Gadamer (VM): Schleiermacher

No entanto, mesmo nos primeiros trabalhos de Dilthey nota-se uma certa insegurança no significado da palavra vivência. Verifica-se isso bastante bem, principalmente num trecho em que Dilthey, nas edições posteriores, faz desaparecer a palavra vivência: “Em correspondência ao que ele vivenciou e, de acordo com a sua ignorância do mundo, ele co-fantasiou como vivência”. De novo volta-se a falar de Rousseau. Mas uma vivência co-fantasiada já não quer se adequar corretamente ao sentido originário da palavra “vivenciar” — nem mesmo quanto ao uso que Dilthey deu à sua própria linguagem científica mais tarde, onde vivência significa justamente o imediatamente dado, que é o último material para toda a configuração de uma fantasia. A cunhagem da palavra “vivência” lembra, claramente, a crítica ao racionalismo do Aufklärung, que, partindo de Rousseau, deu validade ao conceito da vida. Deve ter sido a influência de Rousseau sobre o classicismo alemão que deu vigor ao padrão do “ser vivenciado”, possibilitando assim a formação da palavra “vivência”. O conceito da vida forma, porém, também o pano de fundo metafísico, que sustenta o pensamento especulativo do idealismo alemão, e que desempenha um papel fundamental tanto para Fichte como para Hegel, mas também para Schleiermacher. Em face da abstração do entendimento, bem como em face da particularidade da percepção ou da representação, esse conceito implica a vinculação à totalidade, e ao infinito. Isso é o que se pode perceber nitidamente no tom da palavra vivenciada até os nossos dias. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

O apelo de Schleiermacher ao sentimento vivo contra o frio racionalismo do Aufklärung, a proclamação de Schiller a favor da liberdade estética contra o mecanismo da sociedade, a oposição de Hegel da vida (mais tarde: do espírito) contra a “positividade”, foram o tom antecipador de um protesto contra a moderna sociedade industrial que, no início do nosso século, fizeram ascender as palavras de ordem vivência e vivenciar a um tom quase religioso. O levante do movimento da juventude contra a formação burguesa e suas formas de vida encontrava-se sob esse signo. A influência de Friedrich Nietzsche e de Henri Bergson atuou nessa direção. Mas também um “movimento espiritual” como o que envolveu Stefan George e, não por último, a fineza sismográfica, com a qual o filosofar de Georg Simmel reagiu a esses processos, testemunham a mesma coisa. E assim que a filosofia de vida dos nossos dias se vincula aos seus antecessores românticos. A rejeição à mecanização da vida na existência de massa da atualidade acentua a palavra ainda hoje com uma tal auto-evidência que mantém totalmente encobertas suas implicações conceituais. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Assim ter-se-á de entender a cunhagem do conceito por parte de Dilthey a partir da pré-história romântica da palavra, e lembrar-se-á que Dilthey foi o biógrafo de Schleiermacher. É claro que a palavra “vivência” ainda não se encontra em Schleiermacher, nem mesmo, pelo que parece, a palavra “vivenciar”. Mas o que não falta são sinônimos, que ocupam o círculo do significado da palavra vivência, permanecendo sempre visível o pano de fundo panteístico. Cada ato permanece ligado com um momento de vida da infinitude da vida, que se manifesta nele. Tudo que é finito é expressão, representação do infinito. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

De fato, na biografia de Schleiermacher escrita por Dilthey encontramos, na descrição da contemplação religiosa, uma aplicação especialmente marcante da palavra “vivência”, que já alude ao conteúdo conceitual: “Cada uma de suas vivências, existindo por si, uma específica imagem do universo, extraída do contexto explicativo”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

A representação do todo na vivência do momento vai certamente além do fato de sua determinação, feita pelo seu próprio objeto. Toda vivência é, nas palavras de Schleiermacher, “um momento da vida infinita”. Georg Simmel, que não somente acompanhou a ascensão da palavra “vivência” até se tornar uma expressão da moda, mas que, em boa parte, foi disso co-responsável, vê o que há de marcante no conceito da vivência justamente no fato de que “o objetivo não somente se torna imagem e representação, como no conhecer, mas também momentos do próprio processo de vida”. Alude certa vez ao fato de que, cada vivência tem algo de aventura. Mas o que vem a ser uma aventura? A aventura não é, de forma alguma, apenas um episódio. Os episódios são casos singulares que se enfileiram uns aos outros, que não possuem nenhuma correlação interna e que justamente por esse motivo não têm um significado duradouro. A aventura, ao contrário, embora também interrompa o curso costumeiro das coisas, se relaciona positiva e significativamente com a correlação que interrompe. Por isso a aventura permite que se sinta a vida no todo, na sua amplidão e na sua força. Nisso reside o fascínio da aventura. Dispensa as condicionalidades e os compromissos sob os quais se encontra a vida costumeira. Ousa partir rumo ao que é incerto. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Schleiermacher e Hegel poderiam representar as duas possibilidades extremas de resposta a esta pergunta. Suas respostas poderiam ser designadas com os conceitos de reconstrução e integração. Tanto para Schleiermacher como para Hegel, no começo se encontra a consciência de uma perda e alienação frente à tradição, que é a que move a reflexão hermenêutica. Entretanto, eles determinam a tarefa da hermenêutica cada um de maneira bem diferente. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Schleiermacher, de cuja teoria hermenêutica ainda nos ocuparemos mais tarde, está inteiramente empenhado em reconstruir na compreensão a determinação original de uma obra. Pois arte e literatura, que nos são transmitidas do passado, nos chegam desenraizadas de seu mundo original. Nossas análises já demonstraram que isso vale para todas as artes, e portanto também para a literatura, mas que é particularmente evidente para as artes plásticas. Schleiermacher escreve que o natural e originário já não são mais, “a partir do momento em que as obras de arte entram em circulação. Ou seja, cada uma tem uma parte de sua compreensibilidade a partir de sua determinação original”. “Por isso a obra de arte perde algo de sua significância quando é arrancada de seu contexto originário e este não se conserva historicamente.” Ele chega, inclusive, a dizer: “Assim, uma obra de arte está enraizada, na realidade, também no seu solo e chão, no seu contexto. Ela já perde o seu significado ao ser retirada desse contexto e ao entrar em circulação é como algo que foi salvo do fogo e agora traz as marcas de queimado”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Será que isso não implica, que a obra de arte somente tem seu verdadeiro significado não é uma espécie de reconstrução do originário? Se se identifica e reconhece que a obra de arte não é um objeto a-temporal da vivência estética, mas que pertence a um mundo e que somente este é que poderá determinar plenamente o seu significado, parece que se há de concluir que o verdadeiro significado da obra de arte só se pode compreender a partir deste mundo, portanto, principalmente a partir da sua origem e de seu surgimento. A reconstrução do “mundo” a que pertence, a reconstrução do estado originário que havia [172] existido na “intenção” do artista criador, a execução no estilo original, todos esses meios de reconstrução histórica teriam então o direito de reivindicar que eles tornam compreensível o verdadeiro significado da obra de arte e que o protegem contra mal-entendidos e falsas atualizações. E essa é, efetivamente, a ideia de Schleiermacher, o pressuposto tácito de toda a sua hermenêutica. Segundo ele, o saber histórico abre o caminho que permite suprir o que foi perdido e reconstruir a tradição, na medida em que nos devolve o ocasional e o originário. Assim, o empenho hermenêutico se orienta para a recuperação do “ponto de conexão” com o espírito do artista, que é o que deve fazer inteiramente compreensível o significado de uma obra de arte; procede como, fora isso, o faz ante textos, procurando re-produzir o que foi a produção original do autor. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Face a isso, Hegel oferece uma possibilidade diferente, isto é, de compensar entre si o ganho e a perda da empresa hermenêutica. Hegel tem a mais clara consciência da importância de qualquer restauração, quando ele, com relação ao ocaso da vida antiga e de sua “religião da arte”, escreve: “As obras da musa são agora, o que são para nós — belos frutos arrancados da árvore; um destino amável nô-los ofereceu, como uma jovem [173] presenteia aqueles frutos; não existe a vida real de sua existência, não existe a árvore que os produziu, não há a terra nem os elementos que perfizeram sua sustância, nem o clima que perfez sua determinação, nem a mudança das estações que dominavam o processo de seu devir. Assim, com as obras daquela arte, o destino não nos dá seu mundo, nem a primavera ou o verão da vida moral em que floresceram e maduraram, mas apenas a lembrança velada daquela realidade”. E, ao comportamento das gerações posteriores com respeito às obras de arte transmitidas, denomina ele de um “labor exterior”, “que talvez retire uma gota de chuva ou um pozinho desses frutos, e que em lugar dos elementos interiores da realidade do ético, que os rodeava, que os produziu e lhes deu alma, erige o aparato prolixo dos elementos mortos de sua existência externa, da linguagem, do histórico etc, não para adentrá-los, experimentando-lhe a vida, mas somente para imaginá-los”. O que Hegel descreve aqui é exatamente o que compreende a exigência de Schleiermacher de uma conservação histórica, mas que em Hegel traz, desde o princípio, um acento negativo. A investigação do ocasional, que complementa o significado das obras de arte, não está em condições de reconstruir a este. Continuam sendo frutos arrancados da árvore. Fazendo-os retornar ao seu contexto histórico, não se adquire nenhuma relação vital com eles, mas apenas uma relação imaginativa. Hegel não contesta, com isso, a legitimidade de adotar um tal comportamento histórico ante a arte do passado. O que faz é expressar o princípio da investigação da história da arte, que, como todo comportamento “histórico”, não é, aos olhos de Hegel, mais que um labor externo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Neste ponto Hegel aponta para além da dimensão global em que se havia colocado o problema da compreensão em Schleiermacher. Hegel o eleva à base, sobre a qual ele fundamenta a filosofia como a forma mais alta do espírito absoluto. No saber absoluto da filosofia leva-se a cabo aquela autoconsciência do espírito que, como diz o texto, abrange, “de um modo superior”, também a verdade da arte. Desse modo, para Hegel é a filosofia, isto é, a auto-imposição histórica do espírito, que domina a tarefa hermenêutica. Nela o comportamento histórico da imaginação se transforma em um comportamento pensante com respeito ao passado. Hegel expressa assim uma verdade categórica, dizendo que a essência do espírito histórico não consiste na restituição do passado, mas na mediação de pensamento com a vida atual. Hegel tem razão quando se nega a pensar essa mediação de pensamento como uma relação externa e posterior, e a coloca no mesmo nível que a verdade da arte. Com isso ele ultrapassa fundamentalmente a ideia da hermenêutica de Schleiermacher. Também para nós a questão da verdade da arte obrigou a uma crítica da consciência tanto estética como histórica, ao mesmo temo em que indagamos pela verdade que se manifesta na arte e na história. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Se reconhecermos como tarefa seguir mais Hegel do que Schleiermacher, teremos de acentuar a história da hermenêutica de um modo totalmente novo. Esta já não terá sua realização na liberação da compreensão histórica de todos os pressupostos dogmáticos, e já não poder-se-á considerar a gênese da hermenêutica sob o aspecto em que a apresentou Dilthey, seguindo os passos de Schleiermacher. Nossa tarefa, antes, será refazer o caminho aberto por Dilthey, atendendo a objetivos diversos dos que ele tinha em mente com a sua autoconsciência histórica. Nesse sentido desviar-nos-emos inteiramente do interesse dogmático pelo problema hermenêutico que o Antigo Testamento despertou já na igreja antiga, e nos contentaremos em palmilhar o desenvolvimento do método hermenêutico na Idade Moderna, que desemboca da consciência histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A formação de uma ciência da hermenêutica, como foi desenvolvida por Schleiermacher na confrontação como os filólogos RA. Wolf e F. Ast, e em continuação à hermenêutica teológica de Ersnesti, não representa, pois, um mero passo adiante na história da arte da própria compreensão. Em si mesma, essa história da compreensão tem estado acompanhada pela reflexão teórica desde os tempos da filologia antiga. Essas reflexões, porém, têm o caráter de uma “doutrina da arte”, isto é, pretendem servir à arte da compreensão do mesmo modo que a retórica serve à arte de falar e a poética à arte de compor e a seu julgamento.íesse sentido também a hermenêutica teológica da patrística e da Reforma foi uma doutrina da arte. Todavia, agora é a compreensão como tal que se converte em problema. A generalidade desse problema é um testemunho de que a compreensão se converteu em uma tarefa num sentido novo, e que com isso também a reflexão teórica recebe um novo sentido. Ela já não é uma doutrina da arte a serviço da práxis do filólogo ou do teólogo. É verdade que o próprio Schleiermacher acaba dando à sua hermenêutica o nome de doutrina da arte, porém, em um sentido sistemático completamente diferente. E busca alcançar a fundamentação teórica do procedimento comum a teólogos e filólogos, na medida em que, aquém de ambos os interesses, remonta a uma relação mais originária da compreensão do pensamento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Os filólogos, que foram seus precedentes imediatos, se encontravam ainda numa outra posição. Para eles a hermenêutica era determinada pelo conteúdo do que se devia compreender — e isso consistia a unidade óbvia da literatura vétero-cristã. O que Ast propõe como objetivo de uma hermenêutica universal, isto é, “alcançar a unidade da vida grega e cristã”, expressa o que pensam, no fundo, todos os “humanistas cristãos”. — Schleiermacher, ao contrário, já não busca a unidade da hermenêutica na unidade de conteúdo da tradição, a que se deve aplicar a compreensão, mas a procura, à margem de toda especificação de conteúdo, na unidade de um procedimento que nem sequer é diferenciada pelo modo como as ideias foram transmitidas, se por escrito ou oralmente, se numa língua estranha ou na própria e contemporânea. O esforço da compreensão tem lugar cada vez que não se dá uma compreensão imediata, e correspondentemente cada vez que se tem de contar com a possibilidade de um mal-entendido. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Este é o contexto, a partir do qual se determina a ideia de Schleiermacher de uma hermenêutica universal. Essa ideia [183] nasceu da representação de que a experiência da alteridade e da possibilidade do mal-entendido são universais. Não resta dúvida de que essa alteridade torna-se maior no discurso artístico, e o mal-entendido mais provável do que no discurso sem arte, e torna-se mais aguda no discurso fixado por escrito do que no oral, que na viva voz é de igual modo constantemente também interpretado. Mas precisamente a extensão da tarefa hermenêutica ao “diálogo significativo”, tão característica de Schleiermacher, mostra como se transformou o sentido da estranheza, cuja superação a hermenêutica deve promover, frente ao que até então havia sido a proposição de tarefas da hermenêutica. Num sentido novo e universal, a estranheza está ligada indissoluvelmente com a individualidade do tu. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Este sentido vivo e mesmo genial que Schleiermacher caracteriza para a individualidade humana não deve ser tomado como uma característica individual que estivesse influindo, aqui na sua teoria. É, antes, a repulsa crítica contra tudo o que, na era do Aufklärung, se fazia passar por essência comum da humanidade, sob o título de “pensamentos racionais”, o que leva necessariamente a determinar de uma maneira fundamentalmente nova a relação com a tradição. A arte de compreender é honrada com uma atenção teórica de princípio e com um cultivo universal, porque nem um consenso fundamentado biblicamente, nem racionalmente, não formam mais o fio condutor dogmático de toda compreensão de texto. Por isso é que importa a Schleiermacher proporcionar à reflexão hermenêutica uma motivação fundamental, que situe o problema da hermenêutica num horizonte que esta não havia conhecido até então. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Para poder situar em seu pano de fundo correto a verdadeira virada que Schleiermacher dá à história da hermenêutica, começaremos com uma reflexão que nele não desempenha o menor papel, e que desde ele desapareceu por completo dos questionamentos da hermenêutica (coisa que também restringe de uma maneira muito peculiar o interesse histórico de Dilthey pela história da hermenêutica), que na verdade domina o problema da hermenêutica e só através da qual torna-se compreensível a posição que Schleiermacher ocupa na história da hermenêutica. Partiremos do lema: compreender significa, de princípio, entender-se uns com os outros. Compreensão é, de princípio, entendimento. Assim, os homens se entendem entre si, na maioria das vezes imediatamente, isto é, vão se pondo de acordo até chegar a um entendimento. Acordo é sempre, portanto, acordo sobre algo. Compreender-se é compreender-se em [184] algo. Já a linguagem mostra que o “sobre quê” e o “em quê” não são apenas um objeto qualquer do discurso, do qual a compreensão mútua pudesse prescindir ao buscar seu caminho, mas são, antes, caminho e meta do próprio compreender-se. E quando se pode dizer que duas pessoas se entendem, independentemente do “sobre quê” e do “em quê”, isso quer dizer que não somente se entendem nisso ou naquilo, mas em todas as coisas essenciais que unem os homens. A compreensão só se converte numa tarefa especial no momento em que esta vida natural experimenta alguma distorção no co-visar do visado, que é um visar da coisa em causa comum. No momento em que se produz um mal-entendido, ou alguém manifesta uma opinião que causa estranheza por ser incompreensível, é apenas aí que a vida natural fica tão inibida com relação à coisa em causa comum, que a opinião enquanto opinião, isto é, enquanto opinião do outro, do tu ou do texto, se converte num dado fixo. Mas mesmo assim, ainda se procura em geral chegar a um acordo, e não somente compreender. E isso, de tal modo, que se refaz o caminho em direção à coisa em causa. Só quando se mostram vãs todas essas idas e vindas, que perfazem a arte do diálogo, da argumentação, do perguntar e do responder, do objetar e do refutar, e que se realizam também face a um texto como diálogo interior da alma que busca a compreensão, far-se-á uma mudança no questionamento. Só então o esforço da compreensão vai perceber a individualidade do tu e considerar sua peculiaridade. Na medida em que se trata de uma língua estrangeira, o texto já será, isso não é mais do que uma condição prévia. O verdadeiro problema da compreensão aparece quando, no esforço de compreender um conteúdo, coloca-se a pergunta reflexiva de como o outro chegou à sua opinião. Pois é evidente que um questionamento como este anuncia uma forma de alteridade bem diferente, e significa, em último caso, a renúncia a um sentido comum. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

