Daí procede a muito marcante consciência que possui a filosofia dos nossos dias. Mas há uma outra pergunta, bem diferente: até que ponto a reivindicação da verdade de tais formas de conhecimento, situadas fora do âmbito da ciência, podem ser filosoficamente legitimadas? A atualidade do fenômeno hermenêutico repousa, ao meu ver, no fato de que apenas um aprofundamento no fenômeno da compreensão pode trazer uma tal legitimação. Não foi apenas em última instância que essa convicção veio a se fortalecer em mim, devido à importância que a história da filosofia possui no trabalho filosófico da atualidade. Diante da tradição histórica da filosofia, a compreensão se nos depara como uma experiência meditada, que nos deixa distinguir facilmente o que há de aparente no método histórico que paira sobre a pesquisa filosófica e a histórica. Faz parte da elementar experiência do filosofar, que os clássicos do pensamento filosófico, sempre que procuramos entendê-los, façam valer, de si mesmos, uma reivindicação de verdade que não pode ser rejeitada nem sobrepujada pela consciência contemporânea. A ingênua consciência da dignidade própria da atualidade até pode se rebelar contra o fato de que a consciência filosófica admite que seu próprio ponto de vista filosófico seja o de um Platão ou Aristóteles, de um Leibniz, Kant ou Hegel, em contraposição a de outros de menor categoria. Pode-se considerar uma fraqueza do filosofar atual, que se dedique à interpretação e à compilação de sua tradição clássica, confessando sua própria fraqueza. No entanto, há uma fraqueza bem maior do pensamento filosófico, quando alguém não se submete a uma tal prova e prefere fazer o papel de tolo por conta própria. E preciso que a gente admita que na compreensão dos textos desses grandes pensadores se reconhece a verdade, que não seria acessível por outros meios, ainda que isso contradiga o padrão de pesquisa e de progresso com que a ciência mensura a si própria. VERDADE E MÉTODO Introdução
Seria louvável sair ao encalço do que tenha sido alguma vez segregado, como desde os dias do humanismo a crítica à ciência da “escola” começou a ouvir e como é que essa crítica se transformava de acordo com as mudanças de seus rivais. Originariamente, os motivos eram os antigos, que eram então reavivados. O entusiasmo com que os humanistas proclamavam a língua grega e o caminho da eruditio significava mais do que uma paixão antiquada. A ressurreição das línguas clássicas trouxe de volta, ao mesmo tempo, uma nova avaliação da retórica. Possuía seu “front” contra a “escola”, ou seja, contra a piência escolástica, e estava a serviço de um ideal de sabedoria humana, que não tinha sido alcançado na “escola” — uma contradição que, na verdade, já se encontra no início da filosofia. A crítica de Platão à sofística, mais ainda, sua atitude singular e ambivalente com relação a Isócrates, assinala o problema filosófico que aqui existe. Em face da nova consciência de método das ciências da natureza do século XVII, esse velho problema teria ainda maior agudeza crítica. Em vista da reivindicação de exclusividade dessa nova ciência, a questão se apresentou com uma urgência reforçada, querendo-se saber se no conceito de formação humanístico não havia uma fonte própria de verdade. De fato, veremos que é da sobrevivência do pensamento da formação humanística que as ciências filosóficas do século XIX extraem sua vida peculiar, sem confessá-lo a si mesmas. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Assim, como se sabe, esse ideal foi proclamado na antigüidade tanto pelos professores de filosofia como pelos de retórica. A retórica encontrava-se há muito tempo em luta com a filosofia e era sua a reivindicação de transmitir, ao contrário das ociosas especulações dos “sofistas”, a verdadeira sabedoria de vida. Vico, que era ele mesmo professor de retórica, encontra-se, aqui, portanto, em meio a uma tradição humanística procedente da antigüidade. Certamente essa tradição também é de impôftância para o que há de evidente nas ciências do espírito e, especialmente, a positiva ambigüidade do ideal retórico, que não somente surge sob o veredicto de Platão, mas também, da mesma forma, sob o