ora, a possibilidade de nascimento, de algo como um pai ou um filho, não se vê. E isso porque esta possibilidade reside precisamente na Vida, que também não se vê. E por isso que chamamos igualmente a esta Vida vida transcendental. A vida “transcendental” não é uma ficção inventada pela filosofia: ela designa a única vida que existe. Quanto à vida natural que cremos ver em torno de nós no mundo, não existe, não existe mais que a suposta vida “biológica”. Essa é a razão por que não há pai nem filho naturais no sentido de um pai ou de um filho pertencentes à “natureza” e explicáveis a partir dela. “A ninguém na terra chameis ‘Pai’, pois só tendes o Pai Celeste” (Mateus 23, 9). Mas estas já são teses radicais e desconcertantes do cristianismo: aquelas que se trata de compreender. [77] MHESV III
A fenomenologia de Cristo concerne à questão do aparecimento de Cristo. Como este se revestiu de múltiplos aspectos, a própria questão recebe múltiplas formulações, não podendo limitar-se a um de seus aparecimentos, como, por exemplo, o primeiro; deve ter diante dos olhos todas as outras também. A fenomenologia de Cristo encontra então interrogações deste gênero: onde nasceu Cristo? Quem eram seus pais? Donde vinham? Cristo tinha irmãos? Etc. Acham-se nos Evangelhos diversas informações a este respeito e, para dizer a verdade, muito mais do que simples indicações. A genealogia de Jesus constitui o longo prólogo do Evangelho de Mateus: “Livro de origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão: Abraão gerou Isaac, Isaac gerou Jacó, Jacó gerou Judá e seus irmãos […] Eleazar gerou Matã, Matã gerou Jacó, Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus chamado Cristo” (1,1-16). Esta genealogia de Jesus é retomada por Lucas: “Ao iniciar o ministério, Jesus tinha mais ou menos trinta anos e era, conforme se supunha, filho de José, filho de Eli, filho de Matat […], filho de Enós, filho de Set, filho de Adão, FILHO DE DEUS (3,23-38). MHESV V
O caráter singular desta genealogia humana de Cristo não transparece menos em sua retomada por Lucas, e isso em duas passagens, a primeira vez em forma de retificação anódina: “… Ele era, conforme se supunha, filho de José…”; a segunda vez na incrível enumeração que, depois de ter designado Cainã como filho de Enós, Enós como filho de Set, Set como filho de Adão, declara subitamente este último FILHO DE DEUS, como se se pudesse pôr na mesma linha essas duas filiações, como se fosse a mesma coisa efetivamente ser filho de um homem ou de um deus – como se, mais precisamente, este último só interviesse especulativamente de algum modo quando, não se apresentando nenhum outro homem para ser o pai do primeiro, esse papel não pudesse ser confiado senão a um suposto Deus. MHESV V
Mas, se Adão não pode ser dito FILHO DE DEUS do mesmo modo como Set é dito seu próprio filho – o filho de Adão –, então é preciso perguntar com todo o rigor em que consiste a diferença entre estas duas condições: ser filho de um homem, assim como Set o é de Adão, ou FILHO DE DEUS, como é o caso de Adão. Formularemos a resposta nestes termos: a diferença essencial entre a condição que consiste em ser filho de um homem e a que consiste em ser FILHO DE DEUS reside na Verdade. Entendamos: no gênero de Verdade de que se trata a cada vez. Na verdade do mundo todo homem é filho de um homem, e portanto também de uma mulher. Na Verdade da Vida lodo homem é filho da Vida, isto é, de Deus mesmo. Dessas duas verdades para abordar o nascimento, isto é, a possibilidade para um vivente de vir [104] à vida, uma sem dúvida é demasiada. Pois Set não pode ser o filho de Adão se Adão só pode ser FILHO DE DEUS. Inversamente, Adão não tem necessidade de ser o FILHO DE DEUS se Set pode ser seu próprio filho. E preciso então escolher e dizer sem equívoco de quem o homem pode ser filho, de outro homem ou somente de Deus. MHESV V
