Ainda menos consistente é, sem dúvida, a imagem oposta que esta investigação faz das ciências da natureza. Tenho claro para mim que, aqui, se deixou para trás um amplo campo de problemas hermenêuticos, que ultrapassa meu próprio alcance no processo de investigação científica. Somente nas ciências histórico-filológicas cheguei a participar esporadicamente e com alguma competência do trabalho de investigação das mesmas. Onde não posso estudar trabalhos originais, sinto não ter o direito de querer conscientizar o investigador do que ele faz ou do que acontece com ele. A essência da reflexão hermenêutica consiste justamente em que ela deve surgir da práxis hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Dessa forma, estou perfeitamente consciente do condicionamento temporal dos pontos de partida de minha formação de pensamento. E tarefa dos mais jovens dar conta das novas condições da práxis hermenêutica, o que já está ocorrendo em vários pontos. Querer ainda aprender isso parece-me uma tarefa desmedida para um octogenário. Por isso, não mexi no texto de Verdade e método e todas as contribuições posteriores, restringindo-me a fazer esporadicamente algumas pequenas melhorias. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Outra coisa é, porém, a questão da consistência interna da obra, do que se fez dentro de seus limites. Nesse sentido, quero que este volume, o segundo de minhas obras completas, entre como complemento. O seu conteúdo divide-se em três seções: Preliminares, que podem ser úteis à sua própria conceptibilidade prévia; Complementos, que se impuseram no decorrer dos anos (essas duas partes já foram publicadas, no essencial, em meus Kleine Schrifterí). A parte mais importante desse volume II contém Outros desenvolvimentos; em parte, já previstos, mas em parte provocados pelas discussões críticas de minhas ideias. A teoria da Literatura, especificamente, constava desde o princípio de meus planos como um desenvolvimento de meus pensamentos, e que aparece mais detalhadamente agora (nos volumes VIII e IX dos Gesamelte Schriften) numa sintonia mais estreita com a práxis hermenêutica. As questões fundamentais de caráter hermenêutico receberam novas luzes tanto nas discussões com Habermas quanto nos reiterados encontros com Derrida, que se enquadram perfeitamente no contexto deste volume. Por fim, acrescentaram-se no anexo os excursos, os complementos, prefácios e posfácios acrescidos às edições posteriores de Verdade e método. Minha auto-apresentação, escrita em 1973, conclui este volume. Os índices remissivos comuns aos volumes I e II acentuam a pertença mútua dos dois volumes. Com este volume espero ter a oportunidade de melhorar as (5) deficiências de meu livro e de ajudar aos mais jovens na continuidade do trabalho. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
A hermenêutica pietista fez frente a seu efeito negativo-iluminista conjugando estreitamente, desde A.H. Francke, a aplicação edificante com a interpretação de textos. Aqui desemboca a tradição da antiga retórica e de sua doutrina do papel dos afetos, sobretudo para a doutrina da pregação (sermo), que assumiu um papel decisivo e novo no culto protestante. A influente hermenêutica de J.J. Rambach colocou expressamente a subtilitas applicandi ao lado da subtilitas intelligendi e explicandi, o que corresponde certamente ao sentido da pregação. A expressão subtilitas (sutileza), tirada da reflexão humanista acerca da competição, sugere de forma elegante que a “metodologia” da interpretação — como toda aplicação de regras em geral — exige capacidade de julgamento, o que por sua vez não pode ser garantido por regras. Isso representaria uma constante restrição para a aplicação da teoria à praxis hermenêutica. Além disso, como disciplina teológica auxiliar, a hermenêutica busca, mesmo no final do século XVIII, estabelecer um constante equilíbrio com os interesses dogmáticos (p. ex., em Ernesti e Semler). VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
