entender
compreender
O entender, em primeiro lugar, não pode ser uma estrutura de ser do ser humano. Quando Aristóteles diz que o homem é o ser que fala, ele está descrevendo uma qualidade do ser humano, mas não está descrevendo uma estrutura. Por isso, querer fazer do entender o fundamento de uma antropologia filosófica é suspeito, uma vez que ele só é possível porque nos compreendemos enquanto somos e nesta compreensão compreendemos o ser enquanto ser. Compreendemos, portanto, em uma dupla estrutura, numa espécie de circularidade. O fundamental, no entanto, é a pergunta: Como se dá a união sujeito e predicado; significado e objeto; palavra e coisa; enunciados e mundo? Pelo é, pelo caráter veritativo, ou seja, mediante o conceito de ser. Enquanto não damos conta desse conceito, sempre ficamos de um lado. Por exemplo: “A luz é branca”: fico só com o termo geral, branco, e com o termo singular, luz, mas, é só quando unimos o termo singular ao termo geral pelo é, há um resultado a mais-, poderíamos dizer, o produto veritativo da frase. O produto veritativo da frase não dispensa o é, não dispensa a existência. E como o é está presente? Esta é a questão.
[109] A ideia de ser é o conceito que nos acompanha quando operamos com enunciados. Ser é algo que está ligado ao nosso compreender. Quando falamos na forma de enunciados, usando verbos, pressupomos a compreensão do ser. Há uma dupla estrutura que se dá em uma unidade. Se não dispomos, porém, dessa dupla estrutura, não encontramos limite para o enunciado; vamos ao infinito: enunciados sobre enunciados, sobre enunciados… Somente se ligarmos o enunciado àquele que produz o enunciado enquanto compreende o ser somos capazes de encontrar por debaixo do enunciado um a priori, que é o limite do enunciado. Nós nos compreendemos em nosso mundo; os enunciados, portanto, se limitam ao nosso mundo. Temos de encontrar, nesse compreender, o limite do nosso enunciado. Desse modo, o enunciado ou traz consigo o a priori desde o começo ou fica fatalmente em uma regressão linear. Nesse sentido, o enquanto é o enquanto hermenêutico, porque está ligado ao nosso modo concreto de nos compreendermos, e aqui não nos importamos com o nosso compreender, nos interessamos por entender o ente. Não conseguiríamos, porém, entender o ente, sem nos compreendermos, em que o entender se prende ao compreender.Se a Filosofia analítica fosse puramente analítica ela não seria Filosofia. Por quê? Porque a Filosofia nasce e morre com a presença ou a ausência do a priori. Sem um elemento a priori, que ou posso chamar de ontológico, segundo a tradição (Ideia, substância, Deus, Eu penso), ou, se não quiser ficar mais no mundo metafísico, posso considerá-lo como meu próprio compreender-me no mundo e compreender o ser, enquanto compreendo os entes, isto é, enquanto emito enunciados para dizer que entendi tais e tais enunciados, cairíamos num processo iterativo.
Tugendhat liga o antropológico ao entender, já o compreender tem a ver com uma ontologia fundamental, isto é, com uma teoria sobre como a compreensão do ser faz parte da existência humana e do seu modo de se compreender no mundo. E chamada por Heidegger de analítica existencial ou ontologia fundamental: uma análise das estruturas prévias a priori das condições de possibilidade do discurso. Esse é o seu campo próprio.
Isso posto,podemos descrever o compreender. Podemos primeiro perguntar: O que é o compreender? É um antecipar de sentido. Com o sentimento de situação, estamos ancorados; é a afecção que nos liga ao compreender. [110] Esse compreender está ligado ao falar, ao mundo, à significatividade, às nossas estruturas de significação. Podemos explicar o compreender como uma estrutura fundamental do ser humano. Esse compreender o ser sempre acompanhará todos os enunciados sobre os entes. Aqui está a ontologia fundamental (não desenvolvida, mas esboçada). Podemos afirmar, então, que a ontologia fundamental trabalha com as condições de possibilidade dos enunciados, mas não com as condições de possibilidade do conhecimento ou de conhecimento dos objetos. São as condições do nosso modo de ser no mundo, analisadas pela fenomenologia hermenêutica.
Todos os enunciados que acabam aparecendo no campo do puro entender são elementos que ou se produzem dentro de um contexto fechado (lógica) ou no contexto dos enunciados de caráter afirmativo ou negativo (nível apofântico). O que está por trás disso é o fato de que não há sinonímia perfeita. A referência é aquilo com que nos referimos ao objeto. Se não há sinonímia perfeita — nenhuma palavra pode se sobrepor perfeitamente à outra — , então a referência nunca traz a última explicação das razões, porque chamamos um objeto por determinado nome.
Fala-se, também nesse sentido, da inescrutabilidade da referência. Se dizemos uma frase, por exemplo, “O sino é de bronze”, e se quisermos analisá-la com outra frase, entramos em um regresso infinito. Temos, então, de recorrer a elementos que não são frases no sentido analítico, isto é, temos de pressupor algo. Se não conseguimos levar adiante inteiramente uma explicação de “o sino é de bronze” por meio de algo igual, é porque não podemos sobrepor a seguinte frase a essa. Se não existem significados sobreponíveis, temos de encontrar, para a explicitação do nosso enunciado, algo que não seja dependente de sinonímia, de significado. Precisamos recorrer a algo que é a priori. Este a priori é a condição de possibilidade, e, assim, é o limite do nosso discurso. Podemos recorrer a vários a prioris, como “o mundo é o limite da minha linguagem”, mas sempre haverá uma estrutura que nos acompanha e faz com que, quando falamos, nos encontremos diante de uma dupla estrutura, que já opera na produção do enunciado.
Tomemos o exemplo de Wittgenstein: como podemos ensinar às moscas a saída da redoma de vidro? De dentro ou de fora da redoma? Todas as moscas terão de possuir uma estrutura prévia; sem isso não conseguimos [111] ensinar-lhes a saída. Assim, para tornar possível a saída da redoma é preciso que se possa provar que há uma estrutura prévia onde se enraíza um elemento comum, um a priori compartilhado para nosso enunciado e o enunciado do outro. Dessa forma, os enunciados, as palavras, só se aproximam ou se unem por meio de uma estrutura prévia. As moscas só entendem o que lhes dizemos se compreenderem a situação em que se encontram. [STEIN, Ernildo. Pensar e Errar. Um Ajuste com Heidegger. Ijuí: Editora Unijuí, 2015, p. 108-11]