O enfrentamento a propósito de Abraão, enfrentamento que vai acarretar a condenação à morte de Cristo, é ainda mais titânico. Dizendo-se filhos de Abraão porque, fiéis a este, não adoram nenhum [110] ídolo mas somente a Deus, os judeus se consideram ao mesmo tempo Filhos de Deus: “Não nascemos da prostituição; temos só um pai: Deus” (João 8,41). Ser filho de Abraão quer dizer aqui com-portar-se como fiel discípulo do pai da lei, recusar-se a adorar tudo o que não é deus e assim considerar este, o Deus de Abraão, como o único Deus. Mas essa atitude espiritual que é a deles permanece a seus olhos a dos seres humanos tomados na genealogia humana e mundana de que fala Mateus e que reconduz a Adão. É porque Cristo se dá como FILHO DE DEUS em outro sentido completamente diferente, no sentido do Arqui-Filho consubstanciai ao Pai, que o conflito explode. Por um lado, Cristo declara sua obra superior à de Abraão, o fundador da fé, e isso pelo fato de a obra de Cristo não ser separável de sua condição, que é a autorrevelação de Deus mesmo: “… vos falei a verdade que ouvi de Deus. Isso Abraão não o fez…” (João 8,37). Muito mais, esta Verdade de Deus, aprendida junto a ele, Cristo a revelou ao próprio Abraão, que se viu transformado por ela: “Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu Dia. Ele o viu e se se encheu de alegria” (João 8,56). E é aqui que tudo se faz em pedaços e voam as pedras, quando se descobre a diferença radical entre a condição mundana de filho – filho de Abraão, certamente, FILHO DE DEUS, mas na verdade do mundo, como propriedade e qualidade de homens saídos de uma linhagem humana – e a condição do Arqui-Filho gerado na autorrevelação da Vida e como idêntico a esta. “… Então eles apanharam pedras…” (João 8,59). MHESV V
A afirmação central do cristianismo no que concerne ao homem é, pois, que ele é FILHO DE DEUS. Esta definição rompe de modo decisivo com as representações habituais do homem, seja a do senso comum, a da filosofia, a da ciência, isto é, da ciência moderna, mas também com a maioria das definições religiosas. Para o senso comum, o homem é um habitante deste mundo, um ser vivo apesar de provido de faculdades superiores às dos outros animais. Donde o conceito do senso comum encontrar o conceito filosófico que vê no homem um animal dotado de razão, ou seja, capaz de formar significações e assim se exprimir em linguagem articulada ou conceitual. Para a ciência moderna, saída da revolução galileana, o que é próprio do homem se encontra grandemente oculto, como tivemos ocasião de observar. O que subsiste apesar de tudo de comum entre as teses científicas que tratam o homem como parte do universo material, reduzindo-o em última instância a elementos físico-químicos, e as concepções a que acabamos de fazer alusão é a pertença ao mundo. Ora, essa pertença ao mundo não é eliminada no caso das concepções religiosas enquanto ao menos estas compreendam o homem a partir do conceito de criação. Criação quer dizer criação do mundo e, na medida em que o próprio homem é criado, em que é ens creatum, ele pertence também a este mundo. Isso significa notadamente, do ponto de vista teológico, que ele se encontra com respeito a Deus na mesma situação que o mundo em geral, a saber, algo de exterior à essência divina, diferente dela, separado dela, de maneira que o problema religioso consiste principalmente em saber como este homem afastado de Deus será capaz de encontrá-lo e, desse modo, salvar-se. [137] MHESV VI
