Haar (1990:148-154) – Pensamento e palavra

Alves

A inserção na língua é o terceiro acto do pensamento, não ao lado do «salto» e da Andenken, mas ao mesmo tempo. «É apenas enquanto o homem fala, que pensa e não o inverso» . O pensamento não é um desenvolvimento interior mudo de palavras. Ele é sempre palavra pensante, pensamento falante. Ele deve encontrar para si uma língua, procurar as palavras para si. Também aqui há uma ambiguidade, entre a parte que cabe ao homem e a que cabe ao ser, assim o pensamento vê-se de súbito inscrito numa língua particular onde traça o seu caminho. Que autonomia lhe cabe já que é «a Língua que fala e não o homem. O homem só fala no que corresponde (entspricht) historialmente à língua» ? O homem que pensa não manipula as palavras como instrumentos de uma mensagem a comunicar, mas «habita» sempre já a língua: «casa do ser e abrigo da essência do homem». Todavia, Heidegger mantém que o pensamento «age»: «o pensamento está atento à clareira do ser quando insere o seu dizer na linguagem… Por isso o pensamento é um fazer (Tun). O pensamento age enquanto «leva o ser à fala». Que significa esta expressão célebre: zur Sprache bringen, que em definitivo é equivalente ao próprio pensar? «Levar à palavra significa assim: elevar pela primeira vez até à palavra o que permanecia não formulado, que nunca foi dito, e fazer aparecer por um dizer que o mostra o que até aí se mantinha em retiro». Este texto, relativamente tardio (1958), retoma aparentemente o activismo da Introdução à metafísica (1935): «O criador (der Schaffende) avança no não-dito, irrompe no não-pensado, obtém pela força o que não advém e faz aparecer o nunca visto…» Ora este acto de zur Sprache bringen é completamente diferente dum activismo, que implicava no texto de 1935 uma conquista do descobrimento, duma luta contra o retiro, dum arrancamento à latência, pois que, desde a Origem da obra de arte, todo o schaffen é interpretado como um chöpfen, um tirar da reserva do ser. Por certo a elevação do não dito ao dito é obra específica do pensador. Mas ela só pode cumprir-se sob a «prescrição» do ser, quer dizer, sob a condição duma impulsão do ser para o seu vir à luz. O pensador ou o poeta ajuda com a sua palavra o ser a aparecer, mas ele não o faz aparecer, não recorre à força. Tudo depende duma escuta, duma espera (mas que não é espera de algo determinado por antecipação). Esta escuta atenta donde sai a palavra exige silêncio, uma retenção (Verhaltenheit), um pudor (Scheu), tonalidades sem as quais não há probidade do dizer, mas também há que haver um «trabalho» minucioso, quase artesanal sobre a língua: uma «economia de palavras, um «cuidado concedido à letra como tal». O ser não se inscreve a si mesmo na letra. A palavra da verdade é deixada ao homem. Só o pensamento-palavra, se está «atento à conveniência do dizer do ser», atinge suficientemente a simplicidade, a «pobreza», quer dizer, renuncia aos efeitos da manipulação da linguagem, para de alguma maneira se apagar, se tornar não aparente, a fim de se tornar a «língua do ser». A conveniência (Schicklichleit) significa a articulação conveniente, apropriada, do que é destinado (geschickt), enviado, dispensado. «A conveniência do dizer do ser como disposição para a verdade é a lei primeira do pensamento, e não as regras da lógica»… O pensamento opera fazendo-se mais simples, mais redundante, mais translúcido: «O pensamento reúne a língua em vista dum dizer simples. A língua é então a língua do ser, como as nuvens são as nuvens do céu».

