Hebeche (2005:315-317) – solipsismo ontológico-existencial

A noção de “indícios formais” (Formalen Anzeigen) provém da fenomenologia transcendental. Ela é retomada no curso sobre fenomenologia da religião (GA60), proferido por Heidegger em 1920. Nessa passagem, o autor confessa que a filosofia, tal como ele a entende, se encontra numa grande dificuldade. As suas análises conceituais abstratas levaram-no — junto com seus alunos — a uma “calamidade”. Os indícios formais já estão, portanto, vinculados aos dilemas de um novo estatuto da filosofia. Este artigo visa a esclarecer essa dificuldade. Essa mesma dificuldade, porém, envolve problemas metodológicos internos ao pensamento de Heidegger, os quais atravessam toda sua obra juvenil e se consolidam em Ser e Tempo, como é o caso do solipsismo ontológico-existencial. Ou seja, desde os seus primeiros cursos, Heidegger exerce seu filosofar a partir de um modelo monocêntrico herdado da filosofia da consciência e, com isso, ele realiza um afundamento da vida fática num constructo particular. A hermenêutica da vida fática acabou reduzida ao constructo “ser-aí” (Dasein). O background desse debate é o sentido da história. Para Heidegger, não se pode colocar o ser-aí na universalidade da história sem esvaziá-lo de faticidade, como o fizeram Hegel, Marx, Dilthey, Spengler, etc. Para evitar essa universalidade vazia tem-se então de voltar à originalidade de sentido da vida fática. O problema é que Heidegger dela trata a partir da sua herança da fenomenologia da consciência transcendental, e, à medida que seu pensamento evolui, essa posição transforma-se numa ontologia também concebida do constructo monocêntrico. A nosso ver, é importante resgatar a hermenêutica da vida fática do jovem Heidegger, mas corrigindo-a dos resquícios da filosofia da consciência, isto é, de que a história tenha sentido só a partir do drama autêntico do ser-aí. Ora, o sentido originário não se encontra em nenhum ente que lhe tenha acesso privado, posto que é encontrado originariamente na gramática da linguagem. O construto ser-aí tem de ceder lugar à rede das palavras, pela qual ele próprio foi concebido. O fenômeno da cura (Sorge), por exemplo, está pressuposto na complexa gramática da linguagem ordinária. São das regras da gramática que ele toma sua orientação prévia. O que a generalização ou universalização encobrem não é uma dramaturgia privada, mas a compreensão gramatical dela própria. Ou seja, nem o solipsismo existencial, nem a generalidade das leis da história, mas a compreensão da vida fática, é a alternativa à posição metafísica dos universais. Com isso se evita o solipsismo existencial do constructo ser-aí. É preciso, portanto, uma “arqueologia” desse construto como resíduo da filosofia da consciência. A interpretação fenomenológica cederá, então, lugar à gramática da linguagem ordinária. A linguagem, porém, não é uma cópia do fluxo da vida, mas a sua expressão mais originária. A expressão “fluxo da vida” origina-se na linguagem e, à medida que se afasta dela, como o fluxo heraclitiano, processo histórico hegeliano, ou a evolução das espécies, etc., torna-se uma entidade metafísica, como “um ponto de vista externo”. A vida fática passa então a ser concebida de modo objetivo. A compreensão da linguagem é obstruída pelo domínio dos objetos. A teoria objetiva a linguagem. O dirigir-se para o domínio dos objetos é a des-significação da linguagem, ou seja, a degeneração da gramática. A “ânsia de universalização” aponta para um apoio externo à linguagem, colocando-a no domínio dos objetos. A determinação da validade universal é o máximo da objetivação. Mas toda universalização é uma ilusão gramatical. A rejeição dessa ilusão foi, sob diferentes maneiras, feita por Hume, Wittgenstein, Ryle, Strawson, Heidegger, entre outros. Nosso objetivo é mostrar que o primeiro Heidegger dá um passo importante na resolução dessa ilusão, no entanto sua dependência estreita da fenomenologia da consciência o limita ao solipsismo existencial da si-mesmidade.

(HEBECHE, Luiz. O escândalo de Cristo : ensaio sobre Heidegger e São Paulo. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005)

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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