Assim a concepção do homem que emerge com o cristianismo inverte completamente a concepção tradicional e o conjunto de suas variantes vindouras. Ela não a inverte no sentido de pôr no alto o que está embaixo e vice-versa. Não o inverte ao modo de uma inversão axiológica procedente de uma nova avaliação, que privilegiasse o sensível, por exemplo, à custa da inteligível, ou inversamente. Para dizê-lo em passant, a antítese entre o sensível e o inteligível e a valorização ou condenação de um ou de outro são totalmente estranhas ao cristianismo, bem como à ética que ele seria suscetível de professar com respeito a eles. E isso porque nem o sensível nem o inteligível pertencem à essência do homem tal como a compreende o cristianismo. E não pertencem a esta essência, porque sua maneira de se mostrar a um e a outro decorre da maneira de se mostrar do mundo e é tomada dela. A inversão da concepção do homem a que o cristianismo procedeu de uma vez por todas não consiste na inversão dos elementos incluídos na concepção reinante: consiste em sua exclusão. E outra essência fenomenológica a que define o homem fenomenológico transcendental cristão, outra verdade. Outro modo de fenomenalização da fenomenalidade constitui sua realidade substancial, a carne fenomenológica que é sua carne. A essa substituição radical de um modo de verdade por outro procede o cristianismo ao pôr o homem como filho. Desde esse momento, é a partir de seu nascimento na Vida que o homem deve ser compreendido, e pois a partir da Vida mesma e da Verdade que lhe é própria. Sucede porém que a Vida fenomenológica absoluta a partir da qual o homem pode e deve ser compreendido, na medida em que é filho, é a Vida absoluta de Deus mesmo. Dizer que o homem é filho [141] na medida em que não há filho senão na Vida e que esta só e única Vida é a de Deus mesmo é dizer também que ele é FILHO DE DEUS. A expressão “FILHO DE DEUS” é tautológica. MHESV VI
Compreender o homem a partir de Cristo, compreendido ele próprio a partir de Deus, repousa por sua vez na intuição decisiva de uma fenomenologia radical da Vida, que é precisamente também a do cristianismo: a saber, que a Vida tem o mesmo sentido para Deus, para Cristo e para o homem, e isso porque há uma só e mesma essência da Vida e, mais radicalmente, uma só e única Vida. Esta Vida que se autogera a si mesma em Deus e que, em sua autogeração, gera em si o Arqui-Filho transcendental como a Ipseidade essencial em que [145] esta autogeração se cumpre é a Vida de que o próprio homem tem seu nascimento transcendental, e isso precisamente enquanto ele é Vida e definido explicitamente como tal no cristianismo, Filho desta Vida única e absoluta e, assim, FILHO DE DEUS. A expressão tautológica “FILHO DE DEUS” – uma vez que só há filho na Vida e, assim, só em Deus – esconde a verdade abissal de que a essência do homem, o que o torna possível como o que ele é realmente, não é precisamente o homem nem, muito menos, a humanitas no sentido em que os entendemos: é a essência da vida divina – a que faz dele um vivente, e ela somente. MHESV VI
A interpretação do homem como “FILHO DE DEUS”, mais precisamente como “Filho no Filho”, é carregada de implicações múltiplas. Antes de buscar a elucidação destas, uma questão, todavia, parece não poder ser diferida. Se os homens são esses Filhos de Deus em Cristo, como explicar que tão pequeno número deles o saiba e recorde? Se eles trazem em si esta Vida divina e sua imensidão, porque não há outra Vida além daquela e por que os viventes não têm de ceder senão sob sua profusão, como compreender que eles sejam [186] tão infelizes? Porque, afinal de contas, não são as tribulações que vêm deste mundo o que os angustia. É consigo, na realidade, que eles estão tão descontentes. É sua própria incapacidade de realizar seus desejos e seus projetos, são suas hesitações, sua fraqueza, sua falta de coragem o que provoca no fundo deles mesmos o mal-estar que os acompanha ao longo de toda a