veredicto do metodologismo anti-retórico da modernidade. Desse ponto de vista, muita coisa do que nos irá ocupar já ressoa em Vico. Seu apelo ao sensus communis abrange, porém, além do momento retórico, ainda um outro momento da antiga tradição. É o antagonismo entre o acadêmico e o sábio, sobre o qual ele se apoia; um antagonismo que encontrou a sua primeira configuração na imagem cínica de Sócrates que possui seu fundamento objetivo no antagonismo conceitual entre sophia e de phronesis, que foi elaborado pela primeira vez por Aristóteles, que nos Peripatéticos foi desenvolvido como uma crítica do ideal teórico de vida e que co-determinou, na época helenística, a imagem do sábio, principalmente depois que o ideal de formação grega se tinha fundido com a autoconsciência da liderança política romana. Também a ciência jurídica romana, no seu período tardio, p. ex., instala-se, como se sabe, apoiada no pano de fundo da arte jurídica e da prática jurídica, que se envolve mais com o ideal prático da phronesis do que com o ideal teórico da sophia. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Essas disposições de Vico mostram-se apologéticas. Reconhecem indiretamente o novo conceito de verdade da ciência, tão-somente ao defender o direito do provável. Como já vimos, Vico está acompanhando com isso a antiga tradição retórica, que recua já a Platão. O que Vico quer dizer vai, porém, além da defesa da peitho retórica. De acordo com a questão em pauta, e como já o dissemos, aqui atua o antigo antagonismo aristotélico do saber prático e do teórico, um antagonismo que não se deixa reduzir ao antagonismo do que é verdadeiro e do que é provável. O saber prático, a phronesis, é uma outra forma de saber. De início, significa o seguinte: encontra-se dirigida à situação concreta. Terá pois de abranger as circunstâncias em sua infinita variedade. É isso também que Vico salienta expressamente. Sem dúvida, o que unicamente lhe chama a atenção é que esse saber se subtrai ao conceito racional do saber. No entanto, e na verdade, não se trata de um mero ideal de resignação. O antagonismo aristotélico significa ainda algo bem diferente do que apenas o antagonismo entre o saber baseado em princípios universais e o saber do concreto. Também não significa a capacidade de subsunção do particular pelo universal, que denominamos “força do juízo”. O que atua aí é, muito mais, um motivo ético, positivo, que também existe na doutrina romano-estóica do sensus communis. A compreensão e o domínio moral da situação concreta exige uma tal subsunção do dado sob o universal, ou seja, o fim que se persegue para que daí resulte o correto. Pressupõe, portanto, um direcionamento da vontade, isto é, um ser moral (hexis). Daí que, segundo Aristóteles, a phronesis é uma “virtude espiritual”. Não vê nela simplesmente uma capacidade (dynamis), mas uma determinação do ser moral, que não pode existir sem o conjunto das “virtudes éticas”, como, ao contrário, estas não podem existir sem aquela. Embora essa virtude, ao ser exercitada, faça que se diferencie o factível do infactível, ela não é simplesmente uma inteligência prática e uma engenhosidade universal. O seu diferenciar entre o factível e o infactível abrange também a diferenciação entre o conveniente e o inconveniente e, assim, pressupõe uma atitude moral, que, por sua vez, aperfeiçoa-o. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
É esse motivo que Aristóteles desenvolveu contra a “idéia do bem” de Platão, à qual alude, nessa questão, o apelo de Vico ao sensus communis. Na escolástica, p. ex., para St. Tomás — em desenvolvendo o De anima — o sensus communis é a raiz comum do sentido exterior, ou ainda, a faculdade que combina, a qual julga o dado, uma capacidade que foi concedida a todos os homens. Para Vico, não obstante, o sensus communis é um sentido para a justiça e o bem comum, que vive. em todos os homens, e até, mais do que isso, um sentido que é adquirido através da vida em comum, e determinado pelas ordenações e fins. Esse conceito tem um tom de justiça natural como as koinai ennoiai da Stoa. Mas o sensus communis não é, nesse sentido, um conceito grego e não tem, de forma alguma, o significado