Haar (1990:9-13) – Homem e Dasein

Alves

O homem esteve durante muito tempo certo da sua essência: ele era um ser vivo dotado do logos, o animal racional. Pelo preço de um estranho desdobramento, mas tornado «evidente» pela força da banalização, a sua pertença à natureza estava incluída na sua definição. A tradição filosófica esforçou-se por resolver o melhor possível os conflitos entre o corpo e a alma, a sensibilidade e a razão, sem repor em questão a coabitação num só ser substancial destes princípios opostos. Assim, a inversão nietzschiana apenas confirma esta dupla identidade situando o corpo em primeiro plano como a «grande razão», e reduzindo a alma a um nome para uma dimensão do corpo.

Desde Descartes, a metafísica ficou cada vez mais certa igualmente do lugar central do homem como subjectum, base firme e subsistente de toda a verdade. E se para Kant a questão «o que é o homem?» contém as outras três questões fundamentais da filosofia 1, é porque apenas o homem reúne as determinações fenomenais da natureza e numenais da liberdade. Já a metafísica grega tinha construído uma antropologia, mas referia a essência do homem à constituição do ser do ente na totalidade, segundo uma fórmula enunciada por Aristóteles: he psyche ta onta pos esti panta, «a alma é de algum modo todos os entes»2. «Qualquer coisa que o próprio homem é, comenta Heidegger, e que não obstante o ultrapassa e se estende para além dele, entra sempre em jogo para determinar o ente como tal no seu conjunto» 3. A psyche em Platão e Aristóteles, como o logos de Heráclito, pertence à essência «física», que move todas as coisas. A metafísica moderna da subjectividade oferece, pelo contrário, uma estrutura quer antropocêntrica, quer antropomórfica: quer o próprio homem esteja no centro, estabelecendo pelo seu juízo a norma do verdadeiro, do bem, do belo, fazendo comparecer todas as coisas perante o tribunal da sua representação, a fim de examinar e de fundar a legitimidade da sua apresentação, quer a essência do sujeito humano, a vontade, se torne — com o triplo desdobramento da vontade de saber, de amar, de poder — a essência mais íntima das coisas, o ser do ente.

Mas uma outra tradição, que se apoia na narrativa da Gênese, ensina que o homem foi criado à imagem de Deus. Ele não tem apenas uma natureza, possui também uma relação essencial com a sobrenatureza, com a «transcendência», no sentido teleológico. «Deus disse: façamos o homem à nossa imagem (eikona) e semelhança (homoiosin)»4. O Homem traz na sua essência como que a marca do artesão na sua obra, a imagem, quer dizer, a analogia proporcional (homoiosis) do Todo-Poderoso e do Invisível. A teologia cristã acrescenta à animalidade racional — que retoma da tradição grega sem a repor em questão, pois o homem enquanto ens creatum é um ser natural, substancial —, «a ideia da transcendência, segundo a qual o homem é além disso um ser dotado de razão»5. Reforçada com a certeza da revelação, a teologia produz uma nova cisão conflitual na essência humana: por um lado entre a natureza e a graça, entre o corpo e o espírito, ambos cativos do «mundano», e a alma, por outro, chamada à «vida sobrenatural».

Afastando-se desta dupla tradição tão antiga como o Ocidente, mas religando-se a ela pelo método da desconstrução, a analítica do Dasein como «ser-no-mundo» introduz, em primeiro lugar, a possibilidade extraordinariamente inovadora e fecunda de uma essência unitária do homem, desembaraçado dos seus antigos conflitos. Por certo aparece uma nova dualidade, a do autêntico e do inautêntico, do próprio e do não-próprio, de Si mesmo e da gente 6. Mas ela exclui a mistura da essência humana com o ser natural. Porquanto a questão da pertença do homem à natureza não seja suprimida, ela transforma-se na da «facticidade». Deste modo, a fenomenologia do Dasein só reencontra marginalmente o corpo como um limite do «mundo» ou, paralelamente, como a mão, capaz de manipular os instrumentos «ao-alcance-da-mão» (Zuhandenheit) ou de não intervir, deixando os entes simplesmente subsistir, literalmente «à-mão»7 (Vorhandenheit). O corpo humano é extirpado de qualquer definição puramente biológica, vital, animal, pois a análise revela-o como já estando sempre inserido e reentrado numa Stimmung, uma tonalidade afectiva que o produz, o transporta para fora de si para uma situação, o penetra de transcendência. Como dirá mais tarde Heidegger: «o corpo do homem é qualquer coisa de essencialmente diferente de um organismo animal»8. Ao definir o homem como zoon logon echon, a metafísica definiu-o «zoologicamente», de maneira naturalista e coisista, como homo animalis, falhando a verdadeira essência «ex-istente» do homo humanus. Ela esqueceu, por acréscimo, o sentido original da physis, como surgimento luminoso de presença que contém a palavra Zoon, e também o sentido primeiro de logos, como tributo de presença, que a sua tradução por ratio ocultará completamente.