sua lúgubre existência. Se eles não cessam de atribuir às circunstâncias ou aos outros a causa de seu fracasso, não o fazem senão para enganar-se a si mesmos e esquecer que tal causa está neles. Como diz Kierkegaard, não é por não se ter tornado César que alguém se desespera, mas por esse eu que não se tornou César. Mas como desesperar esse eu se ele não é nada menos que a vinda a nós de Deus em Cristo? Tal desespero só é possível se, de um modo ou de outro, o homem esqueceu o esplendor de sua condição inicial, de sua condição de FILHO DE DEUS – de sua condição de “Filho no Filho”. E esse esquecimento que é preciso tentar compreender. [187] MHESV VII
Nascer de Deus e guardá-lo em si sem se separar dele e, assim, sem cair em pecado, esta significação precisa de certo modo sobredeterminada do conceito de FILHO DE DEUS se encontra em diversas passagens essenciais do Novo Testamento, as que tratam da salvação do homem. Esta salvação reside precisamente na condição de FILHO DE DEUS no sentido que acaba de ser dito, sentido que aparece de modo repetitivo nos textos joaninos: “Todo aquele que pratica a justiça nasceu de Deus” (1 João 2,29); “Todo aquele que ama nasceu de Deus” (ibidem, 4,7). Trazer Deus em si é também, segundo uma série de implicações que foram expostas, crer que Jesus é o Cristo e que Cristo é consubstanciai ao Pai. Trazer Deus em si dessas diversas maneiras, isso é pois ser FILHO DE DEUS no sentido forte e sobredeterminado que elucidamos: “Todo o que crê que Jesus é o Cristo nasceu de Deus” (ibidem, 5,1); “Todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio na carne é de Deus” (ibidem, 4,2). Trazer Deus em si, e isso sendo seu Filho nesse sentido novo, é nisso que consiste a salvação, segundo as declarações fulgurantes do Apocalipse: “Eles andarão comigo vestidos de branco”; “Eu jamais apagarei seu nome do livro de vida […] confessarei seu nome diante de meu pai”; “O cordeiro […] conduzindo-os até às fontes de água da vida” (respectivamente, 3,4; 3,5; 7,17). E que essa filiação provenha de algum devir radical, da transformação daquele que, em sua identificação com a Vida, recebe dela sua salvação, é o que é dito de modo não menos abrupto: “Eis que faço novas todas as coisas. […] Elas se realizaram! Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim; e a quem tem sede eu darei gratuitamente da fonte da água viva. O vencedor receberá esta herança, e éu serei seu Deus e ele será meu filho” (21,5-7; grifo nosso). MHESV IX
A sobredeterminação do conceito de Filho enquanto FILHO DE DEUS que tem parte na fonte da vida, gerado, pois, nesse lugar onde a vida se autogera a si mesma, está ligada de maneira evidente ao [229] conceito forte da autoafecção segundo o qual a vida se engendra a si mesma, de modo que é a Vida verdadeira e eterna. Ora, esta sobredeterminação do conceito forte de Filho, compreendido em sua conexão com o conceito forte da autoafecção, que é o da Vida absoluta, não deixará na indeterminação um conceito fraco de Filho, o de que a vida não tem a capacidade de se ter de si própria na Vida? Qual é então a condição daquele que vive de sua própria vida, que não bebe diretamente na fonte de vida, que não recebeu o quinhão do vencedor, aquele cujo nome não está inscrito no Livro da Vida – aquele de quem Deus não disse: “Eu serei teu Deus e ele será meu filho”? A questão implicitamente posta por ele, o texto do Apocalipse responde com a mesma brutalidade: “Tens fama de estar vivo, mas estás morto” (3,1). Longe de atribuir esse gênero de declaração a algum exagero de visionário, a construção sistemática de Paulo o inclui em sua temática: “… Vós estáveis mortos pelas vossas faltas e pela incircuncisão de vossa carne…” (Colossenses 2,13). A questão posta tanto por Paulo quanto pelo Apocalipse torna-se então o incontornável paradoxo em torno do qual gravita uma constelação de problemas: como é possível viver como quer que seja se estamos mortos? Como, nesse caso, a pura aparência, graças à qual ao menos passamos por viventes, é ainda concebível? Inversamente, se estamos realmente mortos, como reencontrar e beber novamente a água da fonte da vida em que se saciam os cervos? Como descobrir subitamente nosso nome no Livro? MHESV IX