de koine dynamis, de que fala Aristóteles no De anima, quando procura ajustar a doutrina dos sentidos específicos (aisthesis idia) com o achado fenomenológico, que mostra toda percepção como uma diferenciação e uma opinião de um universal. Vico recorre, antes, ao antigo conceito romano do sensus communis, como o conhecem em especial os clássicos romanos, que, em contraposição à formação grega, ancoram-se no valor e no sentido de suas próprias tradições da vida civil e social. E pois um tom crítico, um tom contra a especulação teórica dos filósofos que já se pode ouvir no conceito romano de sensus communis e que Vico faz soar, a partir de seu front de batalha, que ele agora modifica e direciona contra a ciência moderna (a crítica). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O que não é mais, é, sobretudo, o mundo, no qual, como sendo o nosso próprio mundo, vivemos. Transformação em configuração não é simplesmente transferência para um outro mundo. Certamente que é um outro mundo, fechado em si, no qual o jogo joga. Mas, na medida em que é configuração, encontrou em si mesmo, concomitantemente, sua medida e a nada se mensura que esteja fora de si mesmo. É assim que a ação de um espetáculo — e nisso ainda se assemelha totalmente à ação cúltica — simplesmente está aí como algo que repousa em si mesmo. Não admite mais nenhuma comparação com a realidade como sendo o padrão secreto de toda semelhança figurativa. É içada acima de toda comparação desse gênero — e com isso acima da questão de saber se tudo isso é real — , porque a partir dela fala uma verdade superior. Mesmo Platão, o mais radical crítico da categoria do ser da arte que a filosofia da história conhece, fala esporadicamente, sem diferenciar entre a comédia e a tragédia da vida, como a do palco. Isso porque essa diferença se anula quando alguém sabe perceber o sentido do jogo (espetáculo) que se desenrola diante dele. A alegria ante o espetáculo que se oferece é, em ambos os casos, igual: é alegria do conhecimento. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Encontramo-nos aqui diante do motivo central do platonismo. Juntamente com sua doutrina da “anamnesis”, Platão concebeu a idéia mítica da reminiscência com o caminho de sua dialética, que procura no logoi, isto é, na idealidade da linguagem a verdade do ser. Na realidade, um tal idealismo da essência é colocado no fenômeno do reconhecimento. O conhecido alcança o seu ser verdadeiro e mostra-se como o que ele é, apenas através do reconhecimento. Enquanto reconhecido, é aquilo que se mantém firme na sua essência, liberto da casualidade de seus aspectos. Isso vale totalmente para a espécie de reconhecimento que ocorre no jogo (espetáculo), face à representação. Uma tal representação deixa atrás de si tudo que seja casual e secundário, p. ex., o ser peculiar e especial do ator. Com relação ao conhecimento daquilo que ele representa, ele desaparece inteiramente. Mas também aquilo que é representado, o conhecido processo da tradição mitológica, será elevado concomitantemente, através da representação, à sua verdade válida. Tendo em vista o conhecimento do verdadeiro, o ser da representação é mais do que o ser da matéria representada, o Aquiles de Homero, mais do que seu modelo originário. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Até se pode dizer mais do que isso: A representação da essência é tampouco uma mera imitação, que é necessariamente demonstrativa. Quem imita tem de deixar algo fora ou realçar algo. Porque ele mostra, queira ou não, terá de exagerar. Tendo isso em vista, existe uma distância de ser intransponível entre o ente que “é assim como” e aquele ao qual ele quer se igualar. Sabe-se que Platão insistiu nesse distanciamento ontológico, no mais ou no menos de desvantagem da cópia em relação ao modelo originário, e a partir daí, relegou à terceira categoria a imitação e a representação no jogo da arte, tidas como uma imitação da imitação. Não obstante, é o reconhecimento que está em obra na representação da arte, o qual possui o caráter de um genuíno conhecimento da essência e é justamente através do fato de que Platão entende todo conhecimento da essência como reconhecimento, que isso está objetivamente fundamentado: Aristóteles pôde denominar a poesia como mais filosófica do que a história. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