b) O projeto de Schleiermacher de uma hermenêutica universal VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Como se vê, a pré-história da hermenêutica do século XIX adquire um aspecto bastante diferente se não a considerarmos mais sob as premissas de Dilthey. Que guinada se dá entre Spinoza e Chladenius, de um lado, e Schleiermacher, do outro! A incompreensibilidade, que para Spinoza, motivava o rodeio pelo histórico e que para Chladenius, convoca a arte da interpretação para um sentido de orientação completamente objetivo, adquire em Schleiermacher um significado completamente diverso e universal. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Para começar, já teremos uma diferença interessante, caso minha impressão esteja correta, no fato de que Schleiermacher não fale tanto da incompreensão como de mal-entendido. O que ele tem em vista já não é mais a situação pedagógica da interpretação, que procura ajudar a compreensão do outro, do aluno. Ao contrário, nele a interpretação e a compreensão se interpretam tão intimamente como a palavra exterior e interior, e todos os problemas da interpretação são, na realidade, problemas da compreensão. Trata-se apenas da subtilitas intelligendi, não da subtilitas explicando (para não falar da applicatio). Mas, Schleiermacher faz, sobretudo, uma diferenciação expressa entre a praxis mais laxista da hermenêutica, segundo a qual a compreensão se realiza por si mesma, e a praxis mais estrita que parte da ideia de que o mal-entendido se produz por si mesmo. Sobre essa diferença fundamentou seu desempenho próprio: desenvolver, em lugar de uma “agregação de observações”, uma verdadeira doutrina da arte do compreender. E isso significa algo fundamentalmente novo. A dificuldade de compreensão e do mal-entendido já não são levados em conta somente como momentos ocasionais, mas como momentos integradores que se procura desconectar previamente. Schleiermacher chega inclusive a definir que: “a hermenêutica é a arte de evitar o mal-entendido”. Para além da ocasionalidade pedagógica da prática da interpretação, a hermenêutica se eleva à autonomia deum método, pois “o mal-entendido se produz por [189] si mesmo, e a compreensão é algo que temos de querer e de procurar em cada ponto”. Evitar o mal-entendido — “Todas as tarefas estão contidas nesta expressão negativa”. Sua resolução positiva está, para Schleiermacher, num cânon de regras gramaticais e psicológicas de interpretação, que se afastam por completo de qualquer liame dogmático de conteúdo, inclusive na consciência do intérprete. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Obviamente, que Schleiermacher não é o primeiro a restringir a tarefa da hermenêutica nisso, em tornar compreensível aquilo que é intensionado por outros em discursos e textos. A arte da hermenêutica não tem sido nunca o organon da investigação da coisa em causa. Isso distinguiu-a desde o início do que Schleiermacher denomina dialética. Entretanto, sempre que alguém se esforça por compreender — por exemplo, a Escritura Sagrada ou os clássicos — está operando, indiretamente, uma referência à verdade que está oculta no texto e que deve chegar à luz. O que se deve compreender, na realidade, não é uma ideia, enquanto um momento vital, mas enquanto uma verdade. Este é o motivo por que a hermenêutica possui uma função auxiliar e permanece subordinada à investigação da coisa em causa. Também Schleiermacher leva isso em conta, desde o momento em que relaciona a hermenêutica por princípio — no sistema das ciências — à dialética. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Mesmo assim, a tarefa que ele se impõe é, precisamente, a de separar o procedimento do compreender. Trata-se de torná-lo autônomo, como uma metodologia própria. A isso estará unida também, para Schleiermacher, a necessidade de libertar-se das proposições de tarefas redutoras, que tinham determinado em seus predecessores, Wolf e Ast, a essência da hermenêutica. Não aceita nem a restrição às línguas estrangeiras nem sequer a restrição aos escritores, “como se isso mesmo não pudesse ocorrer igualmente na conversação e no discurso apreendido imediatamente”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Schleiermacher entende que estas só podem ser compreendidas adequadamente retrocedendo até a gênese das ideias. O que para Spinoza representa um caso extremo da compreensibilidade, obrigando, com isso, a um rodeio histórico, converte-se, para ele, no caso normal e constitui a pressuposição a partir da qual ele desenvolve a teoria da compreensão. O que ele encontra “de mais relegado e em parte até mesmo completamente abandonado” é “o compreender uma série de ideias ao mesmo tempo como um momento vital que irrompe, como um ato que está em conexão com muitos outros, inclusive de natureza [190] diferente”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Assim, paralelamente à interpretação gramatical, ele coloca a psicológica (técnica) — e nesta é que se encontra o que ele tem de mais próprio. No que se segue, deixaremos de lado as elaborações de Schleiermacher sobre a interpretação gramatical, que em si mesmas são da maior perspicácia. Elas são primorosas para o papel que a totalidade já dada da linguagem desempenha para o autor — e com isso também para o seu intérprete, assim como para o significado do todo de uma literatura para cada obra individual. Pode ser também — como uma nova investigação do legado de Schleiermacher torna provável — , que a interpretação psicológica, no desenvolvimento do pensamento de Schleiermacher, só adquira paulatinamente sua posição de primeiro plano. Seja como for, essa interpretação psicológica tornou-se realmente determinante para a formação das teorias do século XIX — para Savigny, Boeckh, Steinthal, e sobretudo para Dilthey. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Para Schleiermacher, a cisão metodológica entre filologia e dogmática continua sendo essencial, até mesmo face à Bíblia, onde a interpretação psicológico-individual de cada um de [191] seus autores fica muito atrás do significado do que há neles de unitário e comum dogmaticamente. A hermenêutica abrange a arte da interpretação gramatical e psicológica. É, em última análise, um comportamento divinatório, um transferir-se para dentro da constituição completa do escritor, um conceber o “decurso interno” da feitura da obra, uma reformulação do ato criador. A compreensão é, pois, uma re-produção referida à produção original, um reconhecer do conhecido (Boeckh), uma pós-construção, que parte do momento vivo da concepção, da “decisão germinal” como o ponto de organização da composição. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Porém, uma tal descrição da compreensão que separa, significa que a configuração das ideias que procuramos compreender como discurso ou como texto não é compreendida com referência ao seu conteúdo objetivo, mas como uma configuração estética, como obra de arte ou “pensamento artístico”. Se afirmarmos isso entenderemos por que aqui não se trata da relação com a coisa (em Schleiermacher “o ser”). Schleiermacher segue as determinações fundamentais de Kant, quando diz que o “pensamento artístico” “somente se distingue pelo maior ou menor prazer”, e é propriamente “só o ato momentâneo do sujeito”. A esta altura, é naturalmente a pressuposição, pela qual se colocou pela primeira vez a tarefa da compreensão que faz com que este “pensamento artístico” não seja um simples ato momentâneo, mas que se exterioriza. Schleiermacher vê no “pensamento artístico” momentos especiais da vida, nos quais dá-se um prazer tão grande que eles irrompem em exteriorização, mas mesmo assim — e, por mais que suscitem prazer nas “imagens originais das obras de arte” — continuam sendo um pensamento individual, livre combinação, não vinculada pelo ser. É exatamente isso que distingue os textos poéticos dos científicos. Schleiermacher quer dizer com isso, certamente, que o discurso poético não se submete ao padrão de entendimento sobre a coisa em causa, descrito acima, porque o que nele se diz não é dissociável do “como”, da maneira de ser dito. Por exemplo, a guerra de Troia está no poema homérico — quem se volta para a realidade histórica da coisa em causa lê mais Homero como discurso poético. Ninguém [192] quereria afirmar que o poema tenha ganho algo de realidade artística através das escavações dos arqueólogos. O que se deve compreender aqui não é precisamente um pensamento comum da coisa em causa, mas um pensamento individual, que, por sua essência, é combinação livre, expressão, livre exteriorização de uma essência individual. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Com isto, porém, mostra-se característico para Schleiermacher que ele procura em tudo esse momento da produção livre. Também o diálogo, de que se falava há pouco, recebe de Schleiermacher essa mesma distinção quando, ao lado do “verdadeiro diálogo”, que busca um saber comum do sentido e que constitui a forma original da dialética, ele conhece o “diálogo livre” e atribui este ao pensamento artístico. Neste as ideias “praticamente não são levadas em consideração pelo seu conteúdo. — O diálogo não é mais que uma estimulação recíproca da geração de ideias (“e seu fim natural não é outro que o esgotamento paulatino do processo descrito”), uma espécie de construção artística na relação recíproca da comunicação. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Enquanto que o discurso não é somente interno da geração de ideias, mas também comunicação, e como tal possui uma forma externa, não é somente manifestação imediata da ideia, mas já pressupõe reflexão. E isso há de valer naturalmente tanto mais para o que está fixado por escrito, portanto, para todos os textos. Eles já são sempre representação através da arte. E aí onde o discurso é arte, o é também o compreender. Todo discurso e todo texto estão referidos fundamentalmente à arte de compreender, à hermenêutica, e assim se explica a pertença mútua da retórica (que é parte da estética) e da hermenêutica: cada ato de compreender é, para Schleiermacher, a inversão de um ato de falar, a pós-construção de uma construção. Correspondentemente, a hermenêutica é uma espécie de inversão da retórica e da poética. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Para nós é um pouco estranho o fato de que, desse modo reúne-se a poesia com a arte do discurso. Pois, parece-nos que o que caracteriza e dá dignidade à arte é justamente que, nela, a linguagem não é discurso, isto é, o fato de que possui uma unidade de sentido e de forma que é independente de toda relação de falar e de ser interpelado e persuadido. O conceito de Schleiermacher sobre “pensar artístico”, sob o qual ele reúne a arte da poesia e a arte do discurso, considera, pelo contrário, não o produto mas o modo de comportamento do sujeito. Assim, também o falar é concebido aqui puramente como arte, isto é, abstraindo de toda relação a objetivos e à coisa em causa, como expressão de uma produtividade plástica. [193] E não obstante, a passagem entre o artístico e o carente de arte é, então, fluente — como é fluente também a passagem da compreensão sem arte (imediata) para um procedimento cheio de arte. Enquanto que essa produção ocorre mecanicamente, segundo leis e regras, e não de uma maneira inconsciente-genial, o intérprete realiza a composição conscientemente; mas enquanto ela é uma produção individual do gênio, produção criadora em sentido autêntico, já não pode dar-se essa pós-facção através de regras. O próprio gênio é o que forma os padrões e dá as regras: cria novas formas de uso linguístico, da composição literária etc. Schleiermacher leva muito em consideração essa diferença. Pelo lado da hermenêutica, a essa produção genial corresponde o fato de que ele necessita da adivinhação, do adivinhar de imediato que, em última análise, pressupõe uma espécie de congenialidade. Se agora, porém, os limites entre a produção sem arte e com arte, mecânica e genial, são movediços, na medida em que o que se expressa é sempre uma individualidade, e nela sempre opera um momento da genialidade livre de regras — como ocorre com as crianças que crescem em um idioma — segue-se que o fundamento último de toda compreensão terá que ser sempre um ato divinatório da congenialidade, cuja possibilidade repousa sobre uma vinculação prévia de todas as individualidades. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Este é, efetivamente, o pressuposto de Schleiermacher: que cada individualidade é uma manifestação do viver total e que, por isso, “cada qual traz em si um mínimo de cada um dos demais, e isso estimula a adivinhação por comparação consigo mesmo”. Assim, ele pode dizer que se deve conceber imediatamente a individualidade do autor, “transformando a si mesmo ao mesmo tempo no outro”. Ao pontualizar desse modo a compreensão no problema da individualidade, surge, para Schleiermacher a tarefa da hermenêutica como uma hermenêutica universal. Pois tanto o extremo da alteridade como o da familiaridade dão-se com a diferença relativa de toda individualidade. O “método” do compreender terá em vista tanto o comum — por comparação — como o peculiar — por adivinhação — isto é, terá de ser tanto comparativo como adivinhatório. Em ambas as perspectivas, porém, continuará sendo “arte”, porque não pode ser mecanizado como se fosse mera aplicação de regras. O adivinhatório continua imprescindível. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Sobre a base dessa metafísica estética da individualidade os princípios hermenêuticos usuais a filólogos e teólogos sofrem uma mudança de rumo peculiar. Schleiermacher segue Friedrich Ast e toda a tradição hermenêutico-retórica, quando reconhece como um traço essencial do compreender o fato de que o sentido do peculiar é sempre somente resultante do contexto [194], e, em última análise, do todo. Esse postulado vale naturalmente para uma gama que vai desde a compreensão gramatical de cada frase, até sua integração no contexto do todo de uma obra literária, e até o todo da literatura e, correspondentemente, o respectivo gênero literário — Schleiermacher aplica-o agora, porém, à compreensão psicológica, que tem de compreender cada formulação do pensamento como um momento vital no contexto total deste homem. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

No entanto, Schleiermacher declara que esses fios condutores dogmáticos não podem reivindicar nenhuma validez prévia, e por isso, são apenas restrições relativas do círculo. Em princípio, compreender é sempre um mover-se nesse círculo, e por isso é essencial o constante retorno do todo às partes e vice-versa. A isso se acrescenta que esse círculo está sempre se ampliando, já que o conceito do todo é relativo, e a integração em contextos cada vez maiores afeta sempre também a compreensão do individual. Schleiermacher aplica à hermenêutica esse seu procedimento tão habitual de uma descrição dialética polar, e com isso presta conta da provisoriedade interna e da infinidade da compreensão, na medida em que o desenvolve a partir do velho princípio hermenêutico do todo e das partes. Não obstante, a relativização especulativa que o caracteriza representa mais um esquema descritivo de ordenação para o processo do compreender, do que se ela fosse intencionada fundamentalmente. Isso mostra-se no fato de que, ao introduzir a transposição adivinhatória, ele admite algo como uma compreensão completa: “Até que, finalmente, todo particular, de repente, recebe sua luz plena”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Caberia indagar se tais formulações (que aparecem com o mesmo sentido também em Boeckh) podem ser tomadas estritamente ou se propriamente devem descrever só uma perfeição relativa da compreensão. Certamente que Schleiermacher — como, de uma maneira mais decidida, Wilhelm von Humboldt — considera a individualidade como um mistério que jamais pode ser revelado de todo. Todavia, justamente essa tese só almeja ser entendida como relativa: A barreira que se levanta aqui frente à razão e o conceber não é insuperável em todos os sentidos. Ela deve ser ultrapassada através do sentimento, portanto, com uma compreensão imediata, simpatética e congenial: a hermenêutica é, justamente, arte e não procedimento mecânico. Assim, leva a cabo sua obra, a compreensão, tal como se realiza uma obra de arte. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O limite dessa hermenêutica, fundamentada no conceito [195] da individualidade, mostra-se no fato de que Schleiermacher não considera a tarefa da filologia e da exegese bíblica, a de compreender um texto composto em uma língua estrangeira e procedente de uma época passada mais problemática do que qualquer outro compreender. Evidentemente que também para Schleiermacher coloca-se uma tarefa especial, lá onde se tem de superar uma distância no tempo. Schleiermacher chama-o de “equiparação com o leitor original”. Mas essa “operação do ser igual”, a produção linguística e histórica dessa igualdade não é para o verdadeiro ato do compreender, que, para ele, não é a equiparação com o leitor original, mas a equiparação com o autor, através da qual o texto é aberto como manifestação vital própria de seu autor. O problema de Schleiermacher não é o da obscuridade da história mas a obscuridade do tu. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

