(Monticelli1997:209-212)
Como pode, então, a noção de “alma” distinguir-se finalmente daquelas que acabamos de definir? Uma fenomenologia da alma, como sugerimos, é uma fenomenologia do ser vivo. No entanto, enquanto no sentido de bios a vida não é um estado suscetível de graus (a saúde, a força, a vitalidade o são, mas isso é outra questão), no sentido de zoé ela o é. Podemos estar mais ou menos vivos — enquanto não podemos ser mais ou menos “um ser vivo”; ou somos seres vivos ou não o somos.
Já sugerimos que um discurso ou uma paisagem podem ser mais ou menos vivazes, mas assim que mudamos nossa atitude objetivante para uma atitude reflexiva, assim que deixamos de ver a vida como propriedade de objetos, de certos objetos, para considerar reflexivamente o exercício atual dessa vida que é nossa — percebemos claramente que existe tal gradação de existência. Enquanto não faria sentido dizer que um objeto existe mais ou menos (pois enquanto objeto ele existe ou não existe), dispomos em nós mesmos de uma fenomenologia muito rica do minus et magis esse [menos e mais ser], disposta numa escala de graus infinitos.
Desde estados de sono, onde somos pesados e inertes como pedras, entregues a qualquer evento, passando por estados de vigília comum, mais ou menos lúcida, mais ou menos rotineira, até estados de graça, por assim dizer, da atenção contemplativa ou da criação, vivenciamos as passagens pelos inúmeros estados intermediários como acréscimos de ser — ou de vida. Acréscimos, de fato, segundo parâmetros que o pensamento filosófico alternadamente selecionou como marcas próprias do ser verdadeiro: independência, eficácia, atividade, presença a si mesmo, unidade-estabilidade-permanência, liberdade…
Estes parâmetros podemos reduzi-los a dois: espontaneidade e concentração. Já os havíamos selecionado no início como características eidéticas do ser vivo. Agora podemos ver que eles pertencem aos traços constitutivos do ser-si-mesmo. Ser mais intensamente é viver mais como um si-mesmo, ou mais “em si”. O que significa “em pessoa”, mas com a nuance essencial de uma proximidade maior ou menor a uma fonte de seus atos e a um centro íntimo de suas respostas afetivas. Aproximamo-nos de uma fórmula agostiniana: a alma é “o coração do espírito”.
A fenomenologia reencontra aqui, exclusivamente em suas próprias bases, a antiga intuição platônica ou platonizante de uma gradação ontológica, em virtude da qual o que é participa do ser em [210] medida mais ou menos ampla, “existe” mais ou menos na proporção dessa participação. Este ser, nós o identificamos com o ser vivo.
O que precisamos compreender é a equivalência entre “ser mais” e estar em medida crescente “em si” (concentração) ou “de si” (espontaneidade). Esta é uma equivalência que está na base de toda a ontologia neoplatônica, com sua gradação ontológica que é uma gradação de intensidade do ser-indivíduo. De modo que é um neologismo introduzido pelo Pseudo-Dionísio, autoeinai, que expressa primeiro — melhor que seu decalque latino esse a se — esse caráter duplo do ser autos, que é o da ipseidade e da espontaneidade. Ipsum esse, diz o latim escolástico para designar o inominável, a ideia-limite daquilo que não participa em grau finito do ser — que não recebe o ser e a vida de outro lugar, mas é seu princípio e fonte última.
Para alguns, isso não passa de um fragmento da história da filosofia: mas não é por acaso piedoso que Edith Stein tenha dedicado um ensaio ao Pseudo-Dionísio 1, e que isso possa nos interessar. Pois o que nos interessa talvez não seja a ideia-limite, Deus, mas a intuição que está em sua base: que há graus do ser si-mesmo, da selfhood [ipseidade].
