Haugeland (2007:95-96) – o equipamento intra-mundano

Podemos começar com o mesmo caso especial que o próprio Heidegger: o equipamento intra-mundano 1 quotidiano. É neste contexto que ele introduz os outros dois verbos lassen mencionados acima: [?bewenden] lassen e [?begegnen] lassen. Mas não é assim tão difícil perceber como é que estes funcionam, desde que tenhamos cuidado com o resto da terminologia. Nas secções [15->ET15] e [18->ET18], respetivamente, [?Zuhandenheit] e [?Bewandtnis] são ambos definidos como o ser do equipamento. Mas não são a mesma coisa. A diferença entre eles é aquilo a que Heidegger chama a articulação do ser em ser-isso e ser-o-quê (compare a distinção atualidade/essência, da qual falaremos mais adiante). O ser-isso de um equipamento (o que está em causa no fato de ser ou não ser) é o seu Zuhandenheit (aquilo a que chamo disponibilidade). O seu quê-ser (o que está em causa no “tipo” de coisa que é) é o seu Bewandtnis — que traduzo, portanto, como o seu papel (de equipamento). Assim: a disponibilidade é o análogo instrumental de atualidade; e papéis são o análogo de essências.

Ora, estes vários papéis, aos quais as entidades instrumentais são “atribuídas”, só fazem o sentido que fazem em relação umas às outras (martelo/prego/madeira, caneta/tinta/papel, e assim por diante). Heidegger chama ao carácter relacional dessas atribuições “significante” e à totalidade desses significantes “significado”. E essa significação, por sua vez, é o que constitui a estrutura do mundo — o mundo do Dasein quotidiano. Mas, com estes pontos e termos no lugar, não é assim tão estranho dizer que o mundo do Dasein permite que as entidades intramundanas “tenham os seus papéis” (bewenden lassen), ou mesmo que as deixa “aparecer” como qualquer coisa (begegnen lassen). Pois o mundo é definido, de fato, como a totalidade de todos esses papéis nas suas inter-relações essenciais. Assim, sem ele, nada poderia aparecer como — ou, portanto, ser — qualquer coisa equiparável. Ou, para fazer a mesma observação por meio de um caso especial, quem poderia negar que o “mundo” do basebol permite que certas configurações discerníveis sejam strikes, home runs e coisas do gênero?

O problema com este tipo de argumento não é o fato de não ser persuasivo (na medida do possível), mas sim o facto de ser demasiado fácil. Não é grande novidade que, sem o Dasein, nada seria um martelo ou um home run. Mas e as entidades que existem desde muito antes de existir o Dasein, e que continuarão a existir muito depois — entidades que são (como queremos dizer) independentes do Dasein? Esta questão, no entanto, não pode sequer ser abordada sem alguma compreensão do sentido relevante de “independência”; e isso acaba por pressupor o conceito de ser-isso.

[Haugeland, John. “Letting be”, in CROWELL, S. G.; MALPAS, J. (eds.). Transcendental Heidegger. Stanford, Calif: Stanford University Press, 2007]
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