É também evidentemente falso limitar a “liberdade” do bel-prazer reprodutivo a exterioridades e a fenômenos marginais e, antes, não conceber o todo de uma reprodução, ao mesmo tempo, como obrigatório e livre. A interpretação, num certo sentido, é um fazer segundo um anterior (Nachschaffen), mas esse, não segue um ato criativo precedente, mas sim a figura de uma obra criada, que alguém, na medida em que aí encontre sentido, deve trazer à representação. Representações historizantes, p. ex., a música tocada em antigos instrumentos, não são, por isso, tão fiéis como imaginam. Antes, estão correndo o risco de, sendo imitação, encontrar-se “triplamente afastadas da verdade” (Platão). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Nosso ponto de partida foi que o verdadeiro ser do espectador, que faz parte do jogo da arte, do ângulo da subjetividade, não pode ser adequadamente compreendido como uma forma de comportamento da consciência estética. Mas isso não deve significar que também não se possa descrever a natureza do espectador a partir daquele tomar-parte (Dabeisein), a que demos relevo. Tomar-parte, como um desempenho subjetivo do comportamento humano, tem o caráter do estar-fora-de-si. No seu Fedro Platão já assinalou a incompreensão com que se costuma ignorar, com base na sensatez racional, a estética do estar-fora-de-si (Aussersichsein), quando nisso se vê uma mera negação do estar-em-si (Beisichsein), portanto, uma espécie de loucura. Na verdade, o estar-fora-de-si é a possibilidade positiva de se tomar parte inteiramente em alguma coisa. Um tal tomar-parte tem o caráter de um auto-esquecimento. Perfaz a natureza do espectador, o fato de estar entregue a uma visão, totalmente esquecido de si. O auto-esquecimento é, aqui, tudo, menos um estado privativo, pois procede da dedicação à causa, o que o espectador realiza como sendo seu desempenho positivo e próprio. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
A própria formulação de Ranke ganha com isso um perfil histórico universal, um perfil dentro da história universal do pensamento e da filosofia. Nesse mesmo contexto, o próprio Platão já havia enfocado, pela primeira vez, a estrutura reflexiva [210] da dynamis, tornando possível a sua transposição à essência da alma, que Aristóteles empreendeu da teoria das dynameis, as potências da alma. A força é, segundo sua essência ontológica, “interioridade”. Nesse sentido é absolutamente correto que Ranke escreva: “A liberdade se associa à força”. Pois a força, que é mais que a sua exteriorização, já é sempre liberdade. Sabe que tudo poderia ter sido diferente, que cada indivíduo que atua teria podido também atuar de outra maneira. A força que faz história não é um momento mecânico. Para evitar isso, Ranke fala expressamente de “uma força original”, e da “fonte primeira e comum de todo fazer e deixar de fazer humano” — e isto é para Ranke a liberdade. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Outro caso de inversão do reflexo romântico reside no conceito do “desenvolvimento natural da sociedade”, que, segundo Landerdorf (217), foi introduzido por H. Leo. Em Karl Marx aparece como uma espécie de relíquia do direito natural, cuja validez é restrita por uma própria teoria social e econômica da luta de classes. Esse conceito não remonta à descrição de Rousseau da sociedade antes da divisão do trabalho e da introdução da propriedade? Seja como for, já Platão desmascara o Aufklärung dessa teoria do estado na sua descrição irônica de um estado natural, que oferece no terceiro livro da República . VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Aqui está o verdadeiro problema do saber ético de que se ocupa Aristóteles na sua ética. Pois o direcionamento do fazer pelo saber aparece sobretudo, e de maneira exemplar, aí onde os gregos falam de techne. Esta é a habilidade, é o saber do artesão que sabe produzir coisas determinadas. A questão é se saber se o saber moral é também um saber desse tipo. Isto significaria que seria um saber