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O primeiro existencial que vem concretizar a constituição do aí é o afeto (Befindlichkeit, Vezin traduz: disposibilité). Em alemão, a expressão sich befinden conota “encontrar-se” no sentido espacial (“encontro-me em Paris”), mas também no sentido de indicação de uma disposição interior: “encontrar-se” de bom ou mau humor, “sentir-se” “bem” ou “mal”. Além do fato de que em 1924 Heidegger usou esse termo para traduzir o termo affectio em Santo Agostinho, a tradução por “afeto” encontra sua justificativa nessa passagem natural do “encontrar-se” ao “sentir-se”. É apenas o segundo sentido, não locativo, que nos interessará aqui, já que Heidegger afirma de imediato que o título ontológico do afeto conota do ponto de vista ôntico algo perfeitamente familiar, que experimentamos em todos os momentos: o humor, a “tonalidade “(Stimmung, Gestimmtsein) graças à qual estamos mais ou menos em acorde ou desacorde em uma situação específica (SZ:134).
Ambos os termos apresentam problemas formidáveis de tradução e interpretação. Vários comentaristas têm insistido fortemente que o termo Stimmung não tem equivalente literal em francês. É ainda mais importante pensar sobre o que ele quer dizer. Ainda que, como nota Michel Haar, “para traduzir verdadeiramente Stimmung … seria necessário saber, de alguma forma, somar numa só palavra: vocação, ressonância, tom, ambiência, acorde afetivo subjetivo e objetivo – o que é obviamente impossível”, esta impossibilidade linguística não exime da tarefa de trazer para o conceito a diversidade de todos estes significados.
A ligação que já tínhamos vislumbrado entre “mundo ambiente” e “ambiência” começa agora a tomar forma: é bem a ambiência, ou as ambiências, que caracterizam a nossa relação quotidiana com aqueles que nos rodeiam, feita de pessoas e coisas, que deve agora ser submetida à descrição fenomenológica. Cada situação tem uma determinada “ambiência” e dizer: “Falta ambiência ‘aqui’” é ainda descrever uma “ambiência”, isto é, uma “atmosfera”. Ora, o paradoxo singular é que o mesmo termo alemão Stimmung também pode designar uma realidade “objetiva”, quer dizer a atmosfera de um lugar, de uma paisagem, de uma pintura (pense-se na pintura “atmosférica” de Caspar David Pinturas de Friedrich, por exemplo) e um fenômeno puramente “subjetivo”: o humor.
Na realidade, este tipo de esquema não poderia ser mais enganador, na medida em que sugere dividir o fenômeno entre um polo “objetivo” e um polo “subjetivo”, visto que estamos na presença de um fenômeno existencial que antecede à distinção entre objetivo e subjetivo. É por isso que provavelmente é melhor falar, neste contexto, de ser pático ou de uma existência pática. Toda a dificuldade da descrição fenomenológica reside precisamente no fato de que se trata de caracterizar uma relação com o mundo que precede a distinção entre objetivo e subjetivo. Pois, para ser uma coisa muito familiar e bem conhecida (quem não compreende espontaneamente o sentido do enunciado: “O chefe está de mau humor hoje”?), o fenômeno em questão nunca foi jamais descrito verdadeiramente por ele mesmo, e onde foi tentado, a análise foi pesadamente hipotecada por categorias ontológicas e psicológicas inadequadas. O que é afeto realmente, não sabemos ainda.
Aqui, nos deparamos com uma primeira decisão crucial: sim ou não, vamos dar aos afetos um verdadeiro significado ontológico? Ou vamos considerá-los, como parece natural, meros “estados mentais” subjetivos que nada nos ensinam sobre o ser, nem mesmo sobre o nosso própria maneira de ser? Na ótica heideggeriana, nenhuma hesitação é permitida. Se a finalidade da analítica existencial é esclarecer os múltiplos sentidos do existir, dito de outro modo, o sentido do “sum”, então devemos dizer que o afeto representa uma dimensão fundamental do “sou”. Os afetos, longe de serem simples “estados d’alma” de interesse puramente psicológico, têm o poder de revelação ontológica, em um sentido mais fundamental do que aquele do simples conhecimento. “Aí ser ou não aí ser” é agora a questão. Se amputamos a existência desta dimensão, ela se tornará incompreensível. Assim, por exemplo – este é o primeiro exemplo no texto – sentir-se “abatido” não apenas nos diz algo sobre nós mesmos, mas do ser. O ser tem o poder de nos abater, de nos pesar, de se revelar como um fardo (SZ:134).