Duas teses decisivas afloram aqui. Por um lado, a ideia de que o devir espiritual do Filho em sua condição verdadeira de FILHO DE DEUS de que fala o Apocalipse, em sua condição de “filho da promessa” prometido à Vida incorruptível, só é possível sobre o fundo desta condição prévia de vivente nascido da Vida no próprio movimento pelo qual a vida vem a si. É enquanto Filho, e porque é tal, que o Filho perdido pode reencontrar uma condição que era originariamente sua e que, por esta razão, ele não faz precisamente senão reencontrar. O caráter prévio da condição de vivente não significa somente que o vivente precede enquanto tal a todo devir que possa lhe advir. Muito mais que isso, esta condição de vivente remete, ela mesma, a seu próprio antecedente, ao Antes-absoluto da Vida, da qual o vivente recebe sua qualidade de vivente. O devir suscetível de lhe advir pressupõe no vivente este Antes-absoluto a que este devir, ao fim e ao cabo, não faz senão voltar. É a esta pressuposição radical da Vida absoluta inclusa na condição de vivente e que a torna possível que remete o conceito cristão de Filho. É em razão desta pressuposição absoluta sempre inclusa nele que o Filho pode e deve reencontrar a condição que é sua. Esta é ainda uma intuição decisiva de João: “E, se sabemos que ele nos ouve em tudo o que lhe pedimos, sabemos que possuímos o que havíamos pedido” (1 João 5,15). Assim, a volta do filho pródigo à casa do Pai, o retorno do filho à sua condição de Filho, torna-se possível por sua própria condição de Filho. Voltar à Vida, re-nascer, é isso o que é dado a título de possibilidade principiai sempre presente àquele que nasceu da Vida. Um re-nascimento está assim implicado em todo nascimento, e isso porque a vida nova a que se trata de chegar, a segunda vida, é a primeira, a Vida mais antiga, a que vivia no Princípio e que foi dada em seu nascimento transcendental a todo vivente: porque, fora dela e sem ela, nenhum vivente nem nenhuma vida seriam possíveis. [232] MHESV IX
Mas, se, segundo seu nascimento transcendental na Vida absoluta, o ego, tanto o outro ego quanto o meu, é Filho desta Vida, é FILHO DE DEUS, de modo que essa condição defina sua essência e consequentemente todas as suas determinações essenciais, então é o conjunto de seus caracteres empíricos e mundanos que são obstados de uma vez. Notadamente, tudo o que decorre de uma genealogia natural. É aqui que uma observação apresentada ao longo de nossas pesquisas precedentes se reveste de relevo singular. O que Cristo recusou para si mesmo, a saber, a ideia de uma genealogia natural precisamente, a ideia de que um homem é filho de um homem e de uma mulher, que ele tem pais “segundo a carne” – tudo isso se encontra afastado para o próprio homem. O homem que, por ser um vivente na Vida, por ser Filho desta, já não tem outro Pai além d’Aquele que está “no Céu”. Por isso todos os seus caracteres, decorrendo desta essência divina e invisível da vida, já não têm, portanto, nada que fazer com o que decorre do mundo e da verdade que lhe é própria. E isso vale doravante tanto para o outro quanto para mim. O outro não é nada além do que vemos dele no mundo e que cremos que [347] ele é. É a declaração radical e estupefaciente de Paulo aos Gálatas: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher” (3,28). MHESV XIII