Porém, o conceito de Dasein introduz o atractivo de um descentramento da posição do homem, visto que o objectivo da analítica não é constituir uma nova antropologia, mas libertar uma via que permita colocar de novo a questão do ser. Desde a época do Ser e Tempo, a recusa da antropologia, tornada «uma espécie de depósito residual de todos os problemas filosóficos essenciais» 9, está ligada à recusa de uma tradição esclerosada, enredada em recuperações sucessivas e incapaz de pôr a questão do sentido do ser e do que compõe a natureza humana: a «vida», a «consciência», a «razão». Se Heidegger escolheu o termo de Dasein evitando os de «homem» e de «sujeito», foi antes de mais para não retomar os pressupostos e os preconceitos que estes termos veiculam, pois o Dasein é, com toda a certeza, completamente diferente do homem-sujeito da metafísica moderna. Ele caracteriza-se por uma relação consigo mesmo que é, de imediato, relação com o ser. O Dasein, com efeito, relaciona-se com o seu ser como tendo do ser esse ser. «Para esse ente ele encontra aí no seu ser esse ser»10. Heidegger chama à relação particular que o Dasein mantém com o seu ser existência (Existenz). Ora esta relação não é fechada sobre si mesma. Ela implica «de um modo cooriginário»11 a compreensão do «mundo» como conjunto de possibilidades práticas definidas, e a do ser do ente intramundano. O Dasein é «sempre meu»12, mas esta «mesmidade» é ao mesmo tempo a sua abertura ao mundo. «Compreender o ser» como ser-no-mundo significa simultaneamente compreender o seu ser num «mundo» onde ele encontra entes que têm o seu modo de ser e entes que não têm. É de notar que esta polissemia do ser para o Dasein faz dele «o ente exemplar», a partir do qual a analítica poderá orientar-se para a questão do «ser enquanto tal». Assim, a abertura a si do Dasein não é do tipo da reflexão, porque esta abertura a si passa sempre pelo mundo. De um mesmo golpe, encontra-se minada a evidência tradicional do laço necessário entre o pensamento como representação e a interioridade.

O Da, o «aí» do Dasein é abertura ao ser, a Lichtung: «ele é a clareira.»13

Daí a primeira des-construção da definição de homem como zoon logon echon: tomar o homem, na sua essência, primeiro por um «vivente», é tomá-lo por vorhanden, por um dado aí-à-frente, é tê-lo por um ente subsistente e por um «processo» (Vorkommen) intra-mundano, é esquecer a sua «existência». Em suma, a analítica existencial descentra duplamente o homem, ao mesmo tempo em relação à questão do ser enquanto tal — embora apenas a título programático — e dá ao mundo a prioridade sobre o ser-que-é-meu. Esta prioridade do mundo, como este «no quê» em que o Dasein já está sempre, como horizonte incontornável das suas actividades possíveis, não será ela contudo de novo reposta em questão quando a análise, na Segunda secção do Ser e Tempo, que procura a condição de possibilidade da autenticidade, desabrocha no tema da temporalidade ex-tática de Si? (HAAR, Michel. Heidegger e a essência do homem. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 14-17)

McNeill

Original

  1. Critique de la raison pure, A 805/B 833; e Heidegger, K.P.M. (trad.) pp. 263-264.[↩]
  2. De anima, 431b 21; citado por Heidegger, GA65, p. 313[↩]
  3. Ibid.[↩][↩][↩]
  4. Genese, I, 26, citado no Sein und Zeit p. 48.[↩]
  5. SZ, p. 4.[↩][↩]
  6. No original On. (N. T.)[↩]
  7. Segundo a tradução de Didier Franck, em Heidegger et le problème de l’espace, ed. de Minuit, 1986, por ex., p. 54.[↩]
  8. Q. III, p. 91 (sublinhado nosso); Wm., p. 322.[↩]
  9. KPM, p. 269 (trad.).[↩]
  10. SZ, p.12.[↩]
  11. SZ, p. 13.[↩][↩]
  12. SZ, p. 42.[↩][↩]
  13. SZ, p. 133.[↩][↩]
  14. Critique of Pure Reason, A805/B833; also Heidegger, KPM, pp. 200-201.[↩]
  15. De anima, 431 b21; cited by Heidegger in GA65, p. 313.[↩]
  16. Genesis 1:26, cited in SZ, p. 48.[↩]
  17. SZ, p. 49.[↩]
  18. Wm, pp. 321-322; tr., BW, p. 204.[↩]
  19. KPM, p. 206.[↩]
  20. SZ, p. 12.[↩][↩]
  21. Ibid., p. 13.[↩]
  22. Ibid., p. 42.[↩]
  23. Ibid., p.133.[↩]
  24. “L’analytique existentiale et la question de la subjectivité,” p. 57, in the collection Être et Temps de Martin Heidegger (Sud, 1989).[↩]
  25. Critique de la raison pure, A 805/B 833 ; et Heidegger, K.P.M. (trad.) pp. 263-264.[↩]
  26. De anima, 431 b 21 ; cité par Heidegger, GA65, p. 313.[↩]
  27. Genèse, 1,26, cité dans Sein und Zeit p. 48.[↩]
  28. Suivant la traduction de Didier Franck, dans Heidegger et le problème de l’espace, éd. de Minuit, 1986, par ex. p. 54.[↩]
  29. Q. III, p. 91 (nous soulignons) ; Wm p. 322.[↩]
  30. K.P.M., p. 269 (trad.).[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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