E de se perguntar, se se pode fazer essa distinção entre a compreensão e a produção da igualdade com o leitor original. Na verdade, essa condição prévia ideal da equiparação com o leitor não se pode realizar antes do esforço da compreensão propriamente dito, já que está absolutamente absorvida por este. Também a intenção de um texto contemporâneo, com cuja linguagem não estamos suficientemente familiarizados ou cujo conteúdo nos seja estranho, só nos virá a ser revelada do modo já descrito, no vaivém do movimento circular entre o todo e as partes. É o que Schleiermacher também reconhece. É sempre nesse movimento, que se aprende a compreender uma opinião estranha, uma língua estrangeira, ou um passado estranho. Dá-se um movimento circular “porque nada do que se deve interpretar pode ser compreendido de uma só vez”. Pois, mesmo dentro da própria língua ainda vale o fato de que o leitor tem de apropriar-se inteiramente do acervo linguístico da sua intenção. Porém, dessas constatações, que são encontradas no próprio Schleiermacher, segue-se que a equiparação com o leitor original, da qual ele fala, não é uma operação precedente, que pudesse ser separada do esforço da compreensão propriamente dito, que para ele equivale à equiparação com o autor. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Examinemos agora mais de perto o que Schleiermacher quer dizer com essa equiparação. Pois obviamente, não pode tratar-se de pura e simples identificação. A reprodução sempre é essencialmente diferente da produção. É assim que Schleiermacher chega ao postulado, de que importa compreender um autor, melhor do que ele próprio teria se compreendido — uma fórmula que, desde então, tem sido repetida incessantemente, e em cujas interpretações cambiantes caracteriza-se toda a história da hermenêutica moderna. De fato, nesse postulado encerra-se o verdadeiro problema da hermenêutica. Por [196] isso valerá a pena que nos aproximemos um pouco mais do sentido dessa fórmula. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O que essa fórmula quer dizer em Schleiermacher, é claro. Para ele, o ato da compreensão é a realização re-construtiva de uma produção. Tem que nos tornar conscientes de algumas coisas que ao produtor original podem ter ficado inconscientes. O que Schleiermacher introduz, aqui, em sua hermenêutica geral, é evidentemente a estética do gênio. O modo de criar do artista genial é o caso modelo, a que se reporta a teoria da produção inconsciente e da consciência necessária na reprodução. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Disso segue-se — o que a hermenêutica não deveria esquecer nunca — que o artista que cria uma configuração não é o intérprete vocacionado para ela. Como intérprete não tem nenhuma primazia básica de autoridade face ao que meramente a recebe. No momento em que ele próprio reflete, converte-se em seu próprio leitor. Sua opinião, como produto dessa reflexão, não é padronizadora. O único padrão de interpretação é o conteúdo de sentido da sua criação, aquilo que esta “tem em mente”. A teoria da produção genial realiza, assim, um importante desempenho teórico ao extinguir a diferença entre o intérprete e o autor. Ela legitima a equiparação de ambos, na medida em que o que tem de ser compreendido não é, obviamente, a auto-interpretação reflexiva, mas a intenção inconsciente do autor. E não foi outra coisa que Schleiermacher quis dizer com a sua fórmula paradoxal. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Seguindo Schleiermacher, também outros repetiram sua fórmula no mesmo sentido, por exemplo, August Boeckh, Steinthal e Dilthey: “O filólogo entende melhor o orador e o poeta, do que este se entende a si mesmo, e melhor do que o entenderam os que eram simplesmente seus contemporâneos. Pois ele torna claramente consciente o que naquele somente prejazia de maneira inconsciente e fática”. Através do “conhecimento das leis psicológicas” o filólogo pode aprofundar a compreensão conhecedora, até convertê-la em conceitual, na medida em que chega ao fundo da causalidade, da gênese da obra do discurso da mecânica do espírito compositor. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A repetição da frase de Schleiermacher por Steinthal mostra já os efeitos da pesquisa das leis psicológicas, que a pesquisa da natureza havia tomado como modelo. Nisso Dilthey é mais livre, enquanto conserva com mais força a conexão com a estética do gênio. Aplica a fórmula em questão, particularmente na interpretação dos poetas. Compreender a “ideia” de um poema, a partir de sua “forma interior”, pode-se dizer, obviamente, que é “compreender melhor esta ideia”. Dilthey vê nisso pouco menos que o “supremo triunfo da hermenêutica”, pois o conteúdo filosófico da grande poesia abre-se aqui, através do fato de que a compreendemos como criação livre. A criação livre não está restringida por condições externas ou materiais, e, por isso só pode ser concebida como “forma interior”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Na verdade, a fórmula de Schleiermacher tem uma pré-história. Bollnow, que perseguiu essa questão, apresenta duas passagens nas quais se encontra esta fórmula antes de Schleiermacher: em Fichte e em Kant. Não foi possível [198] comprovar a existência de testemunhos mais antigos. Isso faz supor a Bollnow que talvez se trate de uma tradição oral, de uma espécie de regra filológica de trabalho, que provavelmente vinha sendo transmitida de uns para os outros e que Schleiermacher se assenhoreou. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Por isso, de antemão é possível que apenas para Schleiermacher, que autorizou a hermenêutica até fazer dela um método à margem de qualquer conteúdo, pôde ser levada em consideração uma formulação que reivindicou tão fundamentalmente a superioridade do intérprete sobre seu objeto. Se observarmos mais de perto, compreenderemos que a aparição da fórmula em Fichte e Kant corresponde a isso. Pois o contexto em que, ali, aparece essa suposta regra filológica de trabalho, demonstra que Fichte e Kant tinham em mente algo totalmente diferente. Ali não se trata, de modo algum, de um princípio da filologia, mas de uma pretensão da filosofia, ou seja, a de superar as contradições que possam ser encontradas numa tese, através de uma maior clareza conceitual. E pois um princípio que expressa, absolutamente consoante o espírito do racionalismo, que só se alcançam as evidências que correspondem à verdadeira intenção do autor através do pensamento, através do desenvolvimento das consequências localizadas nos conceitos do autor — evidências que o autor teria que ter compartilhado, se tivesse pensado com suficiente clareza e nitidez. Também a tese, hermeneuticamente absurda, em que se mete Fichte na sua polêmica contra a interpretação kantiana [199] dominante, segundo a qual “uma coisa é o inventor de um sistema e outra, seus intérpretes e seguidores”, assim como sua pretensão de explicar Kant “segundo o espírito”, estão inteiramente impregnadas com as pretensões da crítica objetiva. A discutida fórmula não forrnula nada mais do que a reivindicação de uma crítica filosófica objetiva. Aquele que melhor souber pensar até o fim aquiío de que fala o autor estará capacitado para ver o que este diz, à luz de uma verdade ainda oculta para o próprio autor. Neste sentido, o princípio, segundo o qual devemos compreender um autor melhor do que ele se compreendeu a si mesmo, é antiquíssimo, tanto como a crítica científica em geral. Todavia, ele recebe sua cunhagem como fórmula para a crítica filosófica objetiva no espírito do racionalismo. E é natural que, como tal, ganhe um sentido muito diverso do que a regra filológica em Schleiermacher. É quase de se supor que justamente Schleiermacher reinterpretou este princípio da crítica filosófica, transformando-o em um princípio da arte da interpretação filológica. E com isso marca-se com exatidão a posição na qual se encontram Schleiermacher [200] e o romantismo. Ao criar uma hermenêutica universal, eles expulsam a crítica guiada pela compreensão da coisa em causa, para fora do âmbito da interpretação científica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A fórmula de Schleiermacher, tal qual ele a entende, não inclui mais a própria coisa de que se está falando, mas considera a expressão que representa um texto, abstraindo de seu conteúdo de conhecimento, como uma produção livre. Corresponde a isso o fato de que ele orienta a hermenêutica, que nele está voltada para a compreensão de tudo o que é linguístico, segundo o modelo estandártico da própria linguagem. O falar do indivíduo é efetivamente um fazer livre e configurador, por mais que suas possibilidades estejam restritas pela estruturação fixa da língua. A linguagem é um campo de expressão e sua primazia no campo da hermenêutica significa, para Schleiermacher, que ele, como intérprete, considera os textos como puros fenômenos de expressão, à margem de sua pretensão de verdade. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Mesmo a história não é para ele mais que uma tal peça teatral de livre criação, ou seja, a peça de uma produtividade divina, e ele entende o comportamento histórico como a contemplação e o desfrute desse grandioso teatro. Esse desfrute da reflexão romântica sobre a história aparece muito bem descrito numa passagem do diário de Schleiermacher, publicado por Dilthey: “O verdadeiro sentido histórico se eleva acima da história. Todos os fenômenos estão aí tão-somente como milagres sagrados, para orientar a consideração rumo ao espírito que os produziu jogando”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Lendo um testemunho como este, pode-se medir como teria de ser forte o passo que deveria conduzir da hermenêutica de Schleiermacher a uma compreensão universal das ciências históricas do espírito. Por mais universal que fosse a hermenêutica desenvolvida por Schleiermacher, tratava-se de uma universalidade limitada por uma barreira muito sensível. Sua hermenêutica tinha em mente, na verdade, textos cuja autoridade estava firme. Representa obviamente um passo importante [201] no desenvolvimento da consciência histórica o fato de que, com isso, a compreensão e interpretação tanto da Bíblia como da literatura da antiguidade clássica foram liberadas inteiramente do interesse dogmático. Nem a verdade salvadora da Escritura Sagrada, nem o caráter modelar dos clássicos deviam influenciar o procedimento que era capaz de compreender a expressão de vida de todo texto, deixando de lado a verdade do que diz. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Entretanto, o interesse que motivou Schleiermacher a essa abstração metodológica não era o do historiador, mas o do teólogo. Ele queria ensinar como se deve entender o discurso e a tradição escrita, porque o interesse está numa tradição única, a Bíblia, que importa à doutrina da fé. Por isso, sua teoria hermenêutica estava muito longe de uma historiografia que pudesse servir de organon metodológico às ciências do espírito. Sua meta era a apresentação determinada de textos, meta à qual devia servir também o comum dos nexos históricos. Esta é a barreira de Schleiermacher, frente à qual a concepção histórica do mundo não poderia ficar de pé. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Teremos de nos indagar, como pôde tornar-se compreensível aos historiadores o seu próprio trabalho, partindo de sua teoria hermenêutica. Seu tema não é um texto avulso, individual, mas a história universal. O que perfaz o historiador é o fato de que ele quer compreender a totalidade dos nexos da história da humanidade. Todo texto individual não possui, para ele, um valor próprio, mas serve-lhe meramente como fonte. Isto significa, porém, unicamente como um material mediador para o conhecimento do nexo histórico, não diverso de todas as ruínas mudas do passado. Esta é a razão por que a escola histórica não pode, na realidade, continuar edificando sobre a hermenêutica de Schleiermacher. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Dessa maneira, a hermenêutica romântica e seu pano de fundo, a metafísica panteísta da individualidade foram determinantes para a reflexão teórica da investigação da história no século XIX. Isso foi decisivo para o destino das ciências do espírito e para a concepção do mundo da escola histórica. Ainda veremos que a filosofia hegeliana da história universal, contra a qual protesta a escola histórica, compreendeu o significado da história para o ser do espírito e para o conhecimento da verdade com uma profundidade incomparavelmente maior que aqueles grandes historiadores que não quiseram reconhecer sua dependência com respeito a ele. O conceito da individualidade de Schleiermacher, que caminhava lado a lado com os interesses da teologia, da estética e da filologia, não somente era uma instância crítica contra a construção apriorística da filosofia da história, como oferecia às ciências históricas, ao mesmo tempo, uma orientação metodológica que as remetia, num grau não inferior às ciências da natureza, à investigação, isto é, à única base que sustenta uma experiência progressiva. Dessa maneira, a resistência contra a filosofia da história universal acabou empurrando-a para o elemento da filologia. Seu orgulho estava em que tal metodologia não pensava o nexo da história universal teleologicamente, a partir de um estado final, como era o [203] estilo do Aufklärung pré-romântico ou pós-romântico, estado que seria igualmente o fim da história, o dia final da história universal. Pelo contrário, para ela não há nenhum final, e nenhum fora, além da história. A compreensão do decurso total da história universal só pode ser obtido a partir da própria tradição histórica. E esta é justamente a pretensão da hermenêutica filológica, ou seja, que o sentido de um texto pode ser compreendido por si próprio. Por consequência, o fundamento da historiografia é a hermenêutica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Desse modo, através do conceito da expressão, a realidade histórica se eleva à esfera do que tem sentido, e com isso também na auto-reflexão metodológica de Droysen a hermenêutica se converte em senhora da historiografia: “O individual se compreende o todo, e o todo se compreende a partir do individual” (§ 10). Essa é a velha regra retórico-hermenêutica fundamental, que agora se aplica ao interior: “Aquele que compreende, porque é um eu, uma totalidade em si, tal qual aquele a quem ele tem que compreender, completa-se da totalidade deste, a partir da exteriorização individual, e esta completa-se a partir da totalidade daquele”. É a fórmula de Schleiermacher. Ao aplicá-la, Droysen está compartilhando de sua pressuposição, isto é, a história, que ele considera como ações da liberdade, lhe é tão profundamente compreensível e carregada de sentido como um texto. O pleno cumprimento da compreensão da história é, como a compreensão de um texto, “atualidade espiritual”. Droysen até determina com mais rigor que Ranke, quais as mediações que encerram a investigação e a compreensão, mas nem mesmo ele consegue, ao final, pensar a tarefa da historiografia, mais que em categorias estético-hermenêuticas. O que pretende a historiografia é, também segundo Droysen, reconstruir, a partir dos fragmentos da tradição, o grande texto da história. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A tensão entre o motivo estético-hermenêutico e o motivo da filosofia da história na escola histórica alcança seu ponto culminante em Wilhelm Dilthey. Seu status se deve a que reconhece realmente o problema epistemológico que implica a concepção histórica do mundo face ao idealismo. Como biógrafo de Schleiermacher, como historiador que, ante a teoria romântica da compreensão, coloca a pergunta histórica sobre gênese e a essência da hermenêutica e que escreve a história da metafísica ocidental, Dilthey até se movimenta no horizonte de problemas do idealismo alemão — porém como aluno de Ranke e da nova filosofia da experiência, própria de seu século, encontra-se simultaneamente num solo tão diferente, que já não pode aceitar a validez nem da filosofia da identidade estético-panteísta, de Schleiermacher, nem da metafísica hegeliana integrada histórico-filosoficamente. Indubitavelmente, também em Ranke e Droysen se dá uma discrepância análoga de sua atitude entre idealismo e pensamento empírico, mas em Dilthey essa discrepância tornou-se particularmente aguda. Pois nele já não se trata de uma mera continuação do espírito clássico-romântico dentro de uma reflexão empírica de investigação, mas sim que essa tradição continuada é abafada por uma retomada consciente das ideias primeiro de Schleiermacher e depois de Hegel. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Paralelamente a essa superação histórica da metafísica aparece a interpretação espiritual-científica da grande poesia, na qual Dilthey vê o triunfo da hermenêutica. Permanece, porém, uma primazia relativa ao fato de que a filosofia e a arte possuam primazia para a consciência que compreende historicamente. Enquanto tais, essas podem manter uma preferência especial, porquanto nelas não se tem de secar-lhe o espírito, porque são “expressão pura” e não querem ser outra coisa. Mas tampouco assim são verdade imediata, porém só se prestam como órgão que serve à compreensão da vida. Tal qual certas épocas de esplendor de uma cultura são preferidas para o conhecimento de seu “espírito”, ou tal como o fato de que o que caracteriza as grandes personalidades é que representam em seus planos e em seus feitos as verdadeiras decisões históricas, do mesmo modo a filosofia e a arte tornam-se particularmente acessíveis à compreensão interpretadora. Aqui a história do espírito segue a preferência da forma, do puro aperfeiçoamento de totalidades significativas que se destacam do devir. Em sua introdução à biografia de Schleiermacher, Dilthey escreve: VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

“A história dos movimentos espirituais tem a vantagem de monumentos que são verdadeiros. Poderemos nos equivocar com respeito às suas intenções, mas não com respeito ao conteúdo da própria interioridade que está expresso em obras”. Não é por acaso que Dilthey nos tenha colocado ao alcance essa anotação de Schleiermacher: “A flor é a verdadeira madureza. O fruto não é mais que a caótica casca do que já não pertence à planta orgânica”. Dilthey compartilha, evidentemente, essa tese de uma metafísica estética. Ela subjaz à sua relação com a história. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

[245] Como vimos em Schleiermacher, o modelo de sua hermenêutica é a compreensão congenial possível de ser alcançada na relação entre o eu e o tu. A compreensão de textos tem a mesma possibilidade de adequação total que a compreensão do tu. Pode-se ver diretamente no texto a opinião do autor. O intérprete é absolutamente coetâneo com seu autor. Este é o triunfo do método filológico: conceber o espírito passado como presente, o espírito estranho como familiar. Dilthey está totalmente compenetrado desse triunfo. Sobre isso fundamenta sua afirmação de que as ciências do espírito possuem o mesmo padrão. Assim como o conhecimento natural-científico interroga algo presente sempre em relação a uma explicação que é projetada nele, assim o investigador do espírito interroga os textos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Enquanto a hermenêutica de Schleiermacher repousava sobre uma abstração metodológica artificial, que procurava produzir uma ferramenta universal para o espírito, mas que se propunha, como objetivo, trazer à fala com a ajuda dessa ferramenta, à força salvadora da fé cristã, para a fundamentação das ciências do espírito de Dilthey a hermenêutica representava mais do que um instrumento. É o médium universal da consciência histórica, para a qual não existe nenhum outro conhecimento da verdade do que compreender a expressão e, na expressão, a vida. Na história tudo é compreensível. E isso porque tudo é texto. “Tal qual as letras de uma palavra têm vida e a história, um sentido”. Assim a investigação de Dilthey sobre o passado histórico acaba sendo pensada como um deciframento e não como uma experiência histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Reside na natureza das coisas que, tendo em vista a tarefa que se nos propõe, o idealismo especulativo oferece melhores possibilidades do que Schleiermacher e a hermenêutica que a ele se vincula. É que no idealismo especulativo o conceito do dado, da positividade, tinha sido submetido a uma profunda crítica — e justamente a ela é que Dilthey havia atentado apelar para a sua filosofía da vida. Ele escreve: “Através de que designa Fichte o início de algo novo? Pelo fato de que parte da contemplação intelectual do eu, porém concebendo-o não [247] como uma substância, um ser, um dado, mas exatamente através dessa contemplação, isto é, desse difícil aprofundamento do eu em si próprio, o concebe como vida, atividade, energia, e por consequência, mostra nele a realização de conceitos energéticos como oposição etc”. Da mesma forma, Dilthey acabou reconhecendo no conceito hegeliano do espírito a vitalidade de um genuíno conceito histórico. Nessa mesma direção atuam alguns de seus contemporâneos, como já destacamos na análise do conceito da vivência: Nietzsche, Bergson, este já um tardio seguidor da crítica romântica contra a forma de pensar da mecânica, e Georg Simmel. Mas foi somente Heidegger que tornou consciente, de uma maneira geral, a radical exigência que se coloca ao pensamento em virtude da inadequação do conceito de substância para o ser e o conhecimento histórico. Somente através dele é que se liberou a intenção filosófica de Dilthey. Para o seu trabalho, Heidegger se engatou na investigação da intencionalidade da Fenomenologia de Husserl, que representa a ruptura mais decidida, na medida em que não é o platonismo extremo, como o via Dilthey. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

