Gelven (1972:175-179) – modos de existência desencobrem ou encobrem o si?

A terceira e última característica da abordagem de Heidegger ao desenvolvimento temático do sentido do Ser é que todos os (176) modos de existência sejam vistos em termos de sua capacidade de desencobrir e de encobrir a compreensão da existência. Esse requisito é de extrema importância porque, sem ele, não haveria diferença entre o fato de alguém vir a compreender sua existência e o fato de não o fazer. Além disso, a menos que a estrutura pela qual o desenvolvimento temático da autocompreensão possa se tornar significativo em termos de sucesso ou fracasso, todo o empreendimento se torna vazio e ocioso.

Para que um enunciado linguístico se qualifique como uma proposição, ele deve ser verdadeiro ou falso; e para que um ato humano se qualifique como moralmente significativo, ele deve ser bom ou mau. Assim, “verdadeiro”, “falso”, “mau” e “bom” fornecem a própria base para empreendimentos racionais como a ciência e a moral. A menos que se possa dizer que uma proposição sobre o mundo é verdadeira ou falsa, não adianta incluí-la nas sentenças que descrevem o universo; e a menos que certas ações possam ser julgadas como boas ou más, elas não podem ser consideradas moralmente significativas. Em resumo, não pode haver nenhum tipo de empreendimento racional a menos que haja algum tipo de discriminação entre os elementos que impedem e os que melhoram o empreendimento. Essa discriminação não precisa ser disjuntiva (verdadeira ou falsa); ela pode ser gradativa (mais ou menos bela) ou polar. Se, então, houver uma investigação racional e temática sobre o sentido da existência, todo e qualquer elemento ou modo de existência deve ser caracterizado de tal forma que haja uma discriminação. O que “verdadeiro” e “falso” são para a ciência, e “mau” e “bom” são para a moral, autêntico e inautêntico são para o sentido humano. Eles são os próprios princípios da discriminação, sem os quais a investigação não poderia prosseguir. Seus sentidos, entretanto, devem ser refinados.

Os termos alemães de Heidegger são eigentlich e uneigentlich, que contêm elementos de um tipo etimológico que não estão presentes na aproximação inglesa. Em alemão, o termo eigen significa “próprio”, como na frase “meu próprio”. Esse termo é a raiz do par oposto eigentlich e uneigentlich, sugerindo que o (177) primeiro significa “do meu próprio si”, enquanto o segundo significa “não do meu próprio si”. Essa etimologia rigorosa não esgota os sentidos normais de tais termos, pois no alemão cotidiano eles são usados vernacularmente para significar “realmente”, “verdadeiramente” ou “genuinamente”. O “autêntico” em inglês não está tão longe do sentido normal, portanto. Mas Heidegger quer enfatizar a raiz etimológica, de modo que “autêntico” deve sempre implicar o sentido de “meu próprio si”. Estar em um modo autenticamente significa estar nesse modo de tal forma que o si não seja encoberto; estar em um modo que seja de fato o próprio modo e não o de outra pessoa. Estar em um modo inautêntico é existir de modo a encobrir ou evitar a realidade do próprio si, esconder-se ou fugir de si mesmo. Agora, não é o caso de haver uma lista de modos autênticos e outra lista de modos inautênticos: em vez disso, cada modo pode ser experimentado ou confrontado de forma autêntica ou inautêntica.

Essa distinção entre o autêntico e o inautêntico não deve ser descartada como uma mera forma indireta de chegar a termos morais, como se Heidegger não gostasse de usar palavras antiquadas como “bom” ou “mau”. Ao insistir que os modos de existência podem ser autênticos ou inautênticos, Heidegger desenvolveu um refinamento metodológico verdadeiramente notável para sua investigação. Seu impacto e sentido talvez possam ser mais bem vistos ao mostrar sua semelhança com as maneiras pelas quais os termos “verdadeiro” e “falso” operam no domínio cognitivo da filosofia.

(…)

Suponhamos que alguém se oponha ao pensamento de Heidegger dessa forma: Mas por que alguém teria que considerar o sentido da existência? Por que alguém falha nesse sentido? É em resposta a essa pergunta que Heidegger deve mostrar não apenas como alguém pode ser bem-sucedido na descoberta do sentido da existência, mas também — e tão importante quanto — como alguém falha. Assim como toda e qualquer sentença verdadeira na ciência deve ser entendida em termos de como ela poderia ser falsa, todo e qualquer modo de existência deve ser entendido em termos de como ele poderia impedir o si de ser um si, ou seja, mantê-lo encoberto.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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