Gadamer (VM:176-179) – o jogo

Meurer (com ajustes)

Se considerarmos o uso da palavra jogo, dando preferência ao chamado significado figurado, resultará o seguinte: falamos do jogo das luzes, do jogo das ondas, do jogo da peça da máquina no rolamento, do jogo entrosado dos membros, do jogo das forças, do jogo dos mosquitos, até mesmo do jogo das palavras. Nisso sempre está implícito o vaivém de um movimento, o qual não está fixado em nenhum alvo, no qual termine. A isso corresponde também o originário significado da palavra jogo como dança, que sobrevive em múltiplas formas de palavras (p. ex. a palavra alemã Spielmann, menestrel, músico). O movimento, que é jogo, não possui nenhum alvo em que termine, mas renova-se em permanente repetição. O movimento de vaivém é obviamente tão central para a determinação da natureza do jogo que chega a ser indiferente quem ou o que executa esse movimento. O movimento do jogo como tal é, ao mesmo tempo, desprovido de substrato. É o jogo que é jogado ou que se desenrola como jogo (sich abspielt) nisso — não há um sujeito fixo que esteja jogando ali. O jogo é a consumação do movimento como tal. Assim falamos, por exemplo, do jogo das cores e, nesse caso, nem sequer queremos dizer que aí se trata de uma única cor, que joga com uma outra, mas estamos aludindo ao processo ou à visão unitários em que se mostra uma multiplicidade variável de cores.

O modo de ser do jogo, portanto, não exige que haja um sujeito que se comporte de maneira lúdica para que o jogo seja jogado. O primeiro sentido do jogo é o sentido mediano (mediale). É assim que dizemos, por exemplo, que algo “joga” em tal e tal lugar ou tempo, que algo “se joga”, que algo “está em jogo” (HUIZINGA, Homo ludens).

Essa observação filológica me parece uma indicação indireta no sentido de que o jogar não requer ser entendido, de maneira alguma, como uma espécie de atividade. Para a linguagem, é óbvio que o sujeito genuíno do jogo não é a subjetividade daquilo que joga também sob outras atividades, mas o próprio jogo. Mas estamos acostumados a relacionar um fenômeno como o jogo à subjetividade e às suas formas de comportamento, apenas de uma forma, que permanecemos fechados em face dessas indicações do espírito da língua.

Seja como for, também a pesquisa antropológica mais recente compreendeu tão amplamente o tema do jogo que, com isso, chegou no limite do modo de observação que procede da subjetividade. Huizinga procurou descobrir o momento do jogo em toda cultura, elaborando sobretudo a correlação do jogo infantil e animal com os “jogos sagrados” do culto. Isso o levou a reconhecer a peculiar diferenciação na consciência lúdica que simplesmente torna impossível diferenciar entre crença e descrença. “O próprio selvagem não conhece nenhuma diferenciação de conceito entre ser e jogar, não conhece nenhuma identidade, nenhuma imagem ou símbolo. E por isso permanece questionável se não se pode chegar melhor e mais próximo ao estado de espírito do selvagem através de sua ação sacral, fixando-nos no termo primário do jogar. No nosso conceito de jogo desfaz-se a diferenciação entre crença e simulação.”

Aqui, em princípio, reconhece-se o primado do jogo em face da consciência do jogador, e, de fato, justamente as experiências do jogo, que o psicólogo e o antropólogo terão de descrever, ganham uma luz nova e esclarecedora, caso se parta do sentido medial do jogo. é evidente que o jogo representa uma ordem, na qual o vaivém do movimento do jogo corre como que espontaneamente. Faz parte do jogo o fato de que o movimento não somente não tem finalidade nem intenção, mas que também não exige esforço. Ele vai como que espontaneamente. A leveza do jogo, que naturalmente não precisa uma real falta de esforço, mas que apenas alude fenomenologicamente à falta de esforçabilidade (Angestrengtheit), será experimentada subjetivamente como alívio. A estrutura de ordenação do jogo faz que o jogador desabroche em si mesmo e, ao mesmo tempo, tira-lhe, com isso, a tarefa da iniciativa, que perfaz o verdadeiro esforço da existência. Isso aparece também no espontâneo impulso à repetição, que surge no jogador e no renovar-se permanente do jogo, que cunha sua forma (p. ex., no refrão).

O fato de o modo de ser do jogo encontrar-se tão próximo da forma de movimento da natureza, permite, porém, uma importante conclusão metódica. É evidente que não é assim, que os animais também brincam (spielen, em alemão, que significa tanto jogar, como brincar, tocar um instrumento ou representar teatro etc.) e que até se possa dizer, num sentido figurado, que a água e a luz brincam. Ao contrário poderíamos antes dizer do homem que ele também brinca (spielt). Também o seu jogar é um acontecimento da natureza. Também o sentido de seu jogar, justamente por ele ser, e na medida em que é natureza, é um puro representar-se a si mesmo. E assim que, no final, torna-se praticamente sem sentido diferenciar, nesse campo, o uso próprio e o metafórico.

Fruchon, Grondin, Merlio

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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