Haar (1990:139-143) – o salto (Sprung)

Alves

O que é o «salto»? Por que é preciso um salto? O salto é verdadeiramente um acto, uma atitude «voluntária» do pensamento? Nós arriscamo-nos aqui a ser logrados pelo preconceito da subjectividade, a saber: a ideia de que o pensamento deve (134) colocar o seu objecto e que deve apoderar-se dele por meio de categorias… imaginamos que não há outra alternativa; ou o pensamento é um trabalho conceptual, uma operação de fundação e de delimitação objectivante, ou então é um reflexo, uma imagem, um epifenómeno. Ora pode existir actividade de pensamento sem que haja objectivação, determinação a partir do pensamento. Reflectindo sobre a tradição da palavra mein na sentença de Parménides (to auto esti mein te kaieinai), Heidegger faz notar que o equivalente habitual, «apreender», «captar», é ambíguo. Noien pode significar a receptividade que a conceptualidade informa e transforma, à semelhança da receptividade da sensibilidade de Kant submetida à espontaneidade do entendimento. «Ora mein não significa precisamente uma tal aceitação passiva». Noein também não significa o inverso, a captação, no sentido de tomada, captura, mão-colocada. O noein não é nem uma passividade nem uma tomada como captura, mas uma «tomada com cuidado» (in die Acht nehmen). O seu pensamento, como noein, corresponde a um logos não dominador, um logos que não é cálculo racional, mas recolhimento, semelhança, «deixar ser de modo semelhante».

A ideia de que todo o pensamento deve primeiro querer, deve primeiro pôr o ser como objecto, repousa também num preconceito relativo à acção. O agir deve ser, crê-se, criação, produção de resultados, deve introduzir o novo e o nunca visto. Ora a acção não poderia ser um começo absoluto, mas apenas continuação do que é, realização. «Só conhecemos o agir como a produção dum efeito cuja realidade é apreciada segundo a utilidade que oferece. Mas a essência do agir é o realizar. Realizar significa: desenvolver uma coisa na plenitude da sua essência, atingir essa plenitude, producere. Não pode pois ser realizado a não ser aquilo que já é». Qualquer acção se apoia no que é, o que não impede que haja um salto entre o agir e o não agir.

Do mesmo modo, há um salto no começo do pensamento, no sentido em que precisamente ele não começa a partir dele próprio, e todavia começa. Pensar — tal como nadar exige que nos atiremos à água — exige que nos confiemos ao elemento que (135) torna possível o pensamento. O acesso a este elemento é um acto (que só pode ser súbito, sem transição), um movimento pelo qual o pensamento se afasta do ente familiar, sem o abandonar, para se ir colocar face ao enigma: que o ente é. «O salto é sempre um começo, mas não é um abandono. O domínio de que o salto nos distancia pode, pelo contrário, ser visto de cima e de outro modo, e é apenas pelo salto que ele pode sê-lo. O salto do pensamento não deixa atrás dele o seu ponto de partida, mas apropria-se dele duma maneira mais original». O salto implica uma brusca mudança de registo, ou de terreno, uma outra perspectiva, ou um outro modo, uma nova «colocação do ponto» como dizem em fotografia. É uma modificação da compreensão do ser, que de latente se torna explícita, se torna questão. Esta modificação pode aplicar-se aos entes do mundo tal como às proposições metafísicas. Descobrir a presença das coisas presentes, e por aí tudo o que sabemos delas, necessita de um salto. Do mesmo modo que necessita dum salto, passar do princípio da razão como proposição lógica: «nenhum ente é desprovido de causa que o determina a ser o que ele é», a um enunciado concernente ao ser: «nada — nenhum ente, quer dizer, o próprio ser — é ele próprio sem razão, é ele próprio abismo». Quando o pensamento passa da reflexão sobre o princípio de razão à meditação sobre o carácter infundável do ser, ele não a abandona, não renega a possibilidade da racionalidade, mas recua, volta ao aquém do racional. O salto é a passagem «sem sair do lugar» do ente ao ser. Uma tal passagem não suporta transição, só pode ser feita num instante, mesmo que seja depois preciso ao pensamento muitas palavras para a explicitar.