K.O. Apel, em todo caso, faz essa crítica porque não compreendeu direito o que tem em mente a hermenêutica filosófica quando fala de aplicação. A análise que faço da experiência hermenêutica tem como objeto a praxis exitosa das ciências hermenêuticas, na qual certamente não está atuando nenhuma “aplicação consciente” que pudesse favorecer uma corrupção ideológica do conhecimento. Essa análise deveria ser levada realmente a sério. Esse mal-entendido já fora objeto de preocupação de Betti. Aqui está em jogo sem dúvida uma obscuridade no conceito de consciência de aplicação. É absolutamente verdadeiro, como constata Apel, que frente à auto-evidência objetivista das ciências compreensivas e face à práxis vital da compreensão, a consciência de aplicação (261) apresenta-se como uma exigência hermenêutica. Assim, uma hermenêutica filosófica, no estilo que procurei desenvolver, torna-se “normativa”, no sentido de que busca substituir uma má filosofia por outra melhor. Mas não propaga uma nova práxis e não há indícios que afirmem que a práxis hermenêutica se guie concretamente por uma consciência e tendência de aplicação, e isso inclusive no sentido de uma legitimação consciente de uma tradição vigente. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
O melhor a fazer é examinar isso num exemplo concreto. Vejamos, por exemplo, para ficar dentro do âmbito de minha competência, a história da interpretação dos pensadores pré-socráticos no século XX. Ali, cada interpretação coloca em jogo determinados preconceitos: Joël, usa o preconceito da ciência da religião; Karl Reinhardt, o do iluminismo lógico; Werner Jaeger, um monoteísmo religioso inexplícito (como W. Bröcker mostrou de maneira brilhante (262)), e eu mesmo, quando inspirado na exposição da questão do ser de Heidegger, procuro compreender “o divino” à luz da filosofia clássica e do pensamento filosófico. Em todos esses casos pode-se perceber a atuação de um preconceito orientador, que se torna produtivo exatamente por corrigir preconceitos vigentes até o presente. Aqui não se aplicam aos textos concepções preconcebidas, mas procura-se compreender o que se encontra ali. Procura-se compreender melhor, uma vez que se percebe o preconceito do outro. Mas essa percepção só é possível porque se olha o que se encontra ali com novos olhos. A reflexão hermenêutica não é dissociável da práxis hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
Retornemos ao que se pode discutir, que são as bases teóricas do que representa a praxis hermenêutica. Concordo com meus críticos sobre um ponto e agradeço-lhes o fato de ter que destacá-lo: Creio que, assim como a crítica da ideologia passa da “teoria da arte” compreensiva para a auto-reflexão, também a reflexão hermenêutica representa um momento integral da própria compreensão, a ponto de a separação entre reflexão e praxis incluir um erro dogmático que atinge também o conceito da “reflexão emancipatória”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
Com o discurso sobre emancipação, a coisa não é diferente. O conceito de reflexão usado nesse contexto não me parece livre de dogmatismos. Não expressa a conscientização própria da práxis, mas repousa, como formulou certa vez Habermas, num “consenso contrafáctico”. Isso implica a pretensão de saber antecipadamente — antes da confrontação prática — com que não se está de acordo. Mas o sentido da práxis hermenêutica não consiste em partir desse consenso contrafáctico, mas de possibilitá-lo e realizá-lo, o que (272) significa convencer por meio de uma crítica concreta. O caráter dogmático do conceito de reflexão, pressuposto por Habermas, aparece expressamente no seguinte exemplo: exige “desprender-se do grau de reflexão de uma racionalidade tecnologicamente limitada”, mediante uma crítica justificada à superstição dos especialistas da sociedade. Isso implica uma ideia de graus que me parece falsa. Mesmo face à “nova função da ciência” dentro da sociedade vale lembrar que a racionalidade da capacidade de fazer — o que Aristóteles chamou de tekhne — é diferente e não uma espécie de reflexão inferior daquela que se dá no consenso racional dos cidadãos. A reflexão hermenêutica, porém, dedica-se à sua elucidação. Na verdade, não pode ser obtida sem um constante jogo recíproco de argumentos críticos; mas argumentos que reflitam as convicções concretas dos interlocutores. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
