Henry (1988:13-16) – interior — exterior

Tradução

Lendo-se com alguma atenção as obras teóricas de Kandinsky, percebem-se dois termos recorrentes e centrais na análise: “interior” e “exterior”. O segundo grande escrito, Punkt und Linie zu Fläche (Ponto e Linha sobre Plano), de 1926, época da Bauhaus, começa assim:

“Todo fenômeno pode ser vivido de duas maneiras, não arbitrariamente ligadas aos fenômenos, mas decorrentes da natureza dos fenômenos, de duas de suas propriedades:

Exterior-Interior.”

Essa declaração liminar deve ser imediatamente esclarecida, pois comporta o destino da pintura abstrata; ou seja, consolidaremos progressivamente o destino da pintura e, mais ainda, o destino de qualquer arte concebível. Que todo fenômeno possa ser vivido de duas maneiras, exteriormente e interiormente, experimentamos constantemente com um fenômeno que justamente nunca nos abandona: nosso corpo. Pois, de um lado, vivo interiormente esse corpo, coincidindo com ele e com o exercício de cada um de seus poderes: eu vejo, ouço, cheiro, movo mãos e olhos, tenho fome, frio, de tal modo que eu sou esse ver, esse ouvir, esse cheirar, esse movimento, essa fome, que eu me precipito inteiro em sua pura subjetividade, a ponto de não poder me diferenciar deles – fome, sofrimento, etc. – em nada. De outro lado, e ao mesmo tempo, eu vivo exteriormente esse mesmo corpo por ser capaz de vê-lo, tocá-lo, representá-lo a mim mesmo como objeto, realidade exterior próxima aos outros objetos.

Ora, essa propriedade extraordinária pela qual meu corpo se oferece a mim de duas maneiras diferentes, “interiormente” ao se identificar a meu ser mais profundo, “exteriormente” enquanto se pro-põe também a mim ao modo de ob-jeto, Kandinsky estende a todos os fenômenos. É o que aparece a nós, justamente chamado fenômeno, que permite essa distinção das “duas maneiras”. Essas duas maneiras (diese zwei Arten) não concernem o conteúdo do fenômeno, mas precisamente a maneira pela qual esse conteúdo se mostra a nós, aparece. As “duas maneiras” são dois modos de aparecer. São o que Kandinsky chama “Exterior” e “Interior”. O Exterior não designa imediatamente algo exterior, mas a maneira pela qual esse algo se manifesta a nós. Essa maneira consiste justamente em estar fora, olhando – de tal modo que o simples fato de estar adiante, fora, leva a exterioridade como tal a constituir a manifestação, a visibilidade. Exterioridade em que tudo, todo conteúdo se visibiliza, torna-se fenômeno exterior, é o mundo – visível, pois mundo significa exterioridade, que constitui a visibilidade. Um fenômeno exterior nunca é visto ou conhecido por suas propriedades – por ser grande ou pequeno, estruturado ou informe, etc. – mas só por ser exterior: pois, pertencendo ao “mundo” que significa exterioridade, ele se manifesta nela, que é a manifestação mesma. Por isso Kandinsky diz que a “maneira” não está ligada arbitrariamente ao fenômeno, pois é essa maneira – aqui, a exterioridade – que justamente o torna fenômeno, fazendo-o mostrar-se.

À maneira de mostrar-se como fenômeno exterior, à exterioridade, à visibilidade do mundo, opõe-se, segundo Kandinsky, outra “maneira”, um modo de se apresentar mais antigo, de certa forma, e mais radical: o Interior. O Exterior, como o Interior, não designa algo particular – que se revelaria interiormente – mas o próprio fato de se revelar assim, a interioridade enquanto tal. Em que consiste essa última, a “maneira” mais original de se mostrar, de “ser vivenciada”? Questão incontornável: “ser vivida interiormente”; essa “maneira” sobre a qual Kandinsky edificará sua estética não poderia ser afirmada simplesmente. Ela seria então atacada por crítica limitando-se a negar sua existência; “nada existe de semelhante!”, “a interioridade é mito!”. Em outros termos, o Exterior se autocomprovou, e essa prova, parece, é ele próprio, é o mundo tal como aparece em sua visibilidade incontestável, oferecendo-me incessantemente seu espetáculo e ao qual, mesmo quando fecho os olhos, adiro por todos os meus sentidos voltados a ele. Do mesmo modo, o Interior, se o tomarmos como fundamento de toda nossa análise, deve se auto-comprovar também, significando mostrar-se – mas de maneira própria, que não é mais a do mundo. Por exemplo, a exigência – a do cientista – dirigida ao Interior de aparecer à maneira do mundo como fenômeno exterior, para ser visto com os olhos do corpo, ou pelo menos os do espírito, seria absurdo. Assim, ao modo de algo que está adiante e que, por isso, pode ser visto, o Interior jamais se mostrará. Ele é o invisível, o que não pode nunca ser visto num mundo, nem à maneira de um mundo. Inexiste “mundo interior”. O Interior não é a reprodução internalizada de um primeiro Lá-Fora. No Interior, não há nenhum distanciamento, nenhuma colocação no mundo – nada exterior, porque não existe nele nenhuma exterioridade.

Como então se revela o Interior, se nem se assemelha a um mundo? Como a vida. A vida é sentida e experienciada imediatamente, coincidindo consigo em cada ponto de seu ser, totalmente imersa em si e, esgotando-se nesse sentimento de si, ela se cumpre como páthos. A “maneira” pela qual o Interior revela-se a si mesmo, a vida se vive a si mesma, a impressão se impressiona imediatamente a si mesma, o sentimento se afeta a si mesmo – precedendo todo olhar e independentemente dele -, é a Afetividade. Assim, defrontamo-nos com uma primeira formulação da grande equação kandinskyana que sustentará tanto sua obra quanto sua pesquisa teórica:

Interior = interioridade = vida = invisível=páthos.

O Ser não é, portanto, noção unívoca. Duas dimensões o atravessam para dilacerar sua unidade primitiva (mesmo só tendo uma): a do visível, em que na luz do mundo as coisas se mostram a nós e são vividas por nós como fenômenos exteriores; a do invisível, em que na ausência desse mundo e de sua luz, antes mesmo de surgir esse horizonte de exterioridade que afasta tudo de nós e a pro-põe a nós a título de ob-jeto (significando o que é colocado adiante), a vida já se apossou de seu ser próprio, se apertando nessa prova interior imediata de si que é seu páthos, que faz dela a vida.

Original

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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