A fenomenologia nos ilumina sobre esta intuição. Se é no padecer e no agir que nos somos essencialmente dados a nós mesmos, dados como si mesmos e não como outro, certamente nem toda vivência afetiva ou ação engaja no mesmo grau o ser da pessoa. Há uma grande diferença de engajamento pessoal entre a decisão de fazer um passeio e a decisão de tornar-se filósofo, entre o prazer de saborear um pêssego e a alegria de compreender Platão. A fenomenologia, particularmente a scheleriana, descreve com precisão as diferentes camadas de profundidade da vida afetiva e volitiva. Porém, o critério do engajamento — ou da camada motivacional em questão — ainda não é o que precisamos para compreender o que significa ser mais ou menos vivo, em qualquer nível de engajamento pessoal.
O que ainda nos falta é a resposta à pergunta: por que o mesmo tipo de experiência — como a visão de certa paisagem, a leitura de determinado filósofo, o encontro com uma mesma pessoa — chama tal indivíduo ao “seu” ser mais próprio, enquanto outros indivíduos são no máximo “normalmente” motivados — em razão do nível afetivo-motivacional relevante — a uma apreciação mais ou menos “justa”? Por que tal coisa me chama, a mim, a uma potência receptiva e criativa que parecia adormecida ou mesmo [211] morta, e que sinto como minha vida “mais verdadeira”, ou melhor, como o poder-ser que é meu? E entendo por isso um poder-ser ao mesmo tempo mais “autêntico” e mais “autônomo”, mais livre, em última instância.
Tal questão não tem resposta universalmente válida: pois ela interpela justamente o ser-individual da pessoa. O único método para uma resposta é, para cada um, o do “conhece-te a ti mesmo”. E isso, diferentemente das questões sobre a essência do ser-pessoa, às quais este mesmo método de reflexão originária que é o “conhece-te a ti mesmo” fornece apenas o exemplo, o token, de uma generalidade de espécie — e de um domínio de estudo correspondente, regido por leis. Pois entre a motivação e o chamado subsiste a mesma diferença que há entre a razão e uma vocação — termo que, assim como “chamado”, pressupõe a ideia de ser interpelado pelo próprio nome. Há leis da motivação afetiva e volitiva assim como há leis da lógica, ainda que os casos de perversão motivacional sejam mais numerosos que os de pensamento incoerente. Já uma vocação não obedece a nenhuma razão.
Cada um terá seus encontros, seus momentos de despertar para sua vida “verdadeira”. Ora, esses “momentos de ser” (expressão frequente em outra mulher — não uma mística, mas uma romancista, Virginia Woolf) são experimentados como instantes em que se está mais vivo, ou como momentos de atualização dessa vida mais autêntica, devido a dois traços que os caracterizam: não se pensa em si mesmo, está-se ao contrário totalmente absorto na coisa que nos chama. Isto vale igualmente para toda experiência simplesmente interessante. Mas há entre o despertar e o interesse uma forte diferença fenomenológica. Diferentemente de uma mera experiência de interesse, esse modo de absorção na coisa é simultaneamente uma espécie de recolhimento num único ato de todas nossas intenções e afetos, de modo que nossa vida parece subtrair-se à distração e à dispersão cotidiana, para concentrar-se em torno de um só centro. E isso ocorre tanto mais quanto a atividade que nos absorve revela menos esforço e fadiga, portanto menos reflexão e preocupação consigo, de modo que parece brotar espontaneamente de uma fonte que está em nós, mas que não está em nosso poder ativar. (“Attentio vera donum gratiae” — segundo a fórmula de Leibniz).
Eis então nossos caracteres do ser vivo, concentração e espontaneidade, e as metáforas steinianas da alma, o castelo interior e a fonte. Mas, em última instância, essa potência receptiva e criativa que pode despertar em nós ou permanecer adormecida, mas cuja retirada suscita uma nostalgia sem igual, cuja ausência é vivida como aridez, tédio, [212] vazio, dispersão e sentimento de compulsão ou de vida aprisionada — Platão também a chama de “alma”.
Para o fenomenólogo, não é a autoridade de Platão que importa, mas o modo como essa potência nos é dada: nesse recolhimento de si, onde nos parece despertar de uma espécie de sono, de aturdimento ou esquecimento de nós mesmos. Platão, simplesmente, faz desse despertar amoroso o começo da vida filosófica.