O Hüttenexemplar (Exemplar da Cabana) comenta esta frase em uma nota marginal no sentido de uma problemática posterior, onde a tendência a ontologização dos afetos é ainda mais radicalizada: portar o fardo significa então “assumir a carga de seu pertecnimento ao ser mesmo”. Nesta interpretação, o parentesco semântico entre o termo Stimmung e a noção de Stimme, de voz, torna-se extremamente importante. Há uma “música das coisas” com a qual estamos mais ou menos sintonizados. Num importante estudo dedicado à noção de Stimmung, Leo Spitzer lembra a velha ideia de uma harmonia musical do mundo com a qual se trata de ressoar. Por trás dos deslizes semânticos, ele percebe mudanças culturais. Enquanto o pensamento antigo pensa junto as noções de “temperamentum” e de “concentus seu harmonia”, o pensamento moderno dissocia ainda mais os valores da Stimmung, do acorde e do temperamento. De um mundo “encantado”, passa-se então para um mundo cada vez mais “desencantado”.
Em tudo isso, a oposição conhecimento / afeto precisa ser examinada de perto, por suas questões ontológicas. A marca do conhecimento é a “distância cognitiva”, da qual a relação sujeito / objeto é a expressão canônica. A intencionalidade cognitiva pode ser descrita como o ato de um sujeito buscando alcançar um objeto. O afeto, por outro lado, envolve um modo totalmente diferente de compreensão. Poderíamos dizer que o que vem primeiro é o fenômeno do “contato”. Estamos tão perto da coisa que ela não pode assumir o rosto de um “objeto”. Nesse sentido, o afeto é uma manifestação básica de nosso ser-no-mundo que precede qualquer relação cognitiva.
Original
- Sur cette question voir en particulier les observations précieuses de Jean-Pierre Charcosset dans son étude Y. Notes sur la Stimmung, in Exercices de la patience, 3/4 (1982), 49-63. L’auteur renvoie aux réflexions de Henri Maldiney dans son ouvrage Regard, parole, espace, Lausanne, L’Age d’Homme, 1973 ainsi qu’à Michel Haar, La pensée et le moi chez Heidegger. Les dons et les épreuves de l’Etre, in Revue de métaphysique et de morale, 1975 (n. 4), 456-483. On peut consulter également l’étude de Marc Froment-Meurice, Long est le temps, in L’humeur et son changement, Nouvelle Revue de psychanalyse, 32 (automne 1985), 185-205.[
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- Michel Haar, art. cité, p. 466.[
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- Cf. Henri Maldiney, Regard, parole, espace, op. cit., p. 93.[
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- Cf. l’ouvrage classique de O.F. Bollnow, Das Wesen der Stimmungen, trad. franç. Les tonalités affectives, Neuchâtel, La Bâconnière, 1953.[
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- Jean-Pierre Charcosset note très justement qu’en français ce n’est que ce petit mot étrange « y » qui a le singulier pouvoir de conjoindre Stimmung et Befindlichkeit (art. cité, p. 60).[
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- C’est précisément en ce sens qu’en 1966, Heidegger suggère d’interpréter le phénomène psychosomatique du stress, sur lequel l’interrogeaient les psychiatres de Zollikon cf. Zoll.Sem., 179-183.[
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- Leo Spitzer, Classical and Christian Ideas of World Harmony. Prolegomena to an Interpretation of the Word « Stimmung », Baltimore, John Hopkins Press, 1963. Un passage représentatif de cet ouvrage est reproduit sous le titre Résonances. A propos du mot Stimmung, dans le n° 32 de la Nouvelle Revue de psychanalyse, p. 239-255.[
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