Na verdade, o corpo da biologia é de certo modo um objeto cultural. Ele é, a esse título, essencialmente histórico, tanto em sua aparição quanto em suas modificações, que são as mesmas trazidas pelo desenvolvimento da ciência. Com semelhante corpo biológico, nós, os homens do presente, temos, é verdade, uma relação original, e somos todos, em algum grau, seres históricos, uma vez que professamos todos a ciência de nossos cientistas, sendo que as representações dessa ciência sempre encontram, com maior ou menor rapidez, eco nas concepções do senso comum. Não é nessa relação original, porém, que buscamos nosso primeiro saber sobre o corpo, nem encontramos as condutas em que este está implicado. Não esperamos ler as últimas obras de biologia para correr, saltar, caminhar ou erguer os braços, e se nos dedicamos a semelhantes leituras, nada mudará em nossas capacidades primitivas; pois nada é mais inoperante que a ciência em relação à nossa conduta, como em relação ao saber primordial que esta sempre pressupõe. Pressentimos agora que é desse saber primordial, e só dele, que temos de nos ocupar e explicar aqui. Longe de que uma ciência como a biologia possa nos fornecer sobre ele qualquer esclarecimento, é pelo contrário sobre tal saber que ela se funda; não se pode esperar que ela explique o que ela pressupõe como sua condição de possibilidade, como o horizonte ontológico no interior do qual ela pode encontrar seus objetos, fornecer suas explicações e, antes de tudo, colocar seus problemas.
Precisamos, no entanto, especificar o sentido da redução fenomenológica que estamos em vias de realizar, a fim de discernir mais claramente a natureza desse saber originário e as fronteiras que ele entretém dos diversos conhecimentos sobre ele fundados. Nosso corpo é um corpo vivo; este não poderia ser compreendido, contudo, como uma realidade biológica. Se a vida não é primitivamente para nós objeto de uma experiência científica, nem, por mais forte razão, um conceito científico, ela não se dá a nós, na experiência ingênua, como estrutura transcendente? Ao lado dos objetos inertes, das ferramentas, dos objetos culturais, há, em nosso círculo imediato, seres que afirmamos serem vivos. O problema do conhecimento do corpo seria resolvido, então, por meio de uma descrição das características apresentadas por tais “realidades vivas”. Uma dificuldade se apresenta, devido ao fato de que, entre esses corpos vivos, deve se operar uma distinção entre o corpo de uma ameba, por exemplo, ou mesmo dos animais superiores, de um lado,1 e, de outro, do homem. Pois, no caso deste, não lidamos apenas com um corpo vivo, mas com um corpo humano, e suas propriedades são tão particulares que temos a nítida impressão de ter diante de nós uma nova estrutura, que só tem em comum com as estruturas precedentes a particularidade de pertencer, como elas, ao ser transcendente em geral.
Distinguimos, então, até o momento: 1) o corpo como entidade biológica, cuja realidade deve ser finalmente o lugar-comum das determinações científicas que lhe dizem respeito ou, para dizê-lo melhor, que o constituem; 2) o corpo como ser vivo, aparecendo assim em nossa experiência natural. Semelhante corpo é igualmente uma estrutura transcendente, cujas características fenomenológicas são as próprias características da percepção que o dá; 3) o corpo como corpo humano que é, novamente, uma estrutura transcendente de nossa experiência, mas cujas características não podem ser reduzidas pura e simplesmente às de todo corpo vivo, de modo que parecem constitutivos de uma nova estrutura ou, como se diz hoje, de uma nova forma.
Conceber claramente as relações entre os três termos que acabamos de distinguir é, sem dúvida, um empreendimento repleto de dificuldades. O corpo biológico e o corpo vivo se ligam de tal modo que aparecem sucessivamente, um em relação ao outro, como termo fundante e termo fundado, segundo se esteja situado no ponto de vista da ciência, que pretende explicar as aparências fenomenológicas do corpo vivo com a construção em terceira pessoa que ela edifica, ou naquela da consciência natural (não a do senso comum, já adquirida implicitamente, mesmo que se a ignore, mas as das teorias científicas), que vive nessas aparências e pensaria, com o fenomenólogo, que a ciência se elabora a partir delas. Quanto às relações entre o corpo vivo e o corpo humano, seu estudo deriva de uma fenomenologia comparada entre a percepção dos animais e a percepção de outrem — estudo que se chocaria, entre outras dificuldades, com esta: se é fácil de estabelecer a divisão entre o comportamento animal e a conduta humana quando essas duas estruturas são apreendidas em sua oposição recíproca, como discernir, quando se considera unicamente a percepção do corpo humano, o que, nele, é próprio a um ser vivo e o que é próprio ao homem ou, se preferirem, como a primeira estrutura do corpo vivo, do corpo animal, se encontra naquela da segunda, a do corpo humano, como um de seus elementos ou como fundamento?
As diferentes distinções precedentes, as questões que estas suscitam, todavia, não apresentam importância a nossos olhos, porque não colocam em questão o problema ontológico fundamental do qual devemos, enfim, nos ocupar. Qualquer que seja a região à qual decidirmos, finalmente, acomodar nosso corpo, seja essa região a do corpo biológico, seja a do corpo vivo ou, enfim, seja uma região sui generis pertencente propriamente ao corpo humano, em todos os casos só lidaríamos com especificações e estruturas do ser transcendente em geral, por maiores que possam ser as diferenças entre essas estruturas. Enquanto for assim, porém, a problemática concernente ao corpo permaneceria, a despeito do que dissemos anteriormente, contingente em relação ao projeto de uma ontologia fundamental, estranha ao propósito de uma filosofia realmente primeira. A contingência da questão do corpo, mais profundamente, a contingência do fato mesmo de pertencimento de um corpo à realidade humana, é insuperável, se for verdade que esse corpo representa, em relação à própria subjetividade transcendental, algo de heterogêneo e irredutível.
(MH2012)