Gadamer (VM): sujeito e objeto

Nesse sentido, o questionamento epistemológico tem aqui um começo diferente. De algum modo sua tarefa é mais fácil. Não necessita começar pelo fundamento da possibilidade de que nossos conceitos coincidam com o “mundo exterior”. Pois o mundo histórico de cujo conhecimento se trata aqui tem sido sempre um mundo formado e conformado pelo espírito humano. É por essa razão que Dilthey entende que os juízos sintéticos e universalmente válidos da história não representam aqui um problema, e para isso reporta-se a Vico. Recordamos aqui que, em oposição à dúvida cartesiana e à certeza do conhecimento matemático da natureza fundado sobre aquela, Vico havia afirmado o primado epistemológico do mundo da história feito pelo homem. Dilthey irá repetir o mesmo argumento: “A primeira condição de possibilidade da ciência da história consiste em que eu mesmo sou um ser histórico, em que aquele que investiga a história é o mesmo que a faz”. O que torna possível o conhecimento histórico é a homogeneidade de sujeito e objeto. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Meu ponto de partida foi a crítica ao idealismo e ao metodologismo da era da teoria do conhecimento. Foi de especial importância para mim o aprofundamento do conceito de compreensão, por Heidegger, que o converteu num existencial, quer dizer, numa determinação básica categorial da pre-sença (Dasein) humana. Foi o estímulo que me levou a uma superação crítica do debate metodológico e a uma ampliação da problemática hermenêutica, contemplando não somente todo tipo de ciência, mas também a experiência de arte e a experiência da história. Ora, para sua análise crítica e polêmica da compreensão, Heidegger apoiou-se no antigo discurso sobre o círculo hermenêutico, reivindicou-o como um círculo positivo e em sua analítica da pre-sença elevou-o a conceito. Não devemos esquecer, porém, que não se trata aqui da circularidade como metáfora metafísica, mas de um conceito lógico que encontra seu verdadeiro lugar na teoria da demonstração científica como doutrina do círculo vicioso. O conceito de círculo hermenêutico significa que no âmbito da compreensão não se pretende deduzir uma coisa de outra, de modo que o erro lógico da circularidade na demonstração não é aqui nenhum defeito do procedimento, mas representa a descrição adequada da estrutura do compreender. Dilthey, seguindo a Schleiermacher, introduziu a expressão “círculo hermenêutico” em contraste com o ideal de raciocínio lógico. Se considerarmos o verdadeiro alcance do conceito de compreensão no uso da linguagem, veremos que a expressão “círculo hermenêutico” sugere na realidade a estrutura do ser-no-mundo, quer dizer, a superação da divisão entre sujeito e objeto na analítica transcendental da pre-sença levada a cabo por Heidegger. Quem sabe usar uma ferramenta não a converte em objeto, mas trabalha com ela. Assim também o compreender, que permite à pre-sença conhecer-se em seu ser e em seu mundo, não é uma conduta relacionada com determinados objetos de conhecimento, mas seu próprio ser-no-mundo. Desse modo a metodologia hermenêutica de cunho diltheyano se transforma numa “hermenêutica da facticidade” que guia a pergunta de Heidegger pelo ser, incluindo a indagação fundamental do historicismo e de Dilthey. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Logo que Heidegger se deu conta disso, assumiu os riscos do pensamento radical de Nietzsche. Não encontrou outros caminhos a não ser os Holzwege (Sendas perdidas), que depois da curva do caminho esbarravam no intransitável. Mas terá só a linguagem da metafísica o que sustentou esse feitiço paralisante do idealismo transcendental? Heidegger extraiu as últimas conseqüências de sua crítica ao vazio ontológico da consciência e à autoconsciência abandonando a idéia da fundamentação metafísica. Essa virada e esse abandono, não obstante, continuaram sendo uma luta permanente com a metafísica. Para preparar sua superação era preciso não só pôr em evidência o subjetivismo moderno destruindo seus conceitos indemonstrados, mas resgatar à luz do conceito, como elemento positivo, a experiência primordial grega do ser, por trás do auge e do domínio da metafísica ocidental. O retorno de Heidegger à experiência do ser nos inícios pré-socráticos, partindo do conceito aristotélico de physis, foi na realidade um extravio aventureiro. De certo, Heidegger sempre teve presente o objetivo último, embora ainda muito vago: repensar o início, o inicial. Aproximar-se do início significa sempre dar-se conta de outras possibilidades abertas no percurso de retorno do caminho percorrido. Aquele que se situa no começo deve escolher o caminho, e aquele que retorna ao começo percebe que desde o ponto de partida poderia ter escolhido outros caminhos — assim como o pensamento oriental percorreu outros caminhos. Quem sabe se esse último ocorreu à margem da livre escolha, como é o caso da opção ocidental. Deve-se, antes, às circunstâncias que fizeram com que a ausência de uma construção gramatical de sujeito e objeto não levasse o pensamento oriental a desembocar numa metafísica de substância e acidente. Por isso, não surpreende que, em seu regresso ao começo, o próprio Heidegger tenha experimentado certo fascínio pelo pensamento oriental, buscando em vão nele aprofundar-se com a ajuda de visitantes japoneses e chineses. Não é fácil sondar as línguas, sobretudo a base comum de todas as línguas do próprio círculo cultural. Na verdade, mesmo na história das próprias origens é impossível encontrar realmente o começo. O começo retrocede sempre ao incerto, como ocorre ao viajante costeiro na célebre descrição da regressão no tempo, feita por Thomas Mann no início de sua A montanha mágica: por detrás do último relevo aparece sempre outro novo, num processo interminável. Correspondentemente, Heidegger acreditou encontrar a experiência inicial do ser em Anaximandro, em Heráclito, em Parmênides e por fim de novo em Heráclito, sucessivamente, testemunhos da (364) mútua pertença entre desvelamento (Entborgenheit) e velamento (Verbergung). Em Anaximandro acredita encontrar a presença mesma e a permanência de seu ser, em Parmênides o coração sem palpitações da aletheia, em Heráclito a physis que ama esconder-se. Mas tudo isso acaba sendo válido como indicação das palavras que assinalam para o intemporal, mas não para o discurso, quer dizer, para a auto-exposição do pensamento que encontramos nos textos primitivos. Heidegger pôde reconhecer sua própria visão do ser sempre apenas no nome, na força nominativa das palavras e em seus labirintos intransitáveis como artérias de ouro: esse “ser” não deveria ser o ser do ente. Os próprios textos mostraram sempre de novo não serem o último relevo no caminho que abria a visão para a clareira do ser. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Em seu esforço para construir uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito, Dilthey encontrou uma forte oposição da escola epistemológica, que naquele momento também buscava fundamentar as mesmas ciências, partindo do ponto de vista neokantiano, ou seja, da filosofia dos valores desenvolvida por Windelband und Rickert O sujeito epistemológico pareceu-lhe ser uma abstração anêmica. Por mais que ele próprio estivesse entusiasmado pela busca de objetividade nas ciências do espírito, não poderia abstrair do fato de o sujeito conhecente, o historiador que compreende, não estar simplesmente postado frente ao seu objeto, a vida histórica, mas ser sustentado, ele próprio, pelo mesmo movimento da vida histórica. Sobretudo em seus últimos anos, Dilthey buscou cada vez mais fazer justiça à filosofia idealista da identidade, uma vez que no conceito idealístico do espírito estava pensada a mesma generalidade substancial entre sujeito e objeto, entre eu e tu, como ocorria em seu próprio conceito de vida. Aquilo que Georg Misch defendeu de modo tão agudo como ponto de vista da filosofia da vida contra Husserl e Heidegger partilhou com a fenomenologia tanto a crítica a um objetivismo histórico ingênuo quanto a sua justificação epistemológica através da filosofia dos valores vinda do sudoeste da Alemanha. Por mais evidente que tenha sido, a constituição do fato histórico, através da referência aos valores, não fez justiça às implicações do conhecimento histórico no acontecer histórico. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Todas as atuais críticas ao objetivismo e positivismo histórico têm um ponto em comum, a saber, a idéia de que o chamado sujeito do conhecimento tem o mesmo modo de ser do objeto, de modo que objeto e sujeito pertencem à mesma mobilidade histórica. A oposição entre sujeito e objeto talvez seja adequada onde o objeto, frente à res cogitans, é o absolutamente outro, a res extensa. O conhecimento histórico, porém, não pode ser descrito adequadamente por meio desse conceito de objeto e objetividade. Segundo as palavras do Conde York, trata-se de compreender a diferença “genérica” entre “ôntico” e “histórico”, ou seja, trata-se de reconhecer o chamado sujeito no modo de ser da historicidade que lhe é conveniente. Vimos anteriormente como Dilthey não se aprofundou o bastante para poder tirar todas as conseqüências dessa idéia, mesmo que posteriormente tenham sido tiradas. Faltavam os pressupostos conceituais necessários para superar o problema do historicismo, como explicitou, por exemplo, Ernst Troeltsch. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Quando comecei a elaborar uma hermenêutica filosófica, sua própria pré-história exigia que se tomasse as ciências “da compreensão” como ponto de partida. Mas acrescia-se a elas um complemento que até o momento não foi levado em conta. Refiro-me à experiência da arte. Isso porque ambas, a arte e as ciências históricas, são modos de experiência que implicam diretamente nossa própria compreensão da existência. A ajuda conceitual para a problemática da “compreensão”, formulada em sua amplitude correta, foi tomada da elaboração heideggeriana da estrutura existencial da compreensão, que ele chamou primeiramente de “hermenêutica da facticidade”, a auto-interpretação do fáctico, quer dizer, da existência humana real. Meu ponto de partida foi, então, a crítica ao idealismo e a suas tradições românticas. Vi claramente que as formas de consciência que havíamos herdado e adquirido, a consciência estética e a consciência histórica, eram figuras alienadas de nosso verdadeiro ser histórico e que as experiências originárias transmitidas pela arte e pela história não podiam ser compreendidas partindo-se daí. A distância tranqüila que a consciência burguesa gozava de sua cultura ignorava o fato de que todos estamos implicados na situação e nela estamos em jogo. Por isso, a partir do conceito de jogo, busquei superar as ilusões da autoconsciência e os preconceitos do idealismo da consciência. O jogo nunca é um mero objeto, mas existe para aquele que participa dele, mesmo que seja ao modo de espectador. A inadequação dos conceitos de sujeito e objeto, já assinalada por Heidegger na exposição da pergunta pelo ser, formulada em Ser e tempo, poderia ser mostrada aqui de maneira concreta. O que mais tarde levou à “guinada” do pensamento em Heidegger, eu próprio procurei descrever como uma experiência-limite de nossa autocompreensão, como a consciência da história dos efeitos, que é mais ser do que consciência. O que assim formulei não era uma tarefa para a práxis (496) metodológica da arte e da ciência histórica nem tampouco se referia em primeira mão à consciência de método dessas ciências. Referia-se exclusivamente e em primeiro lugar à idéia filosófica da prestação de contas, da explicação. Até que ponto o método é uma garantia de verdade? A filosofia deve exigir da ciência e do método que reconheçam sua parcialidade no conjunto da existência humana e de sua racionalidade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.