O que distingue uma práxis hermenêutica e sua disciplina do aprendizado de uma mera técnica, seja ela técnica social ou método crítico, é que na hermenêutica a consciência do sujeito que compreende sempre é co-determidada por um fator da história dos efeitos. Mas isso implica também a tese inversa, a saber, o que é compreendido sempre desenvolve uma certa força convincente que influi na formação de novas convicções. Não nego que a abstração das opiniões pessoais represente um esforço justificado de compreensão. Quem quer compreender não precisa afirmar o que compreende. E no entanto penso que a experiência hermenêutica nos ensina que a força dessa abstração é sempre limitada. Aquilo que compreendemos fala também e sempre por si próprio. E exatamente aqui que reside a riqueza do universo hermenêutico. A medida que desenrola toda amplitude de seu jogo, obriga também o sujeito que compreende a colocar em jogo seus preconceitos. Todas essas são conquistas da reflexão emanadas da praxis e dela somente. Peço clemência por mim, um velho filólogo, por ter exemplificado tudo isso no “ser para o texto”. Na verdade, a experiência hermenêutica está totalmente entretecida na realidade geral da praxis humana, na qual a compreensão do escrito chega a ser essencial, mas sua inclusão é apenas secundária. Chega tão longe quanto a disposição para o diálogo dos seres racionais. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
O que diferencia a práxis hermenêutica e sua disciplina da aprendizagem de uma mera técnica, seja uma técnica sociológica ou um método crítico, é que naquela um fator da história dos efeitos contribui constantemente para determinar a consciência de quem compreende. Isso implica necessariamente seu reverso, a saber, aquilo que é compreendido desenvolve sempre uma certa força de persuasão, colaborando assim na formação de novas persuasões. Não nego o fato de que quem busca compreender deve distanciar-se das próprias opiniões sobre as coisas. Aquele que quer compreender não precisa afirmar aquilo que está compreendendo. No entanto, penso que a experiência hermenêutica nos ensina que esse esforço só se torna eficiente dentro de certos limites. Aquilo que se compreende fala sempre também por si próprio. Nisso reside toda a riqueza do universo hermenêutico, que está aberto a tudo que é compreensível. Na medida em que coloca em jogo toda amplidão de seu espaço de jogo, o objeto obriga aquele que compreende a pôr em jogo seus próprios preconceitos. Esses são os benefícios da reflexão adquiridos na praxis e somente nela. O universo da experiência do filólogo e seu “ser para o texto”, que coloquei em primeiro plano, não passa de um fragmento e um campo de ilustração metodológica para a experiência hermenêutica, imbricada no todo da práxis humana. É verdade que nessa experiência a compreensão do que está escrito reveste-se de uma importância especial. Mas trata-se apenas de um fenômeno tardio e por isso secundário. A experiência hermenêutica tem na verdade um alcance tão amplo quanto o da disposição ao diálogo dos seres racionais. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.
O que eu ensinava era sobretudo a praxis hermenêutica. Essa é antes de mais nada uma praxis, a arte de compreender e de tornar compreensível. É a alma de todo ensino que queira ensinar (494) filosofia. É preciso exercitar sobretudo o ouvido, a sensibilidade para as predeterminações presentes nos conceitos, as concepções prévias e as significações prévias. Por isso, dediquei uma boa parte de meu trabalho à história do conceito. Com a colaboração da “Deutsche Forschungsgemeinschaft”, organizei uma série de colóquios sobre história dos conceitos, com amplos relatórios, colóquios que promoveram depois muitas outras atividades similares. O rigor no uso dos conceitos requer um conhecimento de sua história para não sucumbir ao capricho da definição ou à ilusão de poder estabelecer uma linguagem filosófica vinculante. O conhecimento da história dos conceitos converte-se assim em um dever crítico. Busquei, no mais, secundar essas tarefas, fundando uma revista dedicada inteiramente à crítica, a Philosophische Rundschau, juntamente com Helmut Kuhn, cujo talento crítico eu havia admirado de imediato, antes de 1933, nos últimos anos dos antigos estudos sobre Kant. Essa revista permaneceu durante vinte anos sob a firme direção da Senhora Kate Gadamer-Lekebusch, até ser recentemente confiada a pessoas mais jovens. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.