[283] No entanto, não há dúvida de que a verdadeira consequência do Aufklärung é outra, ou seja, a submissão de toda autoridade à razão. O preconceito da precipitação deve ser entendido, por consequência, mais ao modo de Descartes, como fonte de todo erro no uso da, razão. Concorda com isso o fato de que a velha divisão retorna com um sentido alterado, após a vitória do Aufklärung, quando a hermenêutica se liberta de todo vínculo dogmático. Assim, por exemplo, lemos em Schleiermacher, que como causas dos mal-entendidos ele divisa a sujeição e a precipitação. Junto aos preconceitos constantes, que procedem das sujeições a que estamos submetidos, aparecem os juízos equivocados momentâneos, devidos à precipitação. Mas a quem trata do método científico só interessam realmente os primeiros. Não chega sequer a ocorrer a Schleiermacher, que entre os preconceitos que afetavam a quem se encontra sujeito a autoridades, também podem haver os que contenham verdade, o que desde sempre estava incluído no conceito mesmo de autoridade. Sua reformulação da divisão tradicional dos preconceitos testemunha a consumação do Aufklärung. A sujeição só se refere ainda a uma barreira individual da compreensão: “a preferência unilateral por aquilo que se encontra próximo ao círculo de ideias particulares”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Se existem também preconceitos justificados e que possam ser produtivos para o conhecimento, o problema da autoridade volta a nos ser colocado. Assim, as consequências radicais do Aufklärung, que se encontram ainda na fé metódica de Schleiermacher, não são sustentáveis. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Schleiermacher distingue nesse círculo hermenêutico do todo e da parte um aspecto objetivo e um aspecto subjetivo. Tal como cada palavra forma parte do nexo da frase, cada texto forma parte do nexo da obra de um autor, e esta forma parte, por sua vez, do conjunto do correspondente gênero literário e mesmo de toda a literatura. Mas, por outro lado, o mesmo texto pertence, como manifestação de um momento criador, ao todo da vida da alma de seu autor. A compreensão acaba acontecendo, a cada caso, a partir desse todo, de natureza tanto objetiva como subjetiva. No que se relaciona com essa teoria, Dilthey falará de “estruturas” e da “concentração em um ponto central”, a partir do qual se produz a compreensão do todo. Com isso ele transporta ao mundo histórico, como já dizíamos, o que desde sempre tem sido um fundamento de toda interpretação textual: que cada texto deve ser compreendido a partir [297] de si mesmo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Entretanto, nos vemos obrigados a indagar se essa é uma maneira adequada de entender o movimento circular da compreensão. Teremos de nos reportar aqui ao resultado de nossa análise hermenêutica de Schleiermacher. O que este desenvolve sob o nome de interpretação subjetiva pode muito bem ser deixado de lado. Quando procuramos entender um texto, não nos deslocamos até a constituição psíquica do autor, mas, se quisermos falar de deslocar-se, o fazemos tendo em vista a perspectiva sob a qual o outro ganhou a sua própria opinião. E isso não quer dizer outra coisa, senão que procuramos fazer valer o direito objetivo do que o outro diz. Quando procuramos entender, fazemos inclusive o possível para reforçar os seus próprios argumentos. Isso acontece já na conversação. Mas onde se torna mais patente é na compreensão do escrito. Aqui nos movemos numa dimensão de sentido que é compreensível em si mesma e que, como tal, não motiva um retrocesso à subjetividade do outro. É tarefa da hermenêutica explicar esse milagre da compreensão, que não é uma comunhão misteriosa das almas, mas uma participação num sentido comum. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Mas tampouco o lado objetivo desse círculo, tal como o descreve Schleiermacher, atinge o cerne da questão. Já vimos que o objetivo de todo acordo e de toda compreensão é o entendimento sobre a própria coisa. A hermenêutica sempre se propôs como tarefa restabelecer o entendimento alterado ou inexistente. A história da hermenêutica é um bom testemunho disso; por exemplo, se se pensa em Santo Agostinho, onde o Antigo Testamento deve ser mediado através da mensagem cristã222, ou no protestantismo primitivo, que estava às voltas com o mesmo problema, ou finalmente na era do Aufklärung, onde de imediato se produz quase a renúncia ao entendimento, quando “a compreensão completa” de um texto só deve ser alcançada pelo caminho da interpretação histórica. Só que, quando o romantismo e Schleiermacher fundam uma consciência histórica de alcance universal, prescindindo da forma vinculante da tradição, da qual procedem e na qual se encontram, como fundamento de todo esforço hermenêutico, isso representa uma verdadeira inovação qualitativa. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Inclusive, um precursor imediato de Schleiermacher, o filólogo Friedrich Ast, mantinha uma compreensão da tarefa da hermenêutica, decisivamente baseada no conteúdo quando apresentava como sua tarefa específica a reconstrução do [298] entendimento entre antiguidade clássica e cristianismo, entre uma antiguidade clássica verdadeira, percebida com novos olhos, e a tradição cristã. Face ao Aufklärung, isso já é algo novo, no sentido de que uma hermenêutica assim não mede e rejeita a tradição a partir do padrão da razão natural. Mas, ao mesmo tempo que procura uma concordância plena de sentido entre as duas tradições, nas quais se encontra, essa hermenêutica continua essencialmente a tarefa da hermenêutica anterior de ganhar na compreensão um entendimento sobre o conteúdo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Quando Schleiermacher e, seguindo seus passos, a ciência do século XIX vão mais além da “particularidade” dessa reconciliação da antiguidade clássica e cristianismo e concebem a tarefa da hermenêutica a partir de uma generalidade formal, conseguem estabelecer a concordância com o ideal de objetividade próprio das ciências da natureza, mas somente ao preço de renunciar a fazer valer a concreção da consciência histórica dentro da teoria hermenêutica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Face a isso, a descrição e a fundamentação existencial do círculo hermenêutico, devidas a Heidegger, representam uma mudança decisiva. E claro que a teoria da hermenêutica do século XIX falava da estrutura circular da compreensão, mas sempre inserida na moldura de uma relação formal entre o individual e o todo, assim como de seu reflexo subjetivo, a antecipação intuitiva do todo e sua explicação subsequente no individual. Segundo essa teoria, o movimento circular da compreensão vai e vem pelos textos, e quando a compreensão dos mesmos se completa, ele é suspenso. Consequente, a teoria da compreensão de Schleiermacher culmina numa teoria do ato adivinhatório, mediante o qual o intérprete se funde por inteiro no autor e resolve, a partir daí, tudo o que é estranho ou estranhável no texto. Heidegger, pelo contrário, descreve esse círculo de uma forma tal que a compreensão do texto se encontre determinada, continuamente, pelo movimento de concepção prévia da pré-compreensão. O círculo do todo e das partes não se anula na compreensão total, mas nela alcança sua mais autêntica realização. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Desse modo, o sentido da pertença, isto é, o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico, realiza-se através da comunidade de preconceitos fundamentais e sustentadores. A hermenêutica tem de partir do fato de que quem quer compreender está vinculado com a coisa em questão que se expressa na transmissão e que tem ou alcança uma determinada conexão com a tradição a partir da qual a transmissão fala. Por outro lado, a consciência hermenêutica sabe que não pode estar vinculada à coisa em questão, ao modo de uma unidade inquestionável e natural, como se dá na continuidade ininterrupta de uma tradição. Existe realmente uma polaridade entre familiaridade e estranheza, e nela se baseia a tarefa da hermenêutica, mas não no sentido psicológico de Schleiermacher, como o âmbito que oculta o mistério da individualidade, mas num sentido verdadeiramente hermenêutico, isto é, com a atenção posta no que foi dito: a linguagem em que nos fala a tradição, a saga que ela nos conta. Também aqui se manifesta uma tensão. Ela se desenrola entre a estranheza e a familiaridade que a tradição ocupa junto a nós, entre a objetividade da distância, pensada historicamente, e a pertença a uma tradição. E esse entremeio (Zwischen) é o verdadeiro lugar da hermenêutica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O fato de que a compreensão ulterior possua uma superioridade de princípio face à produção originária e possa, por isso, ser formulada como um “compreender melhor”, não repousa, na verdade, sobre um tornar consciente posterior, capaz de equiparar o intérprete com o autor original (como opinava Schleiermacher), mas, ao contrário, reporta a uma diferença insuperável entre o intérprete e o autor, diferença que é dada pela distância histórica. Cada época tem de entender um texto transmitido de uma maneira peculiar, pois o texto forma parte do todo da tradição, na qual cada época tem um interesse pautado na coisa e onde também ela procura compreender-se a si mesma. O verdadeiro sentido de um texto, tal como este se apresenta ao seu intérprete, não depende do aspecto puramente ocasional que representam o autor e seu público originário. Ou pelo menos não se esgota nisso. Pois esse sentido está sempre determinado também pela situação histórica do intérprete, e, por consequência, por todo processo objetivo histórico. Um autor como Chladenius, que, no entanto, não relegou ainda a compreensão à história, leva isso em conta, de uma maneira completamente espontânea e ingênua, quando opina que um autor não necessita ter reconhecido por si mesmo todo o verdadeiro sentido de seu texto, e que, por consequência, o intérprete pode e deve entender, com frequência, mais do que aquele. Entretanto, isso tem um significado realmente fundamental. O sentido de um texto supera seu autor não ocasionalmente, mas sempre. Por isso a compreensão não é nunca um comportamento somente reprodutivo, mas é, por sua vez, sempre produtivo. Talvez não seja correto falar de “compreender melhor” em relação a esse momento produtivo inerente à [302] compreensão. Pois já vimos que essa fórmula é a conversão de um postulado básico da crítica objetiva da época do Aufklärung sob o fundamento da estética do gênio. Compreender não é compreender melhor, nem de saber mais, no sentido objetivo, em virtude de conceitos mais claros, nem no da superioridade básica que o consciente possui com respeito ao inconsciente da produção. Bastaria dizer que, quando se logra compreender, compreende-se de um modo diferente. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Este conceito da compreensão rompe, evidentemente, o círculo traçado pela hermenêutica romântica. Na medida em que já não se refere à individualidade e suas opiniões, mas à verdade da coisa, um texto não é entendido como mera expressão vital, mas é levado a sério na sua pretensão de verdade. O fato de que também isso, ou até precisamente isso, se chame “compreender” era antes uma obviedade — nisso recordo-me da citação de Chladenius. No entanto, a dimensão do problema hermenêutico foi desacreditada pela consciência histórica e pela versão psicológica que Schleiermacher deu à hermenêutica, e só pôde ser recuperada quando se tornaram patentes as aporias do historicismo e quando estas conduziram finalmente àquela mudança de rumo, nova e fundamental, para a qual, na minha opinião, o trabalho de Heidegger deu o mais decisivo impulso. Pois a distância de tempo em sua produtividade hermenêutica só pôde ser pensada a partir da mudança de rumo ontológico que Heidegger deu à compreensão como um “existencial” e a partir da interpretação temporal que aplicou ao modo de ser da pre-sença. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Permaneceremos conscientes de que com isso se exige algo incomum à autocompreensão da ciência moderna. Procuramos, ao largo de nossas reflexões, tornar essa exigência mais plausível, ao ir mostrando-a como o resultado da convergência de toda uma série de problemas. De fato, a teoria da hermenêutica que chega até os nossos dias se desagregou em diferenciações que ela mesma não é capaz de sustentar. Isso se torna tanto mais patente aí, onde se procura formular uma teoria geral da interpretação. Se distinguirmos, por exemplo, entre interpretação cognitiva, normativa e re-produtiva, tal como o faz E. Betti em sua Allgemeine Theorie der Interpretation, montada sobre um admirável conhecimento e domínio do tema, as dificuldades aparecem no momento de inscrever os fenômenos no momento dessa divisão. Isso vale imediatamente para a interpretação científica. Se juntarmos a interpretação teológica e a jurídica e se dermos a ambas a função normativa, então teremos de lembrar que Schleiermacher relaciona inversamente, e de forma mais estreita, a interpretação teológica com a interpretação geral, que para ele é a histórico-filológica. De fato, a cisão entre as funções cognitiva e normativa atravessa, por inteiro, a hermenêutica teológica, e não chega a ser compensada distinguindo-se o conhecimento científico de uma ulterior aplicação edificante. É a mesma cisão que atravessa a interpretação jurídica, na medida em que o conhecimento do sentido de um texto jurídico e sua aplicação a um caso jurídico concreto não são atos separados, mas um processo unitário. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Mas, segundo isso, tampouco a hermenêutica teológica poderia ainda arrogar-se um significado sistemático e autônomo. Schleiermacher a havia reconduzido conscientemente à hermenêutica geral, considerando-a simplesmente como uma aplicação especial desta. Mas, desde então, a teologia científica afirma sua capacidade de competir com as modernas ciências históricas, tendo por base que a interpretação da Sagrada Escritura não deve guiar-se por leis e nem por regras diversas das que presidem a compreensão de qualquer outra tradição. Nesse sentido não haveria porque existir uma hermenêutica especificamente teológica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O problema é agora saber se o comportamento do historiador foi visto e descrito suficientemente. No nosso exemplo, como se produz a mudança rumo ao histórico? Ante a lei vigente, vivemos já de antemão com a ideia natural de que seu sentido jurídico é unívoco e que a praxis jurídica do presente se limita a seguir simplesmente o seu sentido original. Se isso fosse sempre assim não haveria razão para distinguir entre sentido jurídico e sentido histórico de uma lei. O mesmo jurista [332] nao tena outra tarefa hermenêutica senão a de comprovar o sentido original da lei e aplicá-lo como correto. Savigny, em 1840, descreveu a tarefa da hermenêutica jurídica como puramente histórica (no System des romischen Rechts). Assim como Schleiermacher não via problema algum em que o intérprete tenha de se equiparar ao leitor originário, também Savigny ignora a tensão entre sentido jurídico originário e atual. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Do ponto de vista da teoria da ciência moderna teríamos de argumentar mais ou menos assim. Poderíamos apelar também ao valor paradigmático dos casos nos quais não é possível uma substituição imediata do destinatário original pelo intérprete, p. ex., quando um texto se dirige a uma pessoa determinada, ou parceiro de contrato, ou quem recebe uma conta ou um comando. Para entender plenamente o sentido de um texto desse tipo poderíamos nos pôr no lugar desse destinatário, e na medida em que esse deslocamento lograsse dar ao texto toda a sua concreção, poderíamos reconhecê-lo como um verdadeiro logro da interpretação. Mas esse deslocar-se ao lugar do leitor original (Schleiermacher) é coisa muito diferente da aplicação. Representa saltar por cima da tarefa de mediar o outrora e o hoje, o tu e o eu, que é o que queremos dizer com a palavra aplicação e que também a hermenêutica jurídica reconhece como sua tarefa. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Entretanto, é evidente que hermenêutica e historiografia não são inteiramente a mesma coisa. Na medida em que aprofundamos um pouco as diferenças metodológicas que as separam, poderemos discernir a sua aparente comunidade e reconhecer sua verdadeira comunidade. O historiador se relaciona diferentemente com os textos transmitidos, na medida em que procura conhecer através deles um trecho do passado. Por isso busca completar e controlar o texto com outras tradições [341] paralelas. Ele considera como que uma debilidade do filólogo o fato deste olhar para seu texto como uma obra de arte. Uma obra de arte é um mundo completo que basta a si próprio. O interesse histórico, porém, não conhece esta auto-suficiência. Dilthey já havia sentido, face a Schleiermacher, que “a filologia gostaria de encontrar em toda parte uma existência acabada em si mesma”. Quando uma obra literária transmitida chega a impressionar o historiador, este fato não pode ter para ele significado hermenêutico algum. Basicamente ele não pode entender-se a si mesmo como destinatário do texto, nem sujeitar-se à sua pretensão. As perguntas que dirige ao texto se referem, antes, a algo que o texto não oferece por si mesmo. E isto vale inclusive para aquelas formas de tradição que pretendem ser por si mesmas representação histórica. Também o historiador tem de ser submetido à crítica histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Não podemos tomar esta questão suficientemente a sério, se pensarmos a concepção histórica do mundo e seu desenvolvimento desde Schleiermacher até Dilthey. O fenômeno é sempre o mesmo. A exigência da hermenêutica somente parece se satisfazer na infinitude do saber, da mediação pensante da totalidade da tradição com o presente. Esta se apresenta baseada no ideal de um Aufklärung total, da ruptura definitiva dos limites de nosso horizonte histórico, da subsunção da finitude própria na infinitude do saber, em uma palavra, na onipresença do espírito que sabe historicamente. Não tem maior importância que no século XIX o historicismo não tenha reconhecido expressamente esta consequência. Em última instância o historicismo só encontra sua legitimação na posição de Hegel, ainda que os historiadores, animados pelo pathos da experiência, tenham preferido apelar a Schleiermacher e a Wilhelm von Humboldt. Mas nem um nem outro pensaram realmente até o final sua própria posição. Por muito que acentuassem a individualidade, a barreira da estranheza que a nossa compreensão tem que superar, a compreensão só alcança, em definitivo, sua perfeição, e a ideia da individualidade só encontra sua fundamentação, numa consciência infinita. É a inclusão panteísta de toda individualidade no absoluto o que torna possível o milagre da compreensão. Assim, também aqui o ser e o saber se interpretam [348] mutuamente no absoluto. Nem o kantismo de Schleiermacher nem o de Humboldt representam, pois, uma afirmação autônoma e sistemática face à perfeição especulativa do idealismo na dialética absoluta de Hegel. A crítica à filosofia da reflexão, pela mesma forma que alcança a Hegel, alcança a eles também. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Tudo o que se propõe na hermenêutica [386] é unicamente linguagem (F. Schleiermacher). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Convém recordar que na origem, e primordialmente, a hermenêutica tem como tarefa a compreensão dos textos. Foi somente Schleiermacher que minimizou o caráter essencial da fixação por escrito com respeito ao problema hermenêutico, quando considerou que o problema da compreensão estava dado também face ao discurso oral, e quiçá na sua plena realização. Já demonstramos até que ponto a versão psicológica, que ele introduziu na hermenêutica, abafou a autêntica dimensão histórica do fenômeno hermenêutico. Na realidade a escrita possui, para o fenômeno hermenêutico, uma significação central, na medida em que nela a ruptura com o escritor ou autor, assim como com o endereço concreto de um destinatário [396] é trazida, por assim dizer, a uma existência própria. O que se fíxa por escrito se eleva de um certo modo, à vista de todos, a uma esfera de sentido na qual pode participar todo aquele que esteja em condições de ler. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

