(…) concordância de Zubiri com Heidegger em várias questões fundamentais:
1. A realidade de uma coisa não pode ser identificada com sua presença, seu des-encobrimento ou (contra a leitura pragmatista) sua utilidade para qualquer agente humano específico.
2. A realidade da coisa é composta tanto pelo fato de que ela é algo específico quanto pelo fato de que ela é alguma coisa. O próprio Zubiri se refere aos polos desse segundo eixo heideggeriano como as dimensões “talitativa” e “transcendental”. Tomarei a liberdade de renomear esses termos nas páginas que se seguem. A dimensão talitativa refere-se ao que a linguagem cotidiana chama vagamente de essência de uma coisa. Mas como Zubiri reserva um significado mais estrito para essa palavra, podemos chamar o polo talitativo de consistência de uma coisa, como quando falamos da consistência de um líquido ou de uma sobremesa. O polo transcendental pode ser renomeado como a “singularidade” da coisa, pois se refere à coisa como uma unidade que abrange todas as suas qualidades.
3. A realidade de uma coisa não pode ser considerada como uma substância dotada de propriedades. Em vez disso, a coisa é sempre um sistema, um sistema que unifica todas as suas numerosas “notas”.
O título do livro de Zubiri dificilmente poderia ser mais tradicional: Sobre a Essência. Mas ele começa sua discussão sobre a essência com uma observação negativa, insistindo que não usa o termo no sentido da tradicional oposição existência/essência. No primeiro de vários paralelos chocantes com Levinas, Zubiri dá um tapa crítico sutil em todas as tentativas de localizar o drama da existência fora de um determinado momento. A distinção existência/essência, diz ele, surge historicamente apenas com a doutrina da criação ex nihilo. Essa abordagem teológica é capaz de entender a essência apenas em termos causais; ela exige nosso reconhecimento do fato de que uma coisa pode ser descrita como tendo um certo “quê” e também descrita simplesmente em termos do fato de que ela existe. Para Zubiri, essa distinção é inofensiva por si só. O problema surge quando esse dualismo é interpretado como o resultado da criação. Por um lado, há uma essência desencarnada e, por outro, um agente causal remoto que traz a essência à existência ou não. Para colocar em termos heideggerianos, o problema com a divisão existência/essência é que ela lê o lado da “existência” da equação como uma simples presença-à-mão, como um estado factual óbvio de ocorrer em vez de não ocorrer.
Levinas e Zubiri estão unidos ao seu professor Heidegger ao condenar essa interpretação de “existência”. As coisas não ocorrem simplesmente ou deixam de ocorrer. Em vez disso, uma entidade como um pedaço de madeira incorpora uma tensão genuína entre dois momentos da realidade, nenhum deles redutível à pura ocorrência. Por um lado, há o que chamei de “consistência” da madeira, o fato de que ela apresenta um conjunto de características diversas: suavidade, dureza, talvez oco. Por outro lado, há a “singularidade” da madeira, sua realidade individual como qualquer coisa que seja. Mas isso não se refere apenas à pura presença factual da madeira, como se estivesse em contraste com a possibilidade de ela não existir. Não há aqui uma decisão binária entre ocorrência e não ocorrência. A questão da existência da coisa não deve ser respondida com um “sim” ou um “não”, mas deve ser descrita como a atuação real de uma coisa em meio ao sistema do mundo. O resultado: esse atrito duplo entre a consistência e a singularidade de uma coisa se desenvolve apenas dentro da coisa, e não surge no ponto externo em que é trazido à ocorrência por um carpinteiro ou uma divindade. Nada nessa parte do argumento de Zubiri surpreenderá os leitores dos Problemas Básicos da Fenomenologia (GA24) de Heidegger.