Gelven (1989:95-97) – interpretação = ter-prévio, ver-prévio e conceber-prévio

Interpretar significa expor ou esclarecer a estrutura-como (Als-Struktur). Como vimos, isso exige que haja aspectos daquilo que é interpretado já antes do momento real da interpretação. Toda interpretação é fundamentada em um ter-prévio (Vorhabe), uma ver-prévio (Vorsicht) e um conceber-prévio (Vorgriff). Heidegger explica esses três elementos em termos excepcionalmente concisos e econômicos. Sua análise completa de todos os três termos ocupa menos de uma página. Como mais tarde ele fará uso desses termos para descrever sua análise da questão do Ser, eu os explico mais detalhadamente aqui.

Quando alguém está com pressa para ir de um lugar para outro, digamos, de sua casa para a universidade, o uso que se faz de um automóvel nesses casos é simplesmente relacionar-se a ele como um meio de transporte. Em tal atividade, as várias partes do automóvel têm pouco ou nenhum significado independente. Embora seja certamente verdade que as velas de ignição são terrivelmente (96) importantes para a operação bem-sucedida da máquina, o motorista apressado simplesmente não está ciente de sua existência. De fato, desde que nada dê errado, o motorista provavelmente nem considera o carro como um carro. Sua mente está em outro lugar. O envolvimento total que o motorista tem com todas as muitas partes e funções do automóvel como ferramentas de seu transporte é resumido nesse relato pelo termo “ter-prévio”. O que eu tenho antes da minha interpretação é a gama total de maneiras pelas quais me relaciono com o objeto que está sendo interpretado em termos de sua ordem particular. Isso fica mais claro quando essas relações são explicitadas por circunstâncias que nos forçam a considerar sua estrutura. No caso do automóvel, por exemplo, quando o professor ou estudante apressado a caminho da universidade descobre que a máquina não dá partida, ele direciona sua atenção para as possíveis fontes de problemas — para a falta de funcionamento adequado, que nunca chamaria a atenção se estivesse funcionando corretamente. Mas a bateria, o sistema de ignição e os fios de ligação entre esses sistemas só fazem sentido no contexto do objetivo geral do automóvel: fornecer transporte. Quando o motorista apressado considera explicitamente a bateria ou o sistema de ignição, isso já está no contexto. O contexto no qual a bateria é importante é o contexto mais amplo da importância do carro. (O sentido do carro está, é claro, contido em uma gama ainda mais ampla de sentido). Toda a situação do homem apressado, sua preocupação em chegar a tempo para a palestra, sua estimativa de quanto tempo levará para chegar lá, etc., tudo se concentra na capacidade do carro de levá-lo até lá. A bateria do carro é importante para essa capacidade. O nível de água na bateria tem seu significado a partir da capacidade da bateria de fornecer energia elétrica, e assim por diante. A interpretação, que é a consciência da estrutura-como, não ocorre a menos que algo force a pessoa a se tornar consciente da estrutura-como. A bateria como bateria é forçada a chamar a atenção da pessoa por meio da falha no funcionamento do automóvel. Certamente não se poderia consertar o automóvel parado se não se percebesse que o propósito da bateria era fornecer os impulsos elétricos necessários. O que Heidegger quer dizer com “ter-prévio” é que, na interpretação, essa consciência prévia em relação à função e ao propósito das partes é necessária para que a estrutura-como se torne explícita.

Se voltarmos ao exemplo do estudante apressado que se depara com um automóvel parado, podemos ver que, mesmo dentro da gama muito geral e ampla de meios de transporte, assim que ele reconhece que o automóvel não dá partida, sua atenção é direcionada para funções mais específicas dentro da máquina, que são baseadas em seu conhecimento de como a máquina funciona. Assim, quando o carro não dá partida, ele volta sua atenção para o sistema de ignição geral, no qual o motor de arranque, a bateria e os fios de conexão têm importância. Essa primeira etapa no isolamento da (97) possível área problemática é chamada por Heidegger de “ver-prévio”. Ele a descreve como sendo o “primeiro corte” (ETEM:191/SZ:150) do ter-prévio. Uma tradução alternativa de Vorsicht poderia ser “ponto de vista”. No entanto, não se deve cometer o erro de compreender o ver-prévio como algo que ocorre de maneira especial depois de se ter refletido sobre o ver-prévio. O ver-prévio e o ter-prévio são ambos anteriores ao fato de a pessoa se concentrar na estrutura-como explícita. Mesmo antes de voltar minha atenção para a solução do problema do carro parado, tenho um ponto de vista anterior ou um ver-prévio que me permite direcionar minha atenção para o sistema elétrico. O ver-prévio, como um momento no desenvolvimento da interpretação, é uma parte do que geralmente se tem de antemão e por meio da qual é possível a articulação da estrutura-como básica.

O mesmo pode ser dito sobre o conceber-prévio. Um conceber-prévio é aquele pelo qual se tende a interpretar os fenômenos. A função do ver-prévio é direcionar nossa atenção para a área específica do problema, enquanto o conceber-prévio funciona em termos de um conceber pelo qual a estrutura-como será explicitada. No exemplo do automóvel parado, o conceber-prévio seria aquela atitude ou disposição na mente do motorista que o levaria a interpretar a falha na partida do carro como um problema elétrico. Ou seja, a estrutura-como é, no conceber-prévio, explicitada. (O carro não está funcionando como um carro porque não dá partida. O motor de arranque, enquanto/como motor de arranque, não está funcionando, seja por causa de sua própria incapacidade ou porque a bateria, enquanto/como bateria, não está fornecendo energia suficiente). O fator realmente importante nessa análise é que a estrutura-como prévia vem do envolvimento do Dasein no mundo como pronto-à-mão (zuhanden), e não como uma função puramente calculadora do presente-à-mão (vorhanden).

Em toda interpretação, portanto, há um ter-prévio, um ver-prévio e um conceber-prévio, com base no uso que o Dasein faz do mundo como pronto na mão. Isso é verdadeiro para a interpretação da questão do Ser, que Heidegger explica na seção 63 (ET63). A interpretação é a articulação ou a explicitação da estrutura-como projetada pela compreensão. Essa estrutura-como, portanto, será muito importante para o leitor quando Heidegger explicar como é possível compreender e interpretar o que significa ser.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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