À primeira vista, o fato de que não se deva introduzir num texto nada que não pudesse ter tido em mente o autor e o leitor, soa como um cânon hermenêutico da razão, que, enquanto tal, também é reconhecido geralmente. E, no entanto, somente nos casos mais extremos pode-se realmente aplicá-lo. Os textos não querem ser entendidos como expressão vital da [399] subjetividade de seu autor. Por consequência, não é a partir daí que podem ser traçados os limites de seu sentido. Todavia, o duvidoso não é somente a limitação do sentido de um texto às verdadeiras ideias do autor. Ainda quando se procura determinar objetivamente o sentido de um texto, entendendo-o como alocução contemporânea e referindo-o a seu leitor original, como fazia a premissa básica de Schleiermacher, tampouco se conseguirá ir mais além de uma delimitação casual. O próprio conceito do destinatário contemporâneo não pode ter mais que uma validez crítica limitada. Pois, o que quer dizer contemporaneidade? Os ouvintes de anteontem, tal como os de depois de amanhã, continuam pertencendo aos que nós falaríamos como contemporâneos. Onde se poderia traçar a fronteira daquele depois de amanhã que exclua a um leitor como possível interlocutor? O que são os contemporâneos, e o que é a pretensão de verdade de um texto, face a esta múltipla confusão de ontem e amanhã? O conceito do leitor originário encontra-se envolto em uma idealização completa e opaca. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Na medida em que a experiência hermenêutica contém um acontecer linguístico, que corresponde à representação dialética de Hegel, também ela participa numa dialética, que desenvolvemos acima, como dialética de pergunta e resposta. Como já vimos, a compreensão de um texto transmitido tem uma relação interna essencial com a sua interpretação, e ainda que esta seja, por sua vez, sempre um movimento relativo e inconcluso, a compreensão alcança nela sua perfeição relativa. Pela mesma razão, o conteúdo especulativo dos enunciados filosóficos necessita, como ensina Hegel, uma representação dialética das contradições contidas nele, se é que quer ser verdadeira ciência. Aqui há uma real correspondência. A interpretação toma parte na discursividade do espírito humano, que somente é capaz de pensar a unidade da coisa na mútua alternância do um ou do outro. A interpretação tem a estrutura dialética de todo ser finito e histórico, na medida em que toda interpretação tem que começar em algum ponto e procurar superar a parcialidade que ela introduz com seu começo. Há algo que parece necessário ao intérprete, ou seja, que se diga e se torne expresso. Nesse sentido toda interpretação é motivada e obtém seu sentido a partir de seu nexo de motivações. Sua parcialidade outorga a um dos aspectos da coisa uma clara preponderância, e para compensá-la tem de continuar dizendo mais coisas. Assim como a dialética filosófica consegue expor o todo da verdade através da auto-suspensão de todas as imposições unilaterais e pelo caminho do aguçamento e da superação das contradições, o esforço hermenêutico tem como tarefa pôr a descoberto um todo de sentido na multilateralidade de suas relações. À totalidade das determinações do pensamento, corresponde a individualidade de sentido a que se tem em mente. Pense-se, por exemplo, em Schleiermacher, que fundamenta sua dialética na metafísica da individualidade e constrói, na sua teoria hermenêutica, o procedimento da interpretação a partir de orientações antitéticas do pensamento. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Mas ao mesmo tempo a correspondência entre dialética hermenêutica e filosófica, que parece derivar-se da construção dialética da individualidade em Schleiermacher e da construção dialética da totalidade em Hegel, não é uma correspondência verdadeira. Pois nessa equiparação desconhece-se a essência da experiência hermenêutica e a finitude radical que lhe subjaz. É claro que toda interpretação tem que começar por algum ponto. Não obstante, seu ponto de partida não é arbitrário. Na realidade não se trata de um começo real. Já vimos como a experiência hermenêutica implica sempre o fato de que, o texto que se trata de compreender, falar a uma situação que está determinada por opiniões prévias. Isso não é uma desfocagem lamentável que obstaculize a pureza da compreensão, mas, a condição de sua possibilidade, que caracterizamos como a situação hermenêutica. Somente porque, entre aquele que compreende e seu texto, não existe uma concordância lógica e natural, é que se pode vir a participar, no texto, de uma experiência hermenêutica. Somente porque o texto tem de ser transladado, de sua distância para o que nos é próprio, é que ele tem algo a dizer para aquele que deseja entender. Somente porque o texto o exige, chega-se, portanto, à interpretação e apenas do modo como ele o requer. O começo aparentemente thético da interpretação é, na realidade, resposta, e como em toda resposta, também o sentido da interpretação se determina a partir da pergunta que se colocou. À dialética da interpretação sempre precedeu a dialética de pergunta e resposta. É esta que determina a compreensão como um acontecer. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A linguagem do intérprete é certamente um fenômeno secundário da linguagem, comparado, por exemplo, com a imediatez do entendimento inter-humano ou com a palavra do poeta. É assim que, por fim, volta a referir-se a algo linguístico. E, não obstante, a linguagem do intérprete é ao mesmo tempo a manifestação abrangente da linguisticidade em geral, que encerra em si todas as formas de uso e formas linguísticas. Havíamos partido dessa linguisticidade abrangente da compreensão, de sua referência à razão em geral, e agora vemos como se reúne sob esse aspecto todo o conjunto de nossa investigação. O desenvolvimento do problema da hermenêutica desde Schleiermacher, passando por Dilthey e chegando a Husserl e Heidegger, representa, como já expusemos, a partir do ponto de vista histórico, uma confirmação do que agora resultou: que a auto-reflexão metodológica da filologia tende necessariamente a um questionamento sistemático da filosofia. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A partir do centro da linguagem, o procedimento objetivador do conhecimento da natureza e o conceito do ser em si, que corresponde à intenção de todo conhecimento, se nos mostraram como o resultado de uma abstração. Esta, arrancada reflexivamente da relação original com o mundo, relação que está dada na constituição linguística de nossa experiência de mundo, procura certificar-se do ente, organizando seu [480] conhecimento metodologicamente. Anatemiza, consequentemente, toda forma de saber que não garante essa certeza e que, por conseguinte, não seja capaz de servir à crescente dominação da natureza. Face a isso, procuramos libertar do preconceito ontológico o modo de ser próprio da arte e da história, assim como a experiência correspondente a ambas, preconceito que está implicado no ideal de objetividade que a ciência coloca; e frente à experiência da arte e da história vimo-nos conduzidos a uma hermenêutica universal que atinge a relação geral do homem com o mundo. E se já formulamos essa hermenêutica universal, a partir do conceito da linguagem, o fizemos não somente para evitar o falso metodologismo que é responsável pela estranheza do conceito da objetividade nas ciências do espírito — devia-se evitar também o espiritualismo idealista de uma metafísica da infinitude, ao modo de Hegel. A experiência hermenêutica fundamental não se articulava somente na tensão entre estranheza e familiaridade, compreensão e mal-entendido, que era o que dominava o projeto de Schleiermacher. Ao contrário, ao final vimos que, com sua teoria da perfeição adivinhatória da compreensão, Schleiermacher se apresenta em imediata proximidade a Hegel. Se nós partimos da linguisticidade da compreensão, sublinhamos, pelo contrário, a finitude do acontecer linguístico em que se concretiza em cada caso a compreensão. A linguagem que as coisas exercem, sejam elas quais e como forem, não é logos ousias e não alcança a sua plena realização na autocontemplação de um intelecto infinito — é a linguagem que toma nossa essência histórica finita, quando aprendemos a falar. Isso vale não menos para a linguagem dos textos da tradição, e por isso coloca a si mesma a tarefa de uma hermenêutica verdadeiramente histórica. Isso vale também para a experiência tanto da arte como da história, e mais ainda, os conceitos de “arte” e “história” são, por sua vez, formas de acepção, que somente se desdobram do modo de ser universal do ser hermenêutico, como formas da experiência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Também Manfred Frank foi um promotor essencial da hermenêutica filosófica, através de seus trabalhos baseados num profundo conhecimento do idealismo alemão e do romantismo. Mas aqui também nem tudo me parece claro. Em diversas publicações ele criticou o diálogo e debate críticos que tive com a interpretação psicológica de Schleiermacher. Para isso ele apoiou-se nas ideias do estruturalismo e do neo-estruturalismo, dedicando um cuidado fundamental à interpretação gramatical em Schleiermacher, partindo da semiótica moderna. Procura valorizar a interpretação gramatical, frente à psicológica. Segundo me parece, porém, não é o caso de se desvalorizar a interpretação psicológica, que é o contributo realmente novo de Schleiermacher. Igualmente não se pode querer reduzir o conceito de adivinhação, como se ele tivesse a ver apenas com o “estilo”. Como se o estilo não fosse a própria concreção do discurso. Além do mais Schleiermacher manteve o conceito [15] de adivinhação até o fim, como demonstra o discurso acadêmico paradigmático de 1829. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Não nos importa falar de um sentido puramente linguístico da interpretação gramatical, como se ela pudesse existir sem a interpretação psicológica. O problema hermenêutico mostra-se justamente na interpenetração da interpretação gramatical pela interpretação psicológica individualizante, na qual entram em jogo os condicionantes complexos do intérprete. Reconheço que, para isso, deveria ter observado de modo mais contundente a dialética e estética de Schleiermacher, que Frank invoca com razão. Teria feito mais justiça à riqueza da compreensão individualizante em Schleiermacher. No entanto, logo após o aparecimento de Verdade e método, consegui recuperar alguma coisa disto. Meu interesse não era apreciar Schleiermacher em todas as suas dimensões, mas caracterizá-lo como o propulsor de uma história efeitual, que se inicia justamente com Steinthal e que ao alcançar o cimo teórico-científico com Dilthey passa a dominar de maneira indiscutível. A meu ver, isso restringiu o problema hermenêutico, e esta história efeitual não é uma ficção. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Nesse ponto, parece-me que a hermenêutica tradicional não superou ainda, totalmente, as consequências do psicologismo. Na leitura e compreensão de um escrito está em questão um processo, pelo qual aquilo que está fixado no texto deve elevar-se a uma nova expressão e deve concretizar-se de novo. Ora, a essência do falar concreto consiste em que aquilo que se tem em mente sempre ultrapassa o que é dito. Por isso, creio que se trata de um mal-entendido ontológico imperceptível hipostasiar o que quem fala tem em mente como o padrão de medida da compreensão. Como se fosse possível primeiro criá-lo num tipo de comportamento reprodutivo para depois aplicá-lo como padrão de medida às palavras. Como vimos, a leitura não é uma reprodução que permite comparação com o original. É o mesmo que ocorre com a doutrina epistemológica, superada pala investigação fenomenológica, segundo a qual temos na consciência uma imagem da suposta realidade, a que se chama de “representação”. Toda leitura ultrapassa os vestígios enrijecidos da palavra em direção ao sentido do que é propriamente dito; não se trata, portanto, de um retroceder ao processo originário de produção, que devesse ser compreendido como uma realização da alma ou como um fenômeno expressivo. E além disso o que conhece do que se tem em mente são apenas os vestígios da palavra. Isso inclui que quando alguém compreende o que um outro diz, este algo não é apenas o que o outro tinha em mente, mas algo partilhado, comum. Quem traz à fala um texto pela leitura, mesmo que seja sem qualquer articulação sonora, estaráconstruindo seu sentido, na direção semântica que tem o texto, dentro do universo de sentido a que ele próprio está aberto. É neste ponto que, em última instância, se justifica o ponto de vista romântico que segui, segundo o qual todo compreender já é interpretar. Schleiermacher afirmou-o de modo expresso: “A interpretação distingue-se da compreensão apenas como o falar em voz alta distingue-se do falar interior”. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Foi aqui que a questão da essência da verdade, colocada por Heidegger, realmente ultrapassou o âmbito da problemática da subjetividade. Seu pensamento percorreu o caminho desde o “instrumento”, passando pela “obra” e chegando à “coisa”, um caminho que ultrapassou amplamente a questão da ciência e inclusive a das ciências históricas. É tempo de não esquecermos que a historicidade do ser vige mesmo onde a pre-sença (Dasein) tem consciência de si e onde se comporta historicamente como ciência. A hermenêutica das ciências históricas, desenvolvida desde Schleiermacher até Dilthey no romantismo e na escola histórica, assume uma tarefa totalmente nova, quando na esteira de Heidegger busca se desprender da problemática da subjetividade. O único e pioneiro nessa linha foi Hans Lipps, cuja lógica hermenêutica, mesmo não oferecendo uma verdadeira hermenêutica, libera com êxito a vinculabilidade da linguagem do nivelamento lógico. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

Schleiermacher diferenciou esse círculo hermenêutico da parte e do todo, tanto no seu aspecto objetivo quanto subjetivo. Assim como a palavra singular pertence ao contexto da frase, também o texto singular pertence ao contexto da obra de seu autor, e este ao todo do respectivo gênero literário ou da respectiva literatura. Por outro lado, enquanto manifestação de um momento criador, o mesmo texto pertence ao todo da vida espiritual de seu autor. A compreensão só pode realizar-se a cada vez neste todo objetivo ou subjetivo. Com base nessa teoria, Dilthey vai falar de “estrutura” e de “centralização num ponto médio”, a partir de onde se dá a compreensão do todo. Com isso, ele transfere para o mundo histórico o que, de há muito, é um princípio fundamental de toda interpretação [58]: que é preciso compreender um texto a partir de si próprio. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

A questão que fica, porém, é se assim o movimento circular da compreensão foi compreendido adequadamente. Pode-se deixar de lado aquilo que Schleiermacher desenvolveu como interpretação subjetiva. Quando procuramos compreender um texto, não nos transferimos para a estrutura espiritual do autor, mas desde que se possa falar de transferência, transferimo-nos para seu pensamento. Isso significa, porém, que procuramos deixar e fazer valer o direito objetivo daquilo que o outro diz. Se quisermos compreender, buscaremos reforçar ainda mais seus argumentos. Na conversação e ainda mais na compreensão do escrito movemo-nos numa dimensão de sentido compreensível em si mesmo que como tal não motiva nenhum retorno à subjetividade do outro. É tarefa da hermenêutica esclarecer o milagre da compreensão, que não é uma comunicação misteriosa entre as almas, mas participação num sentido comum. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

Mas também o lado objetivo desse círculo, tal como o descreve Schleiermacher, não atinge o cerne do problema. O objetivo de todo entendimento e compreensão é o acordo quanto à coisa. Dessa forma, a hermenêutica teve, desde sempre, a tarefa de suprir a falta de acordo ou de restabelecer o acordo, quando perturbado. A história da hermenêutica comprova isso. Por exemplo, quando Santo Agostinho afirma que o Antigo Testamento deve ser mediado pela mensagem cristã, ou quando o protestantismo primitivo se via colocado diante do mesmo problema, ou finalmente na época do Iluminismo, onde, na vontade de alcançar a “compreensão plena” de um texto somente pelas vias da interpretação histórica, tinha-se quase que renunciar ao acordo. Trata-se, pois, de algo qualitativamente novo, quando o romantismo e Schleiermacher, criando uma consciência histórica com alcance universal, já não dão mais valor à figura vinculante da tradição, da qual procedem e na qual estão postados, como uma base sólida para todo esforço hermenêutico. Um dos precursores imediatos de Schleiermacher, o filólogo Friedrich Ast, compreendeu o conteúdo fundamental da tarefa hermenêutica, ao reivindicar para ela o restabelecimento do acordo entre Antiguidade e Cristianismo, entre uma verdadeira antiguidade, vista de modo novo, e a tradição cristã. Frente ao Iluminismo, isso é algo totalmente novo, à medida que agora já não se trata mais de uma mediação entre a autoridade da tradição, por um lado, e a razão natural, por outro, mas da mediação de dois elementos da tradição, ambos vindos à consciência pelo Iluminismo, que impõe a tarefa de sua reconciliação. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

Penso que essa teoria da unidade entre Antiguidade e Cristianismo afirma um momento de verdade do fenômeno hermenêutico, que Schleiermacher e seus seguidores não conferiram o devido valor. Em virtude de sua energia especulativa, Ast evitou procurar na história o mero passado e deixar de lado a verdade do presente. A hermenêutica que provém de Schleiermacher aparece, nesse pano de fundo, como um achatamento em nível do metodológico. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

A concepção prévia da completude, que guia toda nossa compreensão, mostra-se ela mesma cada vez determinada por um conteúdo. Não está pressuposta apenas uma unidade de sentido imanente, que direciona o leitor, também o entendimento do leitor está sendo constantemente guiado por expectativas de sentido transcendentes, que brotam da relação com a verdade do que se tem em mente. Quem recebe uma carta compreende suas notícias, vendo imediatamente as coisas como as viu o remetente, ou seja, considera verdadeiro o que o outro escreveu, sem procurar, por exemplo, compreender a opinião do remetente sobre o assunto. Assim também nós compreendemos os textos transmitidos a partir de expectativas de sentido, extraídas de nossa própria relação para com a coisa. E assim como acreditamos nas notícias transmitidas por um repórter, porque ele esteve no local ou porque ele está mais a par do assunto, também frente a um texto que nos é transmitido, estamos fundamentalmente abertos à possibilidade de que ele está melhor informado do que a nossa opinião prévia o pretenderia. É só com o fracasso da tentativa de tomar por verdadeiro o que é dito que surge a pretensão de “compreender” — psicológica ou historicamente — o texto como a opinião de um outro. O preconceito da completude implica portanto não só que um texto deva expressar plenamente sua opinião, como também que aquilo que diz é a verdade completa. Compreender significa primeiramente entender-se na coisa e, só em segundo lugar, apartar e compreender a opinião do outro como tal. A primeira de todas as condições hermenêuticas permanece sendo, assim, a compreensão da coisa, o ter de haver-se com a mesma coisa. A partir disto, determina-se o que se pode realizar como sentido unitário e com isso o emprego da concepção prévia da completude. Assim completa-se o sentido da pertença, isto é, o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico pela comunhão de preconceitos fundamentais e sustentadores. A hermenêutica deve partir do fato de que quem quer compreender está ligado à coisa que vem à fala na tradição, mantendo ou adquirindo um vínculo com a tradição a partir de onde fala o texto transmitido. Por outro lado, a consciência hermenêutica sabe que não pode estar ligada a esta coisa, nos moldes de uma unanimidade inquestionável e óbvia, como no caso da continuidade ininterrupta de uma tradição. Dá-se realmente uma polaridade entre familiaridade e estranheza, sobre a qual baseia-se a tarefa da hermenêutica. Esta não deve, porém, ser compreendida psicologicamente como fez Schleiermacher, como o espaço que abriga o mistério da individualidade. Deve ser compreendida de modo verdadeiramente hermenêutico, isto é, na perspectiva de algo dito: a linguagem com que a tradição nos interpela, a saga que ela nos conta. A posição que, para nós, a tradição ocupa entre estranheza e familiaridade, é portanto o Entre, entre a objetividade distante, referida pela história, e a pertença a uma tradição. Nesse Entre situa-se o verdadeiro local da hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

A hermenêutica recebeu um novo impulso com a Reforma, quando esta apregoava a volta à literalidade da Sagrada Escritura e os reformadores polemizaram contra a tradição da doutrina eclesiástica e o tratamento que esta dava aos textos com os métodos dos vários sentidos da Escritura. Recusava-se especialmente o método alegórico e restringiu-se a compreensão alegórica aos casos em que o sentido figurado a justificava, como por exemplo nos discursos de Jesus. Junto com isso desenvolveu-se uma nova consciência de método que se alardeava ser objetiva, ligada ao objeto e livre de todo arbítrio subjetivo. No entanto, a motivação principal era de caráter normativo: na hermenêutica teológica assim como na hermenêutica humanística da Idade Moderna, o que importa é a correta interpretação daqueles textos que contêm o que realmente é decisivo, e que se deve recuperar. Nesse sentido, a motivação do esforço hermenêutico não é tanto, como mais tarde em [95] Schleiermacher, a dificuldade de compreender uma tradição e os mal-entendidos a que esta pode dar lugar, mas antes buscar trazê-la a uma nova compreensão, rompendo ou transformando uma tradição vigente pela descoberta de suas origens esquecidas. Deve-se resgatar e renovar seu sentido originário, encoberto e desfigurado. A hermenêutica, voltando às fontes originárias, busca alcançar uma nova compreensão daquilo que se havia corrompido por distorção, deslocamento ou mau uso: A Bíblia, pela tradição magisterial da Igreja; os clássicos, pelo latim bárbaro da escolástica; o direito romano, pela jurisprudência regionalista etc. O novo esforço deveria não apenas ser no sentido de buscar compreender de modo mais correto, mas também de recuperar a vigência do paradigmático, no mesmo sentido como se fosse o anúncio de uma mensagem divina, a interpretação de um oráculo ou de uma lei preceptiva. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Foi só Schleiermacher que, incitado por F. Schlegel, desvencilhou a hermenêutica, enquanto teoria universal da compreensão e do interpretar, de todos os momentos dogmáticos e ocasionais. Para ele, esses momentos só se justificam secundariamente, numa versão bíblica específica. Com sua teoria hermenêutica, defende a cientificidade da teologia, sobretudo contra a teologia da inspiração, que colocava radicalmente em questão a verificabilidade metodológica da compreensão da Sagrada Escritura com os recursos da exegese textual, da teologia histórica, da filologia etc. Mas por trás dessa concepção de Schleiermacher sobre uma hermenêutica geral não havia apenas um interesse teológico, científico e político, mas uma motivação filosófica. Um dos mais profundos impulsos da época romântica foi a fé no diálogo como uma fonte de verdade não dogmática, insubstituível por qualquer dogmática. Se Kant e Fichte privilegiaram como supremo princípio de toda filosofia a espontaneidade do “eu penso”, na geração romântica de Schlegel e [98] Schleiermacher, caracterizada por um forte cultivo da amizade, esse princípio transformou-se numa espécie de metafísica da individualidade. A inefabilidade do individual já fora a base para a virada em direção ao mundo histórico, que surge para a consciência quando a era revolucionária rompe com a tradição. Capacidade para a amizade, capacidade para o diálogo, para a relação epistolar, para a comunicação em geral, todos esses traços do sentimento vital romântico vinham de encontro ao interesse pela compreensão e pela incompreensão. Essa experiência humana originária constitui o ponto de partida metodológico para a hermenêutica de Schleiermacher. A partir disso, a compreensão de textos, de vestígios espirituais estranhos, longínquos, obscurecidos, petrificados em escritos, isto é, a interpretação viva da literatura e sobretudo da Sagrada Escritura, apresentou-se como aplicação específica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

O certo é que tanto a hermenêutica de Schleiermacher não está totalmente livre do ar escolástico, um tanto empoeirado, da literatura hermenêutica anterior, como sua obra propriamente filosófica se encontra um pouco à sombra dos outros grandes pensadores idealistas. Ele não tem a força impositiva da dedução fichtiana, nem a elegância especulativa de Scheling e nem a obstinação seminal da arte conceptual de Hegel. Foi um orador, mesmo quando filosofava. Seus livros são antes de tudo anotações de um orador. Suas contribuições à hermenêutica são, em particular, muito fragmentárias e o que tem mais interesse do ponto de vista hermenêutico, ou seja, suas observações sobre pensar e falar não se encontram na “hermenêutica” mas nas preleções sobre dialética. Ainda aguardamos uma edição crítica da Dialética, que seja utilizável. O sentido normativo básico dos textos, aquilo que originariamente confere sentido ao esforço hermenêutico, em Schleiermacher encontra-se em segundo plano. Compreender é a repetição da produção originária de ideias, com base na congenialidade dos espíritos. O ensinamento de Schleiermacher tem como pano de fundo sua concepção metafísica da individualização da vida universal. Desse modo, destaca-se o papel da linguagem, e isso numa forma que superou radicalmente a limitação erudita ao escrito. A fundamentação da compreensão feita por Schleiermacher sobre a base do diálogo e do entendimento inter-humano significou no seu conjunto um aprofundamento dos fundamentos da hermenêutica, que no entanto acabou permitindo a edificação de um sistema científico com base hermenêutica. A hermenêutica tornou-se a base de todas as ciências históricas do espírito e não só da teologia. Desaparece então o pressuposto dogmático do caráter “paradigmático” do texto, sob o qual a atividade hermenêutica, tanto a do teólogo como a do filólogo humanista [99] (para não falar do jurista), tinha a função originária de mediação. Com isso liberou-se o caminho para o historicismo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Na esteira de Schleiermacher e com base na teoria romântica da criação inconsciente do gênio, foi sobretudo a interpretação psicológica que passou a constituir a base teorética, cada vez mais decisiva, do conjunto das ciências do espírito. Isso mostra-se sumamente instrutivo já em Steinthal e em Dilthey culmina numa refundamentação sistemática da ideia das ciências do espírito com base numa “psicologia descritiva e analítica”. Schleiermacher ainda não pensa, certamente, na fundamentação filosófica das ciências históricas. Ele se encaixa muito melhor no contexto de pensamento do idealismo transcendental fundado por Kant e Fichte. Em especial a obra de Fichte, Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre (Princípios da teoria geral da ciência), alcançou uma significação epocal quase igual à Crítica da razão pura. Como já indica o título, trata-se de deduzir todo saber a partir de um “princípio supremo” unitário, a espontaneidade da razão (Fichte diz “força do ato” [Tathandlung] em lugar de “fato” [Tatsache]). Esta conversão do idealismo “crítico” de Kant para o idealismo “absoluto” torna-se a base para todos os seus sucessores: Schiller e Schleiermacher, Schelling, Friedrich Schlegel e Wilhelm von Humboldt — chegando até Boeckh, Ranke, Droysen e Dilthey. Erich Rothaker, em particular, demonstrou que, apesar de rechaçar a construção apriorística da história do mundo no estilo de Fichte e Hegel, a “escola histórica” comunga com a base teórica da filosofia idealista. As preleções do famoso filólogo August Boeckh sobre a “Enciclopédia das ciências filológicas” foram muito influentes. Ali, Boeckh definiu a tarefa da filologia como o “conhecer do conhecido”. Com isso encontrou-se uma boa fórmula para expressar o caráter secundário da filologia. O sentido normativo da literatura clássica, redescoberto pelo humanismo, e que motivou primariamente a imitatio, empalideceu e tornou-se indiferença histórica. Partindo da tarefa fundamental desse “compreender”, Boeckh distinguiu os diversos modos de interpretação em gramatical, segundo o gênero literário, histórico-real e psicológico-individual. Esse foi o ponto que Dilthey conectou com sua psicologia compreensiva. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