Heidegger deu numerosas amostras deste dizer simples ou desta língua do ser. Esta língua tentará recorrer não tanto a novas palavras, mas a uma nova sintaxe como já SZ o previa: «Não são apenas as palavras que faltam frequentemente para esta tarefa, mas é sobretudo a “sintaxe”». Pois que o pensamento é muitas vezes obrigado a servir-se das palavras da metafísica, mesmo que estejam quase mortas (corpus da tradição, palavras geladas…), como de «apoios e de muletas». Com efeito não há tanto novas palavras, mesmo e sobretudo no «último Heidegger», mas palavras escutadas de outro modo: assim Ereignis, Gestell, Geviert, Sage, Brauch, e tantas outras essenciais, são palavras de uso corrente na língua vulgar. Esta atenção às palavras tem por objectivo acordar também nos conceitos clássicos um sentido arcaico, pré-lógico, e desviá-las assim do seu uso metafísico indiscutido, tornado selbsverständlich e falsamente transparente. Assim Satz não é entendida apenas como a proposição, mas também como o salto (para o «princípio», para o ser), Notwendigkeit, necessidade, torna-se a «Viragem (die Wende) da angústia (der Not)». Bedingung, «condição», é o que procura, assegura, uma coisa (Ding). Este movimento conduz-nos do lógico puro à sua concreção perdida, num percurso quase husserliano. Do mesmo modo Möglichkeit, possibilidade, é religada ao verbo mögen, amar, desejar. Erörterung, discussão, reconduzida à raiz Ort, torna-se «retorno ao lugar», «situação». Weiser, o «sábio», é o que mostra (weisen) um caminho. Erramos se medirmos estes jogos de linguagem pela norma de uma exactidão etimológica e filológica. Trata-se de encontrar as possibilidades escondidas na linguagem, de «permanecer abertos à força e ao alcance do seu dizer». O uso repetido, mecânico, sedimentado das palavras, sem retorno à experiência da coisa que elas mostram, enfraquece, extenua, banaliza ao máximo as palavras originais, que perderam precisamente a sua capacidade «apofântica», o seu poder de mostração.

A perca das «próprias coisas» vem da perca das próprias palavras. «Não há coisa aí onde falta a palavra». Mas a palavra pode faltar mesmo estando presente, pode faltar-lhe simplesmente força apofântica. Daí este retorno constante a um sentido mais simples, mais «material», que implica uma desconstrução do sentido lógico tradicional: deste modo, o logos é reconduzido ao sentido «sensível» de colocar (legen) e de colher, recolher (lesen)·, aletheia, à não latência, não-velamento; Physis, à eclosão, à luz do dia (em que o coração permanece obscuro e se reserva). Um novo e mais simples entendimento dos conceitos da racionalidade clássica ressai por vezes da sua simples transposição ou reescritura, onde ressoa de novo o seu sentido «sensível»: deste modo Differenz torna-se Unterschied, Aus-trag, o que reconduz ao sentido activo de separar, cindir (scheiden) e de trazer (tragen) dois elementos um ao outro. Tal como a simples fracção das palavras Gegenstand, Ab-grund faz aparecer as raízes stehen ou Grund, vulgarmente não apercebidas. Quando Wahrheit é escrito Wahr-heit, significa o acto primitivo de reunir e de guardar, wahren, no sentido de guardar (huten) um rebanho que se encontra restituído. A escrita de Bestimmung faz ressair a tonalidade, Stimmung, na abstracção da palavra que significa «definição» ou «destinação». A escrita de An-fang leva a entender de novo o acto de captar, de agarrar (fangen) inicialmente, a em-presa, sob a abstracção da palavra que significa «começo». Bewegung escreve-se Be-wegung, mostrando, sob a banalização abstracta do movimento, o traçar dum caminho (Weg), pelo preço duma aparência muito arbitrária de etimologia. Assim o reentendimento de conceitos metafísicos, escritos de outro modo, dá-lhes uma dimensão carnal e de alguma maneira «performativa». A língua alemã sob este ponto de vista possui recursos que o francês não tem!

