Gadamer (VM): razão natural

A crítica bíblica de Spinoza é um bom exemplo disso (e ao mesmo tempo um dos primeiros documentos). No capítulo 7 do Tractatus theologico-politicus Spinoza desenvolve seu método interpretativo da Escritura Sagrada, apoiando-se na interpretação da natureza: partindo dos dados históricos tem-se de inferir o sentido (mens) dos autores — enquanto que nesses livros são narradas coisas (histórias de milagres e revelações) que não são deriváveis dos princípios conhecidos da razão natural. Também nessas coisas, que em si mesmas são incompreensíveis (imperceptibiles), sem prejuízo para o fato de que, em seu conjunto, a Escritura possui indiscutivelmente um sentido moral, pode-se compreender tudo sobre o que se tem interesse, somente se reconhecermos “historicamente” o espírito do autor, isto é, superando nossos preconceitos, não pensamos noutras coisas do que nas que o autor pôde ter em mente. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Inclusive, um precursor imediato de Schleiermacher, o filólogo Friedrich Ast, mantinha uma compreensão da tarefa da hermenêutica, decisivamente baseada no conteúdo quando apresentava como sua tarefa específica a reconstrução do (298) entendimento entre antiguidade clássica e cristianismo, entre uma antiguidade clássica verdadeira, percebida com novos olhos, e a tradição cristã. Face ao Aufklärung, isso já é algo novo, no sentido de que uma hermenêutica assim não mede e rejeita a tradição a partir do padrão da razão natural. Mas, ao mesmo tempo que procura uma concordância plena de sentido entre as duas tradições, nas quais se encontra, essa hermenêutica continua essencialmente a tarefa da hermenêutica anterior de ganhar na compreensão um entendimento sobre o conteúdo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Mas também o lado objetivo desse círculo, tal como o descreve Schleiermacher, não atinge o cerne do problema. O objetivo de todo entendimento e compreensão é o acordo quanto à coisa. Dessa forma, a hermenêutica teve, desde sempre, a tarefa de suprir a falta de acordo ou de restabelecer o acordo, quando perturbado. A história da hermenêutica comprova isso. Por exemplo, quando Santo Agostinho afirma que o Antigo Testamento deve ser mediado pela mensagem cristã, ou quando o protestantismo primitivo se via colocado diante do mesmo problema, ou finalmente na época do Iluminismo, onde, na vontade de alcançar a “compreensão plena” de um texto somente pelas vias da interpretação histórica, tinha-se quase que renunciar ao acordo. Trata-se, pois, de algo qualitativamente novo, quando o romantismo e Schleiermacher, criando uma consciência histórica com alcance universal, já não dão mais valor à figura vinculante da tradição, da qual procedem e na qual estão postados, como uma base sólida para todo esforço hermenêutico. Um dos precursores imediatos de Schleiermacher, o filólogo Friedrich Ast, compreendeu o conteúdo fundamental da tarefa hermenêutica, ao reivindicar para ela o restabelecimento do acordo entre Antiguidade e Cristianismo, entre uma verdadeira antiguidade, vista de modo novo, e a tradição cristã. Frente ao Iluminismo, isso é algo totalmente novo, à medida que agora já não se trata mais de uma mediação entre a autoridade da tradição, por um lado, e a razão natural, por outro, mas da mediação de dois elementos da tradição, ambos vindos à consciência pelo Iluminismo, que impõe a tarefa de sua reconciliação. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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