A orientação “epistemológica” já havia mudado, especialmente sob a influência da “lógica indutiva” de J.St. Mill. Quando Dilthey defendeu a ideia de uma psicologia “compreensiva”, contra a psicologia experimental sustentada por Herbart e Fechner, já partilhava do ponto de partida geral da “experiência”, sustentado [100] pelo “princípio da consciência” e do conceito de vivência. Também lhe serviram de constante advertência tanto o pano de fundo histórico-filosófico e histórico-teológico que alicerçava a lúcida historiografia do historiador J.G. Droysen, como a crítica acirrada que fazia seu amigo, o luterano especulativo Yorck von Wartenburg, ao historicismo ingênuo de sua época. Ambos contribuíram para que a evolução tardia de Dilthey tomasse um novo rumo. O conceito de vivência, que representou para ele a base psicológica para sua hermenêutica, foi complementado pela distinção entre a expressão e significado. Essa complementação ocorreu em parte pela influência da crítica ao psicologismo desenvolvida por Husserl nos “prolegomena” às suas Investigações lógicas e de sua teoria platonizante do significado, e em parte pelo realinhamento com a teoria hegeliana do espírito objetivo, que Dilthey procede, sobretudo em virtude de seus estudos sobre a época da juventude de Hegel. Tudo isso produziu frutos no século XX. Os trabalhos de Dilthey foram prosseguidos por G. Misch, B. Groethuysen, E. Spranger, Th. Litt, J. Wach, H. Freyer, E. Rothacker, O. Bollnow, entre outros. O historiador jurídico E. Betti fez uma síntese da tradição idealista da hermenêutica desde Schleiermacher, chegando a Dilthey e seguindo mais adiante. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

A hermenêutica teológica característica da época inaugurada com a fundamentação geral de Schleiermacher acabou igualmente enredada em suas aporias dogmáticas. Já o próprio editor do curso de hermenêutica de Schleiermacher, Lücke, sublinhou de modo decisivo seu momento teológico. Toda a dogmática teológica do século XIX retornou à problemática da hermenêutica dos primórdios do protestantismo, dada com a regula fidei. O postulado histórico da teologia liberal, que criticava toda dogmática, enfrentou-se com ela, resultando numa crescente indiferença com relação à tarefa específica da teologia. Por isso, na época da teologia liberal, não houve fundamentalmente nenhuma problemática hermenêutica especificamente teológica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

E o que dizer do sentido e da interpretação de acontecimentos históricos? A consciência dos contemporâneos é de tal natureza [105] que aqueles que “vivenciam” a história não sabem como esta lhes acontece. Dilthey, pelo contrário, mantém-se até o fim fiel às consequências sistemáticas de seu conceito de vivência, como reza o modelo de biografia e autobiografia para a teoria formulada por Dilthey, acerca do contexto da história dos efeitos. Também a acirrada crítica feita por R.G. Collingwood à consciência metodológica positivista permanece presa à estreiteza subjetivista do problema, à medida que, lançando mão do instrumental dialético do hegelianismo de Croce com sua teoria do reenactment, fundamenta como caso modelar para a compreensão histórica a execução posterior de planos elaborados. Nesse ponto, Hegel foi mais consequente. Sua pretensão de se conhecer a razão na história fundamentava-se num conceito do “espírito”, cujo traço essencial é dar-se “no tempo” e a determinação do conteúdo dar-se apenas por sua história. Decerto, também para Hegel, havia os “indivíduos que participam da história do mundo”, por ele caracterizados como “encarregados do negócio do espírito universal”, e cujas decisões e paixões coincidiam com o que “se dava no tempo”. Esses casos excepcionais, porém, não definem para ele o sentido da compreensão histórica, sendo definidos como exceções a partir da concepção do filósofo acerca do que é o historicamente necessário. A saída que pretende atribuir ao historiador uma congenialidade com seu objeto, já tentada por Schleiermacher, certamente não traz resultado algum. Isso transformaria a história universal num espetáculo estético. Seria, por um lado, exigir demais do historiador e, por outro, subestimar sua tarefa de confrontar o próprio horizonte com o do passado. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

A convicção romântica da total estranheza face à tradição, segundo a qual a tradição constitui uma total alteridade frente ao presente, tornou-se uma pressuposição metodológica fundamental do procedimento hermenêutico. A hermenêutica torna-se uma postura metodológica universal justamente por pressupor a estranheza do conteúdo a ser compreendido e, com isso, impor-se a tarefa de sua superação pela apropriação do conhecimento. É bastante significativo que Schleiermacher não considere tão absurda a ideia de se compreender mesmo os princípios de um Euclides a partir da perspectiva histórica, isto é, recorrendo aos momentos fecundos da vida de Euclides, nos quais surgiram essas ideias. Em lugar do conhecimento objetivo imediato, surge a compreensão psicológico-histórica como a postura realmente metodológica e científica. Foi só a partir daí que a ciência bíblica, a teologia em seu aspecto exegético, pôde elevar-se ao status de uma verdadeira ciência histórico-crítica. A hermenêutica tornou-se o órgão geral do método histórico. Sabe-se que a introdução dessa reflexão histórico-crítica no campo da exegese bíblica provocou grandes tensões entre dogmática e exegese, que perpassam o trabalho teológico do Novo Testamento até os dias de hoje. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Também no âmbito do pensamento filosófico, o fenômeno do diálogo e sobretudo aquela forma específica do diálogo entre duas pessoas desempenharam uma importante função, e talvez na mesma confrontação que acabamos de descobrir como um fenômeno cultural comum. Foi sobretudo a época romântica e seu renascimento no século XX que conferiu ao fenômeno do diálogo uma função crítica frente à funesta monologização do pensamento filosófico. Mestres do diálogo como Friedrich Schleiermacher, esse gênio da amizade, ou Friedrich Schlegel, cuja sensibilidade cativante era mais propícia a diálogos caudalosos do que a forma permanente aos conceitos, advogaram filosoficamente por uma dialética que atribuía ao modelo platônico de diálogo e de conversação uma primazia especial na busca da verdade. É fácil ver em que consiste [210] essa primazia. Quando duas pessoas se encontram e trocam experiências, trata-se sempre do encontro entre dois mundos, duas visões e duas imagens de mundo. Não é a mesma visão a respeito do mesmo mundo, como tenta comunicar o pensamento dos grandes pensadores com seu esforço conceitual e a elaboração de suas teorias. O próprio Platão não comunicou sua filosofia simplesmente em diálogos escritos em reconhecimento ao mestre do diálogo, Sócrates. Viu ali um princípio da verdade, segundo o qual a palavra só encontra confirmação pela recepção e aprovação do outro e que o pensamento que não viesse acompanhado do pensamento do outro seria inconsequente e sem força vinculante. Cabe afirmar que todo ponto de vista humano tem algo de aleatório. O modo como alguém experimenta o mundo, pela visão, pelo ouvido e sobretudo pelo gosto permanece um mistério pessoal intransponível. “Quem pode mostrar um cheiro com os dedos?” (Rilke). Assim como nossa apercepção sensível do mundo é ineludivelmente privada, também nossos impulsos e nossos interesses individualizam-nos, e nossa razão, comum e capaz de apreender o comum a todos, permanece impotente diante dos ofuscamentos alimentados pela nossa individualidade. Assim, o diálogo com os outros, suas objeções ou sua aprovação, sua compreensão ou seus mal-entendidos, representam uma espécie de expansão de nossa individualidade e um experimento da possível comunidade a que nos convida a razão. Poderíamos imaginar toda uma filosofia do diálogo, partindo dessas experiências: o ponto de vista intransferível do indivíduo, onde se espelha a totalidade do mundo, e a totalidade do mundo que se apresenta nos pontos de vista individuais de todos os outros como um e o mesmo. A extraordinária concepção metafísica de Leibniz, admirada também por Goethe, foi de que a multiplicidade de espelhos do universo, representados pelos indivíduos, singulares, forma na sua totalidade um único universo. Isso se deixa configurar num universo do diálogo. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 16.

Assim, quando proponho o desenvolvimento da consciência hermenêutica como uma possibilidade mais abrangente, como contraponto a essa consciência estética e histórica, minha intenção imediata é buscar superar a redução teórico-científica que sofreu o que chamamos tradicionalmente de “ciência da hermenêutica” pela sua inserção na ideia moderna de ciência. Na hermenêutica de Schleiermacher fez-se ouvir tanto a voz do romantismo histórico quanto os interesses do teólogo cristão, na medida em que enquanto uma teoria geral da compreensão sua hermenêutica deveria favorecer a tarefa específica da interpretação da Sagrada Escritura. E, quando nos detemos a analisar essa hermenêutica, a perspectiva de Schleiermacher para essa disciplina mostra-se peculiarmente restringida pelo pensamento moderno de ciência. Schleiermacher define a hermenêutica como a arte de evitar mal-entendidos. Decerto, essa não é uma descrição totalmente errônea do esforço hermenêutico. O estranho induz facilmente mal-entendidos, produzidos pela distância temporal, pela mudança dos costumes de linguagem, a modificação do significado das palavras e dos modos de representação. Deve-se evitar o mal-entendido pela reflexão controlada por métodos. Mas também aqui devemos perguntar do seguinte modo: Quando afirmamos que compreender significa evitar mal-entendidos, estaremos definindo adequadamente o fenômeno da compreensão? Será que todo mal-entendido não pressupõe uma espécie de “acordo latente”? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

A história da compreensão não é menos antiga e honorável. Se quisermos reconhecer a hermenêutica onde ela aparece como uma verdadeira arte de compreender, então, se não quisermos começar com o Nestor da Ilíada, temos de começar com Ulisses. Poderíamos apelar para o fato de que o novo movimento de educação da sofística impulsionou de fato a interpretação de frases poéticas famosas, adornando-as artificialmente como exemplos pedagógicos. Junto com Gundert, poderíamos até contrapor a esta hermenêutica uma hermenêutica socrática. Mas isso está longe de ser uma teoria da compreensão, e parece ser característico para o surgimento do problema hermenêutico a eliminação de um distanciamento, a superação de uma alteridade e a construção de uma ponte entre o outrora e o agora. Nesse sentido, seu momento característico foi a época moderna, que ganhou consciência de sua distância em relação aos tempos passados. Algo disso já se encontrava na pretensão teológica de compreensão da Bíblia, própria da Reforma, e de seu princípio da sola scriptura, mas encontrou um real desenvolvimento na medida em que o Iluminismo e Romantismo geraram uma consciência histórica, que estabeleceu uma relação cindida com toda tradição. Outra consequência se deu pelo fato de a história da teoria hermenêutica ter-se orientado na tarefa da interpretação das “manifestações vivas expressas por escrito”, mesmo que a elaboração teórica da hermenêutica de Schleiermacher tenha incluído a compreensão no modo como se dá no trato oral da conversação. A retórica, ao contrário, voltava-se para a imediaticidade do efeito do discurso, e mesmo tendo trilhado também os caminhos da escrita artística e desenvolvido a teoria do estilo e os estilos, sua verdadeira realização não se dá na leitura mas no dizer. A posição intermédia do discurso proclamado já denuncia a tendência de basear a arte do discurso em recursos artísticos fixados por escrito, desligando-os da situação originária. Aqui se inicia a influência recíproca com a poética, cujos objetos de linguagem alcançam um tal grau de pureza artística que sua transformação da oralidade para a escritura e vice-versa se dá sem perdas. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Exatamente essa parece ser a situação da hermenêutica filosófica. Enquanto se definir a hermenêutica como a arte da compreensão e se compreender o exercício dessa arte como um comportamento competente, do mesmo modo que a arte de discursar e de escrever, esse saber disciplinar pode fazer uso consciente das regras e pode ser chamado de teoria da arte. Assim Schleiermacher e seus seguidores concebiam a hermenêutica como “teoria da arte”. Mas a hermenêutica “filosófica” não é isso. Ela não está à procura de elevar uma competência à consciência de regras. Essa “elevação continua sendo um processo peculiarmente ambivalente, uma vez que por outro lado a consciência das regras “eleva-se” sempre de novo a uma competência “automática”. A hermenêutica filosófica, ao contrário, reflete sobre essa competência e sobre o saber onde essa repousa. Não se presta mais, portanto, à superação de determinadas dificuldades de compreensão como ocorre frente a textos ou no diálogo com outras pessoas, mas o que busca é, como diz Habermas, um “saber reflexivo crítico”. Mas o que significa isso? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