sobre como cada um deve produzir a si mesmo. Deve o homem aprender a tornar-se para si próprio o que deve ser, tal como o artesão aprende a fazer o que, segundo seu plano e vontade, deve ser? Projeta-se o homem a si mesmo sobre o seu próprio eidos, tal como o artesão traz em si o eidos do que quer fabricar e sabe reproduzi-lo no material? Sabe-se que Sócrates e Platão aplicaram de fato o conceito da techne ao conceito do ser humano, e não se pode negar que com isso descobriram algo de verdadeiro. O modelo da techne, pelo menos no âmbito político, tem uma função iminentemente crítica, na medida em que revela a insustentabilidade do que se costuma chamar a arte da política, na qual toda pessoa que faz política, todo cidadão, já se considera experiente. E significativo que o saber do artesão seja o único que Sócrates, na famosa descrição da experiência que faz ante seus concidadãos, reconhece que é um saber real, em seu âmbito. Mas, naturalmente, também os artesãos o decepcionam. O seu saber não é o verdadeiro saber que constitui o homem e o cidadão como tais. Entretanto, é saber real. É uma arte e habilidade real, não somente uma grande acumulação de experiência. E isso coincide evidentemente com o verdadeiro saber ético que Sócrates procura. Ambos são um saber prévio e pretendem determinar e guiar um agir. Têm que conter em si mesmos a aplicação do saber a cada tarefa concreta. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Essas considerações permitem compreender até que ponto é sutil a posição de Aristóteles frente ao problema do direito natural, da mesma forma que não se pode identificá-la com a tradição juro-naturalista dos tempos posteriores. Iremos nos contentar aqui com um pequeno esboço que permita pôr em primeiro plano a relação que existe entre a idéia do direito natural e o problema hermenêutico. Que Aristóteles não se limita a rechaçar a questão do direito natural é o que se pode concluir do que acabamos de ver. No direito positivo ele não reconhece o direito verdadeiro absoluto, mas ao menos na chamada ponderação da eqüidade, vê uma tarefa complementar do direito. Volta-se assim contra o convencionalismo extremado ou o positivismo jurídico, e distingue claramente entre direito natural e direito positivo. Mas a diferença que ele leva em conta não é simplesmente a da inalterabilidade do direito natural e da alterabilidade do direito positivo. É verdade que, em geral, temos entendido Aristóteles nesse sentido, mas com isso se passa por alto a verdadeira profundidade de sua concepção. Aristóteles conhece efetivamente a idéia de um direito inalterável, mas a limita expressamente aos deuses e declara que entre os homens não só é alterável o direito positivo mas também o natural. Essa alterabilidade é, segundo Aristóteles, perfeitamente compatível com o caráter “natural” desse direito. O sentido dessa afirmação me parece ser o seguinte: existem efetivamente leis jurídicas que são, inteiramente, coisa da conveniência (por exemplo, as normas de trânsito, como a de conduzir pela direita); mas existem também aquelas que não permitem uma convenção humana qualquer, porque a “natureza das coisas” tende a se impor constantemente. A essa classe de leis pode-se chamar justificadamente de “direito natural”. Na medida em que a natureza das coisas deixa uma certa margem de mobilidade para a afirmação, esse direito natural pode mudar. Os exemplos que Aristóteles apresenta, tirados de outros âmbitos, são muito elucidativos. A mão direita é, por natureza [325], a mais forte, mas nada impede que se treine a esquerda até igualá-la em força com a direita (Aristóteles apresenta evidentemente esse exemplo porque era uma das idéias preferidas de Platão). Ainda mais esclarecedor é um segundo exemplo, tomado da esfera jurídica: usa-se sempre uma e a mesma medida, mais abundante quando se compra vinho do que quando se vende. Aristóteles não quer dizer com isso que no comércio do vinho se procura normalmente enganar a outra parte, mas que essa conduta corresponde ao espaço de jogo do que é justo dentro dos limites impostos. E claramente opõe a isso que o melhor estado “é por toda parte um e o mesmo”, mas não é da mesma maneira “que