Gadamer (VM): processo hermenêutico

Porém, a fusão interna da compreensão e da interpretação trouxe como consequência a completa desconexão do terceiro momento da problemática da hermenêutica, o da aplicação, do contexto da hermenêutica. Aplicação edificante que se dispensava, por exemplo, à Sagrada Escritura no apostolado e sermões cristãos, parecia ser algo completamente distinto da compreensão histórica e teológica da mesma. Nisso, nossas considerações nos forçam a admitir que, na compreensão, sempre ocorre algo como uma aplicação do texto a ser compreendido, à situação atual do intérprete. Nesse sentido nos vemos obrigados a dar um passo mais além da hermenêutica romântica, considerando como um processo unitário não somente a compreensão e interpretação, mas também a aplicação. Não significa isso voltar à distinção tradicional das três subtilitatae de que falava o pietismo, pois pensamos, pelo contrário, que a aplicação é um momento do processo hermenêutico, tão essencial e integrante como a compreensão e a interpretação. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Onde há acordo não se traduz, pois aí se fala. Entender uma língua estrangeira quer dizer justamente não ter de traduzi-la para a nossa própria língua. Quando alguém domina de verdade uma língua, não somente já não necessita de traduções, mas inclusive qualquer tradução lhe parece impossível. Compreender uma língua não é, por si mesmo, nenhum compreender real, e não encerra nenhum processo interpretativo, mas é uma realização vital. Pois, compreende-se uma língua quando se vive nela — uma frase que vale tanto para as línguas vivas como para as mortas. O problema hermenêutico não é, pois, um problema de correto domínio da língua, mas o correto acordo sobre um assunto, que ocorre no médium da linguagem. Podemos aprender qualquer língua, de maneira que seu uso pleno implique já não termos de traduzir a partir da nossa própria língua ou à nossa própria língua, mas que se possa pensar na língua estrangeira. Para que possa haver acordo numa conversação, este gênero de domínio da língua é, na realidade, uma condição prévia. Toda conversação implica. Para que possa haver acordo numa conversação, este gênero de domínio da língua é, na realidade, uma condição prévia. Toda conversação implica o pressuposto evidente de que seus membros falem a mesma língua. Só quando é possível pôr-se de acordo linguisticamente, pelo fato de uns falarem com os outros, é que se pode converter em problema a compreensão e o possível acordo. A dependência da tradução de um intérprete é um caso extremo que duplica o processo hermenêutico, (389) a conversação: É a conversação do intérprete com a parte contrária, e a própria conversação com o intérprete. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Na análise do processo hermenêutico, havíamos concluído que a obtenção do horizonte da interpretação é, na realidade, uma fusão horizôntica. Isto se vê confirmado também a partir da linguisticidade da interpretação. Através da interpretação o texto tem de vir à fala. Todavia, nenhum texto, como também nenhum livro fala, se não falar a linguagem que alcance o outro. Assim, a interpretação tem de encontrar a linguagem correta, se é que quer fazer que o texto realmente fale. Por isso, não pode haver uma interpretação correta “em si”, porque em cada caso se trata do próprio texto. A vida histórica da tradição consiste na sua dependência a apropriações e interpretações sempre novas. Uma interpretação correta em si seria um ideal sem pensamentos incapaz de conhecer a essência da tradição. Toda interpretação está obrigada a entrar nos eixos da situação hermenêutica a que pertence. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

A vinculação a uma situação não significa, de modo algum, que a pretensão de correção, que é inerente a qualquer interpretação, se dissolva no subjetivo ou ocasional. Não vamos voltar a cair no conhecimento romântico que purificou o problema da hermenêutica de todos os seus motivos ocasionais. A interpretação não é tampouco, para nós, um comportamento pedagógico, mas a realização da própria compreensão, que não se cumpre primeiramente só para aqueles em cujo benefício se interpreta, mas também para o próprio intérprete e somente no caráter expresso da interpretação linguística. Graças à sua linguisticidade, toda interpretação contém também uma possível referência a outros. Não existe falar que não envolva simultaneamente o que fala e o seu interlocutor. E isso vale também para o processo hermenêutico. Entretanto, essa referência não determina a realização interpretativa da compreensão ao modo de uma adaptação consciente a uma situação pedagógica, mas essa realização nada mais é que a concreção do próprio sentido. Cabe recordar a maneira pela qual devolvemos todo o valor ao momento da aplicação, que havia sido desterrado por completo da hermenêutica. É o que já vimos: Compreender um texto significa sempre aplicá-lo a nós próprios, e saber que, embora se tenha de compreendê-lo em cada caso de uma maneira diferente, continua sendo o mesmo texto que, a cada vez, se nos apresenta de modo diferente. O fato de que, com isso, não se relativiza em nada a pretensão de verdade de qualquer interpretação, torna-se claro pelo fato de que a toda interpretação é essencialmente inerente sua (402) linguisticidade.j O caráter linguístico da expressão, que a compreensão ganha na interpretação, não gera um segundo sentido além do que foi compreendido e interpretado. Na compreensão, os conceitos interpretativos não se tornam temáticos como tais. Pelo contrário, determinam-se pelo fato de que desaparecem atrás do que eles fazem falar na interpretação. Paradoxalmente, uma interpretação é correta quando é suscetível desse desaparecimento. E, no entanto, também é certo que ela tem de vir à representação na sua qualidade de ser destinada a desaparecer. A possibilidade de compreender depende da possibilidade dessa interpretação mediadora. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Para caracterizar a estrutura do processo hermenêutico lancei mão expressamente da análise aristotélica da phronesis. Com isso, estava avançando num caminho traçado por Heidegger já em seus primeiros anos de Freiburg, ao posicionar-se contra o neokantianismo e a filosofia dos valores (e em última instância também contra o próprio Husserl) e em favor de uma hermenêutica da facticidade. De certo, a base ontológica de Aristóteles tornou-se suspeita para ele já em seus primeiros ensaios. Essa base servira de suporte para o edifício de toda a filosofia moderna, especialmente para o conceito de subjetividade e de consciência e para as aporias do historicismo. Foi o que depois, em Ser e tempo, chamou-se de “ontologia do ser simplesmente dado” (“Ontologie des Vorhandenen “). Mas na filosofia de Aristóteles havia um ponto que na época representava para Heidegger muito mais que um mero contraste. Representava antes um aliado para suas próprias intenções filosóficas, a saber, a crítica aristotélica ao “eidos universal” de Platão e positivamente a demonstração da estrutura analógica do bem e de seu conhecimento, tarefa que se apresenta na situação da ação. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Aqui encontra-se um problema hermenêutico verdadeiramente árduo. A poesia comporta um tipo especial de comunicação. Com quem se dá essa comunicação? Com o leitor? Com qual leitor? A dialética de pergunta, que sustenta o processo hermenêutico e que surge do esquema básico do diálogo, sofre aqui uma modificação específica. A recepção e interpretação da poesia parece implicar uma relação dialogai sui generis. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

Designed with WordPress