Tratando-se de uma nova sintaxe, a acusação de «gíria» não faz qualquer sentido, já agora podíamos também acusar Platão de ter inventado o substantivo ousia, uma vez que a língua grega só conhecia anteriormente o participio presente do verbo einai: ousa. Ou dizer que Aristóteles forjou a palavra inexistente energeia, ou que Hegel teve que escolher entre as diversas acepções da palavra Aufhebung! E se «falar em gíria» quer dizer repetir com insistência os mesmos conceitos, releiamos a Crítica da Razão Prática, onde a «autonomia» e a «heteronomia» repassam incessantemente como o verso e o reverso duma medalha. Placidez filistina! Resistência sempiterna do senso comum contra a filosofia! E preciso reconhecer que existe com efeito uma gíria heideggeriana, mas que é a das más traduções! Delas são responsáveis não Sartre ou Corbin, mas, ai de nós, o próprio Beaufret, que pôs em circulação numerosas interpretações errôneas (por exemplo, a tradução de Unverborgenheit como Aberto sem retiro, enquanto que o des-velamento comporta sempre o retiro) e certos ultra-beaufretianos, que levaram por vezes o preciosismo arcaizante ou a falsa simplicidade até ao ridículo (lembremos apenas, pobres de nós, centenas de «casos» como «tinhar» e «ingurgitar» para palavras tão simples como reichen e stimmen), e cometeram frequentemente por coquetismo inumeráveis contra-sensos e caíram em falsos sentidos. A gíria deles se ficou a dever, com toda a certeza, a rejeição de Heidegger por uma boa parte da filosofia universitária francesa, numa reacção justa e sã. Há pouco interesse filosófico em especular sobre as razões do isolacionismo do clã pós-beaufretiano. Pelo contrário, muitas traduções deviam ser refeitas a começar evidentemente pela confusa e barroca versão «bilíngue» do Ser e do Tempo. Para voltar à sintaxe heideggeriana, é completamente contrário à verdade afirmar como alguns que os únicos desvios de Heidegger em relação à discursividade metafísica são a utilização da «tautologia» (por exemplo «o tempo temporalizado») e da «analogia» (por exemplo o ser como «clareira»). Antes de mais, condenamos a priori estas figuras de estilo em nome de velhos preconceitos em simultâneo metafísicos e lógico-gramaticais. Por um lado, segundo o cremos em boa lógica, o círculo é vicioso. Ora não ignoramos a estrutura circular, antecipativa de toda a compreensão. Por outro lado, confundem-se analogia e imagem na ideia de uma transposição proporcional do inteligível no sensível. O ser não tem, antes de mais, um sentido «abstracto» que se concretiza de seguida, pois que a palavra «é» tem um sentido indeterminado — que não pode ser reconduzido a um conceito. A analogia só existe no pensamento metafísico duma hierarquização de graus do ente. Ora todo o ente é directamente presença do ser. Só é possível de resto «julgar» a tautologia e a analogia heideggerianas em função do que elas desconstroem: quanto à primeira, a autoridade, a primazia do sujeito sobre o verbo, quanto à segunda, a própria diferença metafísica. Mas há outras formas de sintaxe para além destas duas: assim temos o chiasma (por exemplo «a essência da verdade e a verdade da essência) — mas seria preciso analisar a mudança de sentido de Wesen e de Wahreit nas duas expressões, mesmo se for decisivo ter mostrado com toda a precisão textual, como o faz J-F. Mattéi, a recorrência sistemática desta estrutura; a parataxe alargada (não se trata aqui da justaposição das palavras numa frase, mas da justaposição de frases em certos textos, que permite quebrar sobretudo os laços de subordinação, a estrutura dedutiva); a acentuação diversa das palavras numa proposição (por exemplo na análise do Nichts ist ohne Grund, que tanto pode ser sobre Nichts, como sobre ist, como sobre ohne Grund que contém o sentido da frase). Bastaria notar que uma expressão como die Sprache spricht não é, de modo algum, de facto uma tautologia, mas uma tentativa de reforçar a parte do «verbo», do fenômeno e diminuir a do sujeito, a da substância. Nietzsche tinha já notado a falsa substancialização, puramente gramatical, do sujeito, que se produz quando a linguagem nos força a dizer «o raio luz»: isolamos falsamente o raio que nada distingue realmente do fenômeno de «luzir». Quando afirmamos, como o fazem Renaut e Ferry, que «um discurso só pode ser racional, quer dizer, sintático», chamamos «racional» a pura e simples convenção gramatical, que aceitamos de olhos fechados em toda a sua opacidade. Posição pouco crítica para críticos!

Original

Excertos de ,

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

Designed with WordPress