Haar (1990:97-98) – metafísica é antropocêntrica e antropomórfica

Alves

Pois a História do homem dos gregos até nós é a história da auto-posição sempre mais firme e autônoma da essência humana. Para o sofista Protágoras, o homem é, por certo, a «medida de todas as coisas», mas ele obedece à lei de uma sophia que lhe prescreve as estritas fronteiras do seu reino e do seu saber. O homem cartesiano, kantiano, delimita e assume a finitude de uma vontade do conhecimento, todavia infinita no seu princípio. O homem das ciências humanas, cedendo à vontade da vontade, explora o seu próprio chão, reparte-se em setores objetiváveis e mensuráveis, projeta-se o grande filme inacabado do seu ativismo ilimitado. A história do homem é a de uma emancipação absoluta. De que se libertou ele? Ele libertou-se de toda a relação a um Outro diferente dele, quer fosse Deus, a natureza ou o ser. Tornou-se a relação total, o puro meio, o único objecto, o único estudo do único sujeito: ele próprio. O homem alimenta-se e haure-se nesta imensa tautologia, com a qual ele se contenta todavia; pois que se ele não excluiu dele próprio a angústia e a morte, ele lisonjeia-se de as ter desembaraçado da sua carga arcaica, metafísica e de as ter reduzido a questões psicológicas ou medicinais, quer dizer, técnicas. As questões técnicas não são questões, mas problemas claros, solúveis ou pelo menos desprovidos de enigma.

Toda a metafísica, desde a alba dos tempos modernos, é quer antropocêntrica, quer dizer, coloca a essência do homem, o sujeito, como base e fundamento inabalável de todo o saber, quer antropomórfica, transfere para um Sujeito absoluto as propriedades e as faculdades do homem, e, especialmente, a vontade. Mas desde Platão, que a metafísica é «humanista» porque a sua principal preocupação é a salvação da alma humana e porque a doutrina das duas substâncias que compõem o animal racional (95) já está firmemente estabelecida. Em todo o caso, o homem-substância, o homem-sujeito são considerados como entes subsistentes, vorhanden, postos aí como coisas da natureza, tendo de uma vez por todas a sua consistência própria, as suas qualidades específicas, as suas virtudes, a sua riqueza.

Ora o que a metafísica esquece, de modo crescente, é a pobreza do homem. O homem não é o que ele é. Platão dizia que lhe era necessário recordar. Falta sempre qualquer coisa ao homem. Essa «qualquer coisa» não é nada do ente, mas o seu próprio ser — a relação com o ser que ele não pode possuir mas apenas desenvolver no movimento ex-tático da existência Ele só é o ente que é, porque perdeu o ser e, ao reencontrá-lo, o tornou a perder de novo. O homem é Dasein, um ente tal que o seu ser-no-mundo, tal como os modos de ser do ente diferente dele mesmo, estão «eternamente» em questão no seu próprio ser. «Em questão»: numa possibilidade de sentido, ou cujo sentido está em suspenso. Com a viragem da década de 30, Heidegger não abandona esta posição do SZ, apenas mostra que a relação com o ser não se decide no ser próprio do Dasein, segundo a vontade deste, mas determina-se a partir do próprio ser, enquanto este último se descobre e se dá ele mesmo como «verdadeiro», quer dizer como des-velado, manifestamente saído da sua latência.

[HAAR, Michel. Heidegger e a essência do homem. Tr. Ana Cristina Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 1997]

Original

  1. Cf. Questions II, p. 160.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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