O primeiro exemplo é o que constitui a base dos estudos de Wilhelm Dilthey sobre a história da hermenêutica, aquela obra premiada da Academia das ciências de Berlim, escrita por Dilthey em sua juventude e da qual só conhecíamos alguns fragmentos e um resumo de 1900, até ser finalmente publicada em 1966 graças à redação de Martin Redekner do segundo volume inacabado da Vida de Schleiermacher, de Dilthey. Ali Dilthey faz uma apresentação magistral de Flacius documentada com inúmeras citações. Examina e valoriza a teoria hermenêutica de Flacius utilizando o critério do sentido histórico que tomou consciência de si próprio e do método científico, histórico-crítico. À luz desse critério mescla-se na obra de Flacius a antecipação genial de certas verdades com incríveis recaídas na estreiteza dogmática e no formalismo vazio. Na realidade, se a interpretação da Sagrada Escritura não tivesse apresentado outro problema a não ser o que ocupou a teologia histórica da época liberal, à qual pertenceu Dilthey, teríamos dito a última palavra com isso. A intenção louvável de se compreender cada texto desde sua circunstância própria, sem submetê-lo a nenhuma pressão dogmática, leva finalmente, na aplicação ao Novo Testamento, à dissolução do cânon, se dermos prioridade, com Schleiermacher, à interpretação “psicológica”. Cada escritor do Novo Testamento é um caso à parte nessa perspectiva hermenêutica, e isso leva a solapar a dogmática protestante apoiada no princípio bíblico. É uma consequência que Dilthey aprovou implicitamente. Está implícita em sua crítica a Flacius. Dilthey contesta a exegese de Flacius em sua concepção histórica e abstratamente lógica do princípio da Escritura global ou do cânon. A tensão entre dogmática e exegese aparece também em outras passagens da exposição de Dilthey e sobretudo na crítica a Franz e à sua ênfase na primazia do contexto da Escritura global frente aos textos soltos. Atualmente a crítica à teologia histórica levada a efeito nos últimos cinquenta anos e que culmina na elaboração do conceito de “querigma” nos tornou mais receptivos à legitimidade hermenêutica do cânon e em consequência à legitimidade hermenêutica do interesse dogmático em Flacius. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Um terceiro tipo de compreensão prévia que ilumina a história da hermenêutica numa dimensão especial é uma contribuição muito erudita da história primitiva da hermenêutica feita recentemente por Hasso Jaeger. Jaeger outorga uma relevância capital a Dannhauer, que emprega pela primeira vez a palavra “hermenêutica” e a ideia de uma ampliação da lógica aristotélica com a lógica da interpretação. Vê nesse autor o último testemunho da res publica literária humanista, antes desta ser congelada pelo racionalismo e antes que o irracionalismo e o subjetivismo moderno, desde Schleiermacher, passando por Dilthey até Husserl e Heidegger (e outros ainda piores) produzissem seus frutos venenosos. Surpreendentemente o autor não toca no tema da relação entre o movimento humanista e o princípio bíblico da Reforma nem no tema do papel determinante que a retórica desempenha para toda a problemática da interpretação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Mas o real alcance desse problema só foi apreendido realmente pela hermenêutica pietista desenvolvida por Rambach e seus sucessores, seguindo as pegadas de August Hermann Francke. Só aqui o velho capítulo da retórica clássica, despertar a afeição, é reconhecido como um princípio hermenêutico. Em virtude da natureza própria do espírito, todo discurso implica sempre o afeto, e a experiência diz que “as mesmas palavras pronunciadas com afeto e gestos diferentes costumam produzir sentidos diversos”. O reconhecimento da importância da modulação afetiva do discurso (especialmente na pregação) constitui a raiz da interpretação “psicológica” proposta por Schleiermacher e, no fundo, de toda a teoria da empatia; nesse sentido, escreve Rambach: “O intérprete precisa revestir-se do espírito do autor, até converter-se lentamente como em seu segundo eu”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Encontramos essa problemática do conceito da teoria da arte também em Schleiermacher, aplicado à retórica e à hermenêutica. A interferência entre compreender e interpretar é muito parecida com a que existe entre falar e a arte de falar. Em ambos os casos o aspecto da aplicação de regras é algo tão secundário que, na retórica e na hermenêutica, e em perfeita afinidade com o caso da lógica, parece mais correto falarmos de uma espécie de conscientização teórica, ou seja, de uma explicação “filosófica” que é mais ou menos desvinculada de sua função aplicativa. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Parece que lhe causa certa satisfação que a hermenêutica careça de tradição. Em todo caso, só pode referir-se em sentido diverso a Dilthey e à problemática de uma hermenêutica filosófica desenvolvida a partir de Heidegger. Dilthey buscou mostrar a tradição da hermenêutica teológica, onde se encontram Schleiermacher e, com ele, o método histórico da era pós-romântica. A pré-história pré-romântica, com efeito, é mais pré-história do que história. A “hermenêutica recente” no sentido de Jaeger só pode nascer pela ampliação da teoria da interpretação teológica e filológica à ideia de uma metodologia histórica geral. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Temos que reconhecer também que o que Jaeger chama de “hermenêutica recente” é muitas vezes um produto muito ambíguo. Sua tese e suas tendências são mal compreendidas ao ponto de tornar-se caricaturas. Mas o que entende o próprio Jaeger por hermenêutica recente combatida por ele? Poderia se dizer que é para ele uma arma milagrosa do século irracionalista. O que significa para ele “interpretar”? Se se referisse à psicologização da interpretação de Schleiermacher e posteriormente de Dilthey, eu poderia concordar com ele. Mas a partir da grande distância que ele observa como membro da Respublica litteraria universalis, como ele se considera, a síntese da tradição hermenêutico-idealista que fazem Dilthey e E. Betti coincide para ele com Heidegger e com minha própria contribuição (35). Uma metodologia das ciências do espírito e uma reflexão filosófica que descobre os limites de todo método são valem para ele a mesma coisa. Como compreender isso? Que todas são obras do diabo? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Na época do romantismo, quando Schleiermacher e seus seguidores conformaram a hermenêutica numa “arte” universal destinada a legitimar a peculiaridade da ciência teológica, equiparando sua metodologia ao círculo das ciências, isso significou um passo decisivo no desenvolvimento da hermenêutica. Schleiermacher, possuidor de um dom natural da intuição compreensiva do próximo e a quem podemos chamar o amigo mais genial de uma época em que a cultura da amizade alcançou um valor elevado, sabia perfeitamente que a arte da compreensão não se podia limitar à ciência. Segundo ele, essa arte desempenha um papel de destaque na vida interpessoal. E sempre que nos defrontamos com palavras de uma pessoa dotada de profundidade, buscando compreender seu sentido, de imediato inacessível, lançamos mão constantemente dessa arte. Tentamos captar, segundo ele, algo entre as palavras do interlocutor espiritual, do mesmo modo que fazemos quando lemos entre as linhas. Não obstante, é justamente em Schleiermacher onde aparece a pressão que o conceito moderno de ciência exerce na autocompreensão hermenêutica. Ele distingue entre uma hermenêutica em sentido amplo e uma prática mais estrita da hermenêutica. A práxis em sentido amplo parte do pressuposto de que, ante as afirmações do outro, a reta compreensão e o mútuo entendimento constituem a regra, e o mal-entendido a exceção. A práxis estrita, ao contrário, parte do pressuposto de que o mal-entendido é a regra e que só com um esforço técnico se pode evitar o mal-entendido e alcançar uma compreensão correta. É evidente que essa distinção afasta a tarefa da interpretação do contexto consensual onde se alterna constantemente a verdadeira vida da compreensão. Agora ela deve superar um estranhamento total. O emprego de um recurso artificial destinado a descobrir o estranho e apropriar-se dele toma o lugar da faculdade comunicativa que permite a convivência dos seres humanos e onde se relacionam com a tradição que os sustenta. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Seguindo essa temática universal, aberta por Schleiermacher e sobretudo sua contribuição mais própria, a introdução da interpretação “psicológica”, destinada a complementar a interpretação “gramatical” tradicional, a hermenêutica evoluiu no século XIX para uma metodologia. Seu novo objeto são os “textos”, uma entidade anônima, que o investigador deve enfrentar. Na linha de Schleiermacher, Wilhelm Dilthey levou a cabo a fundamentação hermenêutica das ciências do espírito, estabelecendo as bases para sua equiparação com as ciências naturais e ampliando o acento que Schleiermacher dera à interpretação psicológica. Segundo Dilthey, o verdadeiro triunfo da hermenêutica estaria na interpretação das obras de arte, que traz à consciência uma produção genial inconsciente. Frente à obra-de-arte, todos os métodos psicológicos tradicionais — gramatical, histórico, estético e psicológico — , só representam uma suprema realização do ideal da compreensão na medida em que todos esses recursos e métodos se põem a serviço da compreensão da obra concreta. Aqui, e sobretudo no campo da crítica literária, o aperfeiçoamento da hermenêutica romântica deixa um legado que denuncia sua origem remota, mesmo no uso da linguagem: o de ser crítica. Crítica significa preservar a obra individual em sua validade e conteúdo e diferenciá-la de tudo que não satisfaz seu critério. O esforço de Dilthey serviu para estender o conceito metodológico da ciência moderna também à “crítica” e desdobrar cientificamente a “expressão” poética partindo de uma psicologia compreensiva. Foi tomando o caminho que passa pela “história da literatura” que ele inaugurou o termo “ciência da literatura”. Reflete o ocaso de uma consciência da tradição na época 314] do positivismo científico do século XIX, que no espaço da língua alemã elevou a equiparação com o ideal da ciência natural moderna a ponto de modificar o nome. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Isso não significa que se menospreze ou se limite o rigor metodológico da ciência moderna. As denominadas “ciências hermenêuticas” ou “ciências do espírito” estão sujeitas aos mesmos critérios [318] de racionalidade crítica que caracteriza o método de todas as ciências, embora seus interesses e procedimentos sejam substancialmente diversos dos que animam as ciências naturais. Mas podem apelar com razão sobretudo para o paradigma da filosofia prática, que em Aristóteles poderia ser chamada também de “política”. Aristóteles classificou essa ciência como “a ciência mais arquitetônica”, uma vez que reunia em si todas as ciências e artes do saber antigo. A própria retórica pertencia a ela. A pretensão universal da hermenêutica consiste assim em ordenar todas as ciências, em captar as chances de êxito cognitivo de todos os métodos científicos, sempre que possam ser aplicados a objetos, e em utilizá-los em todas as suas possibilidades. Mas se a “política”, enquanto filosofia prática, é algo mais que uma técnica suprema, o mesmo podemos dizer da hermenêutica. Tudo que as ciências podem conhecer, a hermenêutica deve levá-lo à relação de consenso, onde todos nós estamos. Uma vez que inclui a contribuição das ciências nessa relação de consenso que nos liga com a tradição legada a nós numa unidade vital, a própria a hermenêutica não é um simples método nem uma série de métodos, como ocorreu no século XIX desde Schleiermacher e Boeckh até Dilthey e Emilio Betti. Nesse período, a hermenêutica se converteu em teoria metodológica das ciências filológicas. A hermenêutica é antes filosofia. Não se limita a prestar conta dos procedimentos que a ciência aplica. Trata igualmente das questões prévias à aplicação de qualquer ciência — como a retórica, tematizada por Platão. Trata-se das questões que determinam todo o saber e o fazer humanos, essas questões “máximas” que são decisivas para o ser humano enquanto tal e para sua escolha do “bem”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Pois bem, essa filosofia neokantiana dos valores constituía uma base muito frágil. Muito mais influente seria o legado romântico do espírito alemão, o legado de Hegel e de Schleiermacher, administrado especialmente pelo trabalho de Dilthey em torno a uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito. O pensamento de Dilthey teve um horizonte mais amplo do que o da teoria do conhecimento do neokantismo, uma vez que assumiu toda a herança de Hegel: a teoria do espírito objetivo. Segundo essa teoria, o espírito não ganha corpo apenas na subjetividade de sua realização atual, mas também na objetivação de instituições, sistemas de ação e sistemas de vida como a economia, o direito e a sociedade, e assim, enquanto “cultura”, convertem-se em objeto de possível compreensão. A tentativa diltheyana de renovar a hermenêutica de Schleiermacher, demonstrando, por assim dizer, como fundamento das humaniora o ponto de identidade entre o que compreende e o compreensível, foi condenada ao fracasso porque a história apresenta um estranhamento e uma heterogeneidade demasiado profundos para que possam ser considerados tão confiadamente a partir da perspectiva de sua compreensibilidade. Um sintoma característico de ausência da “facticidade” do acontecer no pensamento de Dilthey é este ter considerado a autobiografia, portanto, o caso em que alguém expõe uma trajetória de vida, vivenciando-a retrospectivamente, como modelo de compreensão histórica. Na verdade, uma autobiografia é mais uma história das ilusões privadas do que a compreensão do acontecimento histórico real. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

Convém lembrar esta pré-história de nossa problemática atual. A consciência metodológica das ciências históricas, que aflora desde o romantismo, e a pressão que exerceu o modelo triunfante das ciências naturais fizeram com que a reflexão filosófica reduzisse a generalidade da experiência hermenêutica a sua forma científica. Nem em Wilhelm Dilthey, que buscou na continuação das ideias de Friedrich Schleiermacher e de seus amigos românticos a fundamentação das ciências do espírito em sua historicidade, nem entre [331] os neokantianos, que perseguiram uma justificação epistemológica das ciências do espírito em forma de filosofia transcendental da cultura e dos valores, estava ainda presente toda a amplitude da experiência hermenêutica fundamental. Talvez esse fato tenha se produzido com maior intensidade no país de Kant e do idealismo transcendental do que em países nos quais les lettres revestem certa importância na vida pública. No entanto, a reflexão filosófica acabou tomando uma direção similar em todas as partes. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Meu ponto de partida foi a crítica ao idealismo e ao metodologismo da era da teoria do conhecimento. Foi de especial importância para mim o aprofundamento do conceito de compreensão, por Heidegger, que o converteu num existencial, quer dizer, numa determinação básica categorial da pre-sença (Dasein) humana. Foi o estímulo que me levou a uma superação crítica do debate metodológico e a uma ampliação da problemática hermenêutica, contemplando não somente todo tipo de ciência, mas também a experiência de arte e a experiência da história. Ora, para sua análise crítica e polêmica da compreensão, Heidegger apoiou-se no antigo discurso sobre o círculo hermenêutico, reivindicou-o como um círculo positivo e em sua analítica da pre-sença elevou-o a conceito. Não devemos esquecer, porém, que não se trata aqui da circularidade como metáfora metafísica, mas de um conceito lógico que encontra seu verdadeiro lugar na teoria da demonstração científica como doutrina do círculo vicioso. O conceito de círculo hermenêutico significa que no âmbito da compreensão não se pretende deduzir uma coisa de outra, de modo que o erro lógico da circularidade na demonstração não é aqui nenhum defeito do procedimento, mas representa a descrição adequada da estrutura do compreender. Dilthey, seguindo a Schleiermacher, introduziu a expressão “círculo hermenêutico” em contraste com o ideal de raciocínio lógico. Se considerarmos o verdadeiro alcance do conceito de compreensão no uso da linguagem, veremos que a expressão “círculo hermenêutico” sugere na realidade a estrutura do ser-no-mundo, quer dizer, a superação da divisão entre sujeito e objeto na analítica transcendental da pre-sença levada a cabo por Heidegger. Quem sabe usar uma ferramenta não a converte em objeto, mas trabalha com ela. Assim também o compreender, que permite à pre-sença conhecer-se em seu ser e em seu mundo, não é uma conduta relacionada com determinados objetos de conhecimento, mas seu próprio ser-no-mundo. Desse modo a metodologia hermenêutica de cunho diltheyano se transforma numa “hermenêutica da facticidade” que guia a pergunta de Heidegger pelo ser, incluindo a indagação fundamental do historicismo e de Dilthey. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

De minha parte, procurei não esquecer o limite implícito em toda experiência hermenêutica do sentido. Ao escrever que “o ser que pode ser compreendido é linguagem”, essa frase dava a entender que o que é nunca pode ser inteiramente compreendido. Isso porque o que serve de orientação a uma linguagem sempre ultrapassa aquilo que nela se enuncia. O que vem à linguagem permanece como aquilo que deve ser compreendido, mas sem dúvida é sempre tomado e percebido como algo. Essa é a dimensão hermenêutica na qual o ser “se mostra”. A “hermenêutica da facticidade” [335] significa uma transformação do sentido da hermenêutica. Na tentativa que empreendi buscando descrever os problemas, deixei-me guiar pela experiência de sentido que podemos fazer com a linguagem para demonstrar o limite que lhe é imposto. O “ser para o texto”, que me serviu de orientação, não pode competir em radicalidade de experiência de limite com o “ser para a morte”, e a pergunta inesgotável pelo sentido da obra de arte ou pelo sentido da história que nos acontece, tampouco significa um fenômeno tão originário como a questão da finitude imposta à pre-sença humana. Nesse sentido, posso compreender por que o Heidegger tardio (e sobre isso talvez Derrida estivesse de acordo com ele) disse que eu não havia abandonado realmente a esfera da imanência fenomenológica presente em Husserl e em minha primeira formação neokantiana. Também consigo compreender que alguém creia ver esta “imanência” metodológica na insistência no círculo hermenêutico. De fato, querer romper este círculo parece-me uma exigência irrealizável, e até verdadeiramente contraditória. Como ocorre em Schleiermacher e em seu sucessor Dilthey, essa imanência nada mais é que a descrição do que é a compreensão. Desde Herder, entendemos por “compreender” algo mais que um procedimento metodológico para descobrir um sentido determinado. Ante a amplitude da compreensão, a circularidade que medeia entre o sujeito que compreende e aquilo que ele compreende deve reclamar para si uma verdadeira universalidade, e justamente aqui está o ponto no qual eu creio haver seguido a crítica de Heidegger ao conceito fenomenológico de imanência implícito na última fundamentação transcendental de Husserl. O caráter dialogai da linguagem, que eu busquei elaborar, ultrapassa o ponto de partida da subjetividade do sujeito, inclusive o do falante em sua referência ao sentido. O que se manifesta na linguagem não é a mera fixação de um sentido pretendido, mas um intento em constante mudança ou, mais precisamente, uma tentativa reiterada de deixar-se tomar por algo e com alguém. Mas isto significa expor-se. A linguagem está longe de ser uma mera explicitação e credenciamento de nossos preconceitos. Ela os coloca, antes, em jogo, os expõe à própria dúvida e à contraposição do outro. Quem já não fez a experiência — sobretudo frente ao outro, a quem queremos convencer — da facilidade com que alguém expressa suas razões, sobretudo as razões contrárias ao outro? A mera presença do outro, mesmo que ele nada diga, ajuda a revelar e desfazer a própria clausura e estreitamento. A [336] experiência dialogai produzida aqui não se limita à esfera das razões de uma e outra parte, cujo intercâmbio e coincidência podem definir o sentido de todo debate. Há algo mais, como mostram as experiências descritas; um potencial de alteridade, por assim dizer, que está além de todo consenso comum. Esse é o limite que Hegel não ultrapassou. É verdade que ele se deu conta do princípio especulativo que rege o logos, demonstrando-o até com certa figura de dramaticidade. Hegel desenvolveu a estrutura da autoconsciência e do “conhecimento de si mesmo na alteridade” como a dialética do reconhecimento, elevando essa dialética ao extremo da luta pela sobrevivência. Também Nietzsche, com sua aguda visão psicológica, revelou o substrato de “vontade de poder” presente até na submissão e no sacrifício: “também no escravo há vontade de poder”. Mas o fato de esta tensão entre a auto-renúncia e a auto-relação invadir a esfera das razões de uma e outra parte, a esfera portanto do debate temático, e de certo modo instalar-se nela, constitui o ponto onde Heidegger permanece para mim decisivo, justamente porque detecta aí o “logocentrismo” da ontologia grega. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Em Heidegger repetiu-se uma irrupção parecida, e até mais vigorosa, do impulso originário da linguagem na esfera do pensamento. O que contribuiu muito para isso foi seu recurso consciente à originalidade da linguagem filosófica grega. Assim, em virtude da força intuitiva de suas raízes plantadas no mundo da vida, a “linguagem” retomou toda sua virulência e penetrou decisivamente no sutil artifício descritivo da fenomenologia husserliana. Era [362] inevitável que a própria linguagem se convertesse em objeto de sua auto-compreensão filosófica. Quando já em 1920, como eu mesmo posso testemunhar, partindo de uma cátedra alemã, um jovem pensador — Heidegger — começou a meditar sobre o significado de “mundear” (es weltet), isso representou uma brecha aberta na linguagem escolar da metafísica, que se pautava por uma linguagem sólida, mas inteiramente distanciada de suas origens. Esse fato representou ao mesmo tempo um acontecimento no âmbito da linguagem e a conquista de uma compreensão mais profunda da própria linguagem. A atenção que a tradição do idealismo alemão dedicou ao fenômeno da linguagem, desde Humboldt, os irmãos Grimm, Schleiermacher, Schlegel e por último Dilthey, e que deu um claro impulso à nova ciência da linguagem, sobretudo à linguagem comparada, permaneceu no âmbito da filosofia da identidade. A identidade do subjetivo e o objetivo, de pensamento e ser, de natureza e espírito se manteve até a filosofia das formas simbólicas inclusive, entre as quais destaca-se a linguagem. Como o ponto extremo desse fenômeno, encontramos a obra sintética da dialética hegeliana, que através de todas as contradições e diferenciações imagináveis, buscava restabelecer a identidade e elevar a originária ideia aristotélica do noesis noeseos a sua perfeição mais apurada. Foi assim que o parágrafo final da Enciclopédia de ciências filosóficas de Hegel o formulou, de um modo um tanto insolente. Como se a longa história do espírito tivesse dirigido todo seu esforço a uma única meta: tantae molis erat se ipsam cognoscere mentem, conclui Hegel evocando um verso de Virgílio. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Um ponto positivo dessa situação é o fato de o problema hermenêutico ter sido sistematicamente dimensionado e ordenado em toda sua amplitude pelo importante trabalho de um pesquisador italiano. O historiador de direito Emilio Betti, na sua grande obra Teoria genérale delia interpretazione — cujas ideias foram transpostas também para a língua alemã em um hermeneutisches Manifest (manifesto hermenêutico), sob o título Zur Grundlegung einer allgemeinen Auslegungslehre — , apresentou uma panorâmica do estado da questão, que seduz tanto pela amplitude de seu horizonte, pelo imponente conhecimento de detalhes, quanto por seu desenvolvimento sistemático. Encontra-se muito bem suprido e invulnerável contra os perigos de um objetivismo histórico ingênuo, sendo ao mesmo tempo historiador de direito, professor de direito e concidadão de Croce e Gentile e até muito familiarizado com a grande filosofia alemã, de tal modo que fala e escreve um alemão perfeito. Ele sabe colher e recolher os frutos da reflexão hermenêutica [393] que vêm amadurecendo num esforço incessante desde Wilhelm von Humboldt e Schleiermacher. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Enquanto jurista, Betti está longe de supervalorizar a opinião subjetiva, por exemplo, as casualidades históricas que levaram à formulação de um conteúdo jurídico, equiparando assim a opinião subjetiva ao sentido jurídico. Mas, por outro lado, mantém-se tão fiel à “interpretação psicológica” formulada por Schleiermacher que sua própria posição hermenêutica está constantemente ameaçada de afundar e desaparecer. Por mais que se esforce para superar o reducionismo psicológico e conceber sua tarefa como a reconstrução do nexo espiritual de valores e conteúdos de sentido, só consegue fundamentar a proposição dessa autêntica tarefa hermenêutica através de uma espécie de analogia com a interpretação psicológica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Com isso, Betti encontra-se na esteira de Schleiermacher, Boeckh, Croce entre outros. Estranhamente ele pensa poder garantir a “objetividade” da compreensão com esse estrito psicologismo [394] de cunho romântico. Ele acredita que essa objetividade estaria ameaçada por todos aqueles que, apoiados em Heidegger, consideram errôneo esse retorno à subjetividade da intenção. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

No início do desenvolvimento do século XIX encontra-se a Hermenêutica de Schleiermacher, que fundamenta sistematicamente a homogeneidade essencial no procedimento de interpretação da Sagrada Escritura e de todos os demais textos, exatamente como tinha em mente Semler. Nesse sentido, a contribuição mais marcante de Schleiermacher foi sua interpretação psicológica, segundo a qual cada pensamento de um texto, enquanto um momento de vida, deve ser referido ao contexto pessoal de vida de seu autor, se quiser ser compreendido plenamente. Nesse entremeio, alcançamos uma visão mais apurada da gênese do pensamento de Schleiermacher sobre a hermenêutica, depois que Academia das Ciências de Heidelberg publicou os manuscritos berlinenses, a partir de onde Lücke, a seu tempo, compôs a outra edição. Os resultados dessa retomada dos manuscritos originais não são revolucionários, mas tampouco são irrelevantes. Em sua introdução, H. Kimmerle mostra como os primeiros escritos colocam em primeiro plano a identidade do pensar e do falar, enquanto que os trabalhos posteriores consideram o falar como uma exteriorização individualizadora. Acrescenta-se a isso o incremento paulatino do ponto de vista psicológico, que acaba tendo predomínio sobre o ponto de vista da interpretação “técnica” (“estilo”), genuinamente baseada na linguagem. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