Pelo salto o pensamento ganha ou reganha, dum golpe, por uma inclinação (er-springt, diz Heidegger), a sua pertença ao ser. Por aí essa inclinação do pensamento antecipa a sua tarefa, atinge de repente o domínio que deve explorar. «O salto atravessa com a sua inclinação (durchspringt) o domínio (Bereich) que se estende entre o ente e o ser». Este entre-dois (Zwischen), esta distância que percorre o salto, é ao mesmo tempo imperceptível, à força de ser diminuta, já que nada, para falar com justeza, separa o ente (136) do ser (o ser não é um lugar separado), e imenso, pois que o ser ausenta-se, retira-se na massividade do ente. Heidegger opõe o repentino do salto à lentidão da passagem, que Kant chama «dedução», que remonta do objecto à sua condição de possibilidade.

A simplicidade do salto «sem sair do lugar» opõe-se à complexidade da representação. Assim, como fazemos por nos tornar presente o ente que está perante nós, por exemplo uma árvore ou uma flor? O pensamento representacional tem necessidade de mediações, tais como o juízo ou o esquema corporal. O pensamento do ser contenta-se em deixar estar a árvore no seu sítio, e em dizer: a árvore apresenta-se a nós. Onde há aqui um salto? Há um salto quando voltamos da percepção ao ser-descoberto, à auto-doação do mundo, que suprime o primado da percepção. A apresentação não é assunto dum sujeito e não se joga na sua cabeça. Ela está aí, onde está a coisa. Assim o salto consiste em reencontrar o solo original, em repor os pés em terra. «É algo estranho ou mesmo sinistro, ter primeiro que saltar para atingir o próprio solo em que nos encontramos». Nós só compreendemos que o face a face com as coisas não seja o dum sujeito face a um objecto, se efectivamente voltarmos às próprias coisas, e para que tal aconteça é preciso sairmos para fora do centro que a nossa subjectividade ocupa como evidente. Eis o salto que se traduz numa questão simples: «Estará a Terra na nossa cabeça ou estaremos nós de pé sobre a Terra?».

«Sinistro», como o peso morto duma tradição de desconfiança e desenraizamento, é o esquecimento que nos impede espontaneamente nesta posição que nos parece sempre de repente simplificadoramente «realista». O salto aparece, antes de mais, como uma inversão da metafísica, senão como uma aversão por ela. Ele supõe uma libertação em relação à representação, que nenhum raciocínio pode realizar. Seremos nós livres de dar o salto? Sim e não. «O salto mantém-se uma possibilidade livre do pensamento». Somos nós que o damos. Pela nossa própria cabeça, de plena vontade, mas de certeza que não «voluntariamente». O salto revela onde se situa a verdadeira «região onde reside a essência da liberdade». Adivinhamos que essa região não é o homem. Pois que se o podemos realizar, é porque o ser no-lo permite, chamando-nos a ele. Nós só somos transportados para o terreno do ser por «favor» (Gunst) do ser. Tal como, sem a luz do ser, os entes não poderiam aparecer perante nós, também se o ser não nos chamasse, não nos atraísse a si, não haveria salto, não haveria pensamento possível.

E se o ser nos chama é porque se retira! Heidegger estabelece uma correlação entre o Entzug, o retiro do ser, o Zug, a atracção do pensamento que é levado até ele, e o Bezug, a relação com o ser. «Como retiro (Entzug) destinal, o ser tem sempre já em si passagem (Bezug) à essência do homem». Só há pensamento, quer dizer, relação com o desvelamento porque o ser se retira. Somos movidos pelo próprio movimento da retirada. «O que se retira perante nós atrai-nos precisamente pelo mesmo movimento na sua direcção». Também aqui se nota a docilidade do pensamento a respeito do que lhe dita o ser. A relação fundamental é bem aquela que vai do ser ao homem.

Original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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