É muito conhecido o fato de que a orientação psicológico-subjetiva de Schleiermacher desafia a crítica teológica, inclusive no âmbito da dogmática, que tornou-se novamente acessível graças à nova e esplêndida edição de Martin Redeker. A “autoconsciência da fé” é uma base dogmaticamente perigosa. O livro de Christoph Senft, que discute com bastante agudeza intelectual a evolução que vai de Schleiermacher à teologia liberal de Ritschl, apresenta essa ideia de maneira bastante satisfatória. A respeito de Schleiermacher, Senft escreve o seguinte: VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Antes disso, na época do romantismo alemão, a hermenêutica se orientara pelas questões centrais da filosofia por obra de Schleiermacher. Seu pensamento, baseado na filosofia do diálogo, como a concebia sobretudo Friedrich Schlegel, parte do significado metafísico da individualidade e de sua subordinação e tendência ao infinito. Em seguida, com Wilhelm Dilthey a hermenêutica adquiriu seu caráter propriamente filosófico. Em 1966, publicou-se pela primeira vez, entre os materiais diltheyanos sobre a vida de Schleiermacher reunidos em um segundo volume, o grande estudo do jovem Dilthey sobre hermenêutica. Desse estudo só conhecíamos alguns fragmentos, graças ao tratado acadêmico de 1900. Entre outras coisas ele mostra como as bases da problemática filosófica da hermenêutica radicam-se no idealismo alemão, mas não somente na descrição dialética de Schleiermacher sobre a compreensão como ação recíproca de subjetividade e objetividade, de [426] individualidade e identidade, mas sobretudo na crítica de Fichte ao conceito dogmático de substância e nas possibilidades que ele abriu para se pensar o conceito de força histórica. Baseia-se também em Hegel, na medida em que eleva o espírito “subjetivo” ao caráter de espírito “objetivo”. Dilthey soube ver justamente a relevância pioneira da Historik (Historiografia) de Droysen para a metodologia das ciências do espírito, na medida em que Droysen aproveitou o legado idealista para uma autocompreensão adequada do método histórico. A herança dessa hermenêutica idealista continua viva até os nossos dias. Uma excelente apresentação sistemática e um desenvolvimento atual devemos ao historiador de direito Emilio Betti, cujo “manifesto” hermenêutico em língua alemã recolhe o resumo dessa tradição (cf. Betti). Ele fez sua exposição sistemática em uma obra muito abrangente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Nesse sentido, a dimensão da teoria da ciência foi radicalmente ultrapassada. Nessa teoria, desde Dilthey até Betti o pensamento idealista foi utilizado em função da hermenêutica. Schleiermacher já havia destacado a conexão interna existente entre falar, compreender e interpretar, dissolvendo a vinculação tradicional do tema hermenêutico a “manifestações vitais fixadas por escrito” (Dilthey). Com isso, restituiu o caráter hermenêutico ao diálogo vivo. Mas também no estreitamento epistemológico que hermenêutica voltou a sofrer no século XIX não se puderam esconder as dificuldades que se opunham a uma teoria geral da interpretação inspirada no idealismo. O fato de a hermenêutica jurídica, que reivindica uma função legislativa, dever conectar-se à área da metodologia hermenêutica das ciências do espírito tornava-se tão obscuro como o sentido reprodutivo da interpretação que desempenha papel tão importante no teatro e na música. Ambos indicam para além da problemática inerente à teoria da ciência. Isso vale também para a teologia. Pois, mesmo que a hermenêutica teológica não lance mão de nenhuma outra fonte de inspiração ou de revelação para o ato de compreensão da Sagrada Escritura, o acontecimento querigmático da interpretação da Bíblia, como se dá na pregação ou no cuidado pastoral individual, enquanto fenômeno hermenêutico, não pode ser simplesmente desqualificado nem reduzido à problemática científica da teologia. Desse modo, foi preciso interrogar qual a necessidade de se abordar a unidade do problema hermenêutico num âmbito que ultrapassa a teoria da ciência e apreender o fenômeno da compreensão e da interpretação em um sentido mais originário. Mas então deveríamos ultrapassar também a ampliação universal da hermenêutica feita por Schleiermacher e sua fundamentação na unidade do pensamento e da fala. Isso porque deveríamos englobar também a hermenêutica jurídica, que antes estava estreitamente ligada à hermenêutica teológica, porque ambas incluíam “interpretação” e aplicação, isto é, o emprego de algo normativo ao caso particular. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Tampouco a fundamentação do conceito de consciência em uma rigorosa fenomenologia da temporalidade, como a que persegue Husserl no esforço de toda sua vida, transcende esse conceito grego de presença. Daí, o problema da linguagem não alcançar no pensamento da tradição o lugar central que hoje lhe outorgamos. Nem Hegel nem Husserl abordaram expressamente esse problema, e mesmo as fundamentações modernas do conhecimento com os recursos da semântica e de uma semiótica universal não conferem o lugar central que deve ser atribuído ao acontecimento da linguagem como tal. O debate hermenêutico moderno colocou o fenômeno do diálogo no centro das discussões, porque a linguagem só se dá, se forma, se amplia e atua no diálogo. Em todo caso, o fenômeno da compreensão sustenta-se no caráter de linguagem desse processo, sem implicar por isso a unilateralidade da teoria psicológica da interpretação de Schleiermacher. A dimensão hermenêutica permanece caracterizada, antes, justamente pelo caráter escrito de todo fenômeno de linguagem. Se há um modelo que pode ilustrar realmente as tensões presentes na compreensão, esse é o modelo da tradução. Na tradução apropria-se o estranho enquanto tal, o que não significa deixá-lo estar como estranho nem incorporá-lo na própria língua pela mera reprodução de seu caráter estranho. Nela fundem-se, antes, os horizontes do passado e do presente num constante movimento, como o que constitui a essência da compreensão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Isso leva-me a falar da história da hermenêutica. A sua tematização em meu próprio ensaio representou no fundo uma tarefa preparatória, formando um pano de fundo para o meu trabalho. A consequência disso é que todas as minhas exposições demonstraram uma certa unilateralidade. Isso vale sobretudo para Schleiermacher. Nem as lições sobre hermenêutica — encontradas tanto na edição de Lücke quanto no material original que H. Kimmerle editou nas “Abhandlungen der heidelberger Akademie der Wissenschaften” (e entrementes completadas com um minucioso epílogo [463] crítico) — nem tampouco as conferências acadêmicas de Schleiermacher — que comportam a casual referência polêmica a Wolf e Ast — podem ser comparadas com o conteúdo do seu curso de dialética, no que diz respeito ao peso teórico para uma hermenêutica filosófica, sobretudo o nexo entre pensar e falar elaborado ali. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Seja como for, dispomos atualmente de novos materiais de Dilthey que apresentam a filosofia de Schleiermacher desenhando de modo especial e com muita maestria seu pano de fundo contemporâneo, Fichte Novalis e Schlegel. É mérito de M. Redeker ter composto uma edição crítica minuciosa do segundo volume do Leben Schleiermachers (Vida de Schleiermacher) de Dilthey, a partir dos manuscritos legados. Assim, publica-se pela primeira vez a famosa e até agora desconhecida exposição de Dilthey da pré-história da hermenêutica nos séculos XVII e XVIII, da qual temos apenas um resumo no tratado acadêmico de 1900. Pela profundidade de seu estudo das fontes, pela universalidade de seu horizonte histórico e pela sua detalhada apresentação, supera em muito tudo que se fez até agora, não apenas as modestas contribuições que eu mesmo elaborei com muito esforço, mas também a obra estandártica de Joachim Wach. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

O mesmo vale também para os trabalhos mais recentes sobre Schleiermacher, sobretudo as contribuições de H. Kimmerle, H. Patsch e o livro de G. Vatimo. É possível que eu tenha acentuado demasiadamente a tendência de Schleiermacher a uma interpretação psicológica (técnica), face à interpretação gramática da linguagem. Seja como for, encontramos ali sua contribuição mais própria, e foi essa interpretação psicológica que fez escola. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Pude constatar isso de modo inequívoco no exemplo de Hermann Steinthal e no seguimento que Dilthey devota a Schleiermacher. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

A intenção teórica de meu próprio questionamento determinou o importante lugar que ocupa Wilhelm Dilthey no nexo dos problemas de minha investigação, junto com a energia com que acentuei sua atitude ambivalente frente à lógica indutiva de seu século e à herança romântico-idealista, o que no Dilthey tardio inclui não só Schleiermacher mas também o jovem Hegel. Nesse sentido, temos que destacar alguns novos aspectos. Com uma intenção oposta à minha, Peter Krausser rastreou o amplo interesse científico de Dilthey, ilustrando-o, em parte, com material das obras póstumas. A ênfase com que apresenta esse interesse de Dilthey é característica de uma geração que conheceu a Dilthey em sua atualidade tardia dos anos 20 do século XX. Para aqueles que tematizaram, primeiramente e com intenção teórica pessoal, o interesse de Dilthey pela historicidade e pela fundamentação das ciências do espírito, por exemplo, para Misch, Groethuysen e Spranger, mas também para Jaspers e Heidegger, sempre foi evidente que Dilthey teve grande participação nas ciências da natureza de seu tempo, sobretudo no seu ramo antropológico e psicológico. Krausser desenvolve a teoria estrutural de Dilthey com os meios de uma análise quase cibernética, de modo que a fundamentação das ciências do espírito segue exatamente o modelo das ciências da natureza. Mas isso sobre a base de dados tão vagos que qualquer cibernético persignar-se-ia diante disso. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Ora, a objeção mais grave que se fez contra o meu esboço de uma filosofia hermenêutica foi a de que eu extraio o significado fundamental do entendimento presumivelmente a partir da vinculação que a linguagem tem com toda compreensão e todo acordo, legitimando assim um preconceito social em favor das relações vigentes. Pois bem, creio que está realmente correto e continua sendo uma ideia real o fato de que só se pode alcançar o acordo sobre a base de um entendimento originário e que a tarefa da compreensão e da interpretação não pode ser descrita como se a hermenêutica tivesse de superar a rasa incompreensibilidade de um texto herdado da tradição, ou que sua tarefa primeira fosse superar o engano produzido pelo mal-entendido. Isso não me parece correto nem no sentido da hermenêutica ocasional dos tempos primitivos, que não refletia sobre suas outras pressuposições, nem tampouco no sentido de Schleiermacher e da ruptura romântica com a tradição, para a qual o primeiro elemento de todo compreender é o mal-entendido. Todo acordo na linguagem não apenas pressupõe um entendimento sobre os significados da palavra e sobre as regras da língua falada. Em tudo que se pode discutir com sentido há, ao contrário, muitos elementos que permanecem incontestados, também com referência a “coisas”. A minha insistência nesse ponto pareceria testemunhar uma tendência conservadora, desautorizando assim a tarefa crítico-emancipatória da reflexão hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

O problema fica bem caracterizado no conceito kierkegaardiano da “simultaneidade”. Seu significado não é exatamente a onipresença, no sentido de uma atualização histórica, mas coloca uma tarefa que posteriormente eu mesmo chamei de tarefa da aplicação. Frente à objeção de Bormann, gostaria de argumentar que a diferenciação que propus entre simultaneidade e concomitância estética segue a mesma linha de Kierkegaard, embora formulada com uma aplicação de conceitos distinta. É possível que Bormann se refira à seguinte nota do diário: “A situação da simultaneidade é levada a bom termo”. Nesse caso, eu digo a mesma coisa com a expressão “totalmente mediado”, e isso significa, até a imediata coexistência (Zugleichsein). Para quem tem presente o uso de linguagem de Kierkegaard em sua polêmica contra a “mediação”, isso soa como uma clara recaída em Hegel. Deparamo-nos aqui com dificuldades típicas que a hermeticidade da sistemática hegeliana provoca a toda tentativa de manter distância de sua coerção conceitual. Elas atingem tanto Kierkegaard quanto minha própria tentativa de ganhar distância frente a Hegel, à mão de um conceito kierkegaardiano [472]. Assim, comecei a estudar Hegel a fim de aguçar a dimensão hermenêutica da mediação, tanto de antanho quanto do hoje, frente à ingênua falta de conceitos da concepção histórica. Foi nesse sentido que confrontei Hegel com Schleiermacher. Mas, na verdade, na concepção da historicidade do espírito, dou um passo a mais que Hegel. O conceito de Hegel sobre “religião da arte” designa exatamente aquilo que move a minha dúvida hermenêutica sobre a consciência estética: A arte tem sua possibilidade suprema não como arte, mas como religião, como presença do divino. Mas quando Hegel declara que toda arte é algo já passado, essa arte acaba sendo absorvida também pela consciência que recorda historicamente, e como passada ganha sincronicidade estética. Foi a visão desse contexto que me impôs a tarefa hermenêutica de afastar a verdadeira experiência da arte — que não experimenta a arte como arte — da consciência estética, lançando mão do conceito da não diferenciação estética. Creio tratar-se aqui de um problema legítimo, que não procede da devoção à história, mas que nossa experiência da arte não pode perder de vista. Trata-se de uma alternativa falsa querer considerar “arte” como originariamente contemporânea, como a-histórica ou como vivência da formação histórica. Hegel tem razão. Por isso, continuo sem poder concordar com a crítica de Oskar Becker, assim como com qualquer objetivismo histórico, que dentro de certos limites poderia ser válido: a tarefa da integração hermenêutica continua de pé. Pode-se dizer que isso corresponde mais ao estágio ético de Kierkegaard do que ao religioso. E nisso Bormann poderia ter razão. Mas o estágio ético não contém um certo predomínio conceitual também no próprio Kierkegaard? E é assim que alcança transcendência religiosa, mas apenas na medida em que “chama a atenção”, e não de outro modo. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Desde então, continuei trabalhando nessa direção. E certamente não sou o único. A distinção que faz Wellek-Warren entre “denotativo e conotativo” exige uma análise mais precisa nessa direção. Na análise dos diversos modos de linguagem, busquei determinar sobretudo o significado que possui o escrito para a idealidade do elemento de linguagem. Recentemente Paul Ricoeur, em reflexões semelhantes, chegou aos mesmos resultados, a saber, o escrito confirma a identidade do sentido e testemunha a dissociação do lado psicológico do falar. Paralelamente isso esclarece de modo objetivo por que a hermenêutica que segue Schleiermacher, sobretudo Dilthey, apesar de toda sua preocupação psicológica, não assumiu a fundamentação romântica da hermenêutica no diálogo vital, mas retornou às “manifestações vitais fixadas por escrito” da antiga hermenêutica. Corresponde a isso o fato de Dilthey ver o triunfo da hermenêutica na interpretação literária. Frente a isso, designei a “conversação” como a estrutura do acordo na linguagem, caracterizando-a como dialética de pergunta e resposta. Isso confirma-se plenamente também no nosso “ser para o texto”. As perguntas que um texto nos impõe para sua interpretação só podem ser compreendidas se o texto for compreendido, por seu turno, como resposta a uma pergunta. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

O que era essa hermenêutica filosófica? Em que difere da hermenêutica romântica, que nasceu quando Schleiermacher aprofundou uma antiga disciplina teológica, culminou na hermenêutica das ciências do espírito de Dilthey e acabou sendo considerada como uma metodologia das ciências do espírito? Com que direito meu próprio ensaio podia chamar-se de hermenêutica filosófica? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

O aspecto hermenêutico não pode limitar-se, pois, às ciências hermenêuticas da arte e da história, nem ao trabalho com os “textos”, nem sequer, como uma ampliação, à própria arte. A universalidade do problema hermenêutico, reconhecida já por Schleiermacher, abarca todo o âmbito do racional, tudo aquilo que pode ser objeto de acordo mútuo. Quando o entendimento parece impossível por se falarem “linguagens diferentes”, a tarefa da hermenêutica ainda não terminou. E ali que ela alcança seu sentido pleno como a tarefa de encontrar a linguagem comum. Mas a linguagem comum nunca é algo já definitivamente dado. É uma linguagem que faz o jogo entre os falantes, que deve permitir o início de um entendimento, ainda que as “opiniões” distintas se oponham frontalmente. Nunca se pode negar a possibilidade de entendimento entre seres racionais. Nem sequer o aparente relativismo presente na diversidade das linguagens humanas constitui uma barreira para a razão, cuja palavra é comum a todos, como já sabia Heráclito. A aprendizagem de línguas estrangeiras e mesmo a aprendizagem da fala pela criança não significam a simples assimilação dos recursos de entendimento. Essa aprendizagem representa antes uma espécie de pré-esquematização da experiência possível e sua primeira aquisição. O conhecimento de uma língua é um caminho para o conhecimento do mundo. Não apenas essa “aprendizagem”, mas toda e qualquer experiência se realiza em um constante progresso comunicativo de nosso conhecimento do mundo. Num sentido muito mais profundo e geral que o expresso na fórmula [498] cunhada por August Boeck para a função do filólogo, a experiência representa sempre “conhecimento do conhecido”. Vivemos dentro de tradições, e essas não são uma esfera parcial de nossa experiência do mundo nem uma tradição cultural que consta apenas de textos e monumentos e que transmite um sentido expresso pela linguagem e documentado historicamente. É o próprio mundo que percebemos em comum e se nos oferece (traditur) constantemente como uma tarefa aberta ao infinito. Não é nunca o mundo do primeiro dia, mas algo que herdamos. Sempre que vivemos algo, sempre que superamos o estranho, sempre que se produzem iluminações, conhecimento, assimilação, se realiza o processo hermêutico de inserção na palavra e na consciência comum. Mesmo a linguagem monologai da ciência moderna adquire realidade social por essa via. Creio que nesse ponto a universalidade da hermenêutica, tão contestada por Habermas, entre outros, se mostra bem fundamentada. A meu ver, Habermas jamais superou um conceito idealista do problema hermenêutico e acaba reduzindo meu posicionamento, equivocadamente, à “tradição cultural” no sentido de Theodor Litt O amplo debate dessa questão aparece documentado no volume da Editora Suhrkamp Hermeneutik und Ideologiekritik. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

A palavra “hermenêutica” é antiga. Mas também a coisa que ela designa, tanto faz se hoje é retratada como interpretação, exposição, tradição ou simplesmente compreensão, é muito anterior à ideia de uma ciência metodológica como a construída na época moderna. Mesmo o uso moderno da linguagem ainda reflete algo de peculiar dualidade e ambivalência na perspectiva teórica e prática, sob as quais encontra-se o tema da hermenêutica. No final do século XVIII e princípios do XIX a ocorrência da palavra “hermenêutica” em casos particulares em alguns escritores mostra que o uso da expressão — provavelmente provinda da teologia — era corrente e designava somente a faculdade prática de compreender, isto é, uma perspicácia sutil e intuitiva para conhecer os demais. Era algo que se elogiava muito no diretor espiritual, por exemplo. Encontrei essa palavra no escritor alemão Heinrich Seume (que estudara com Morus em Leipzig) e em Johann Peter Hebel. Mas o próprio Schleiermacher, o promotor da nova evolução da hermenêutica na linha da metodologia geral das ciências do espírito, indica expressamente que a arte da compreensão não é necessária somente para o trato com textos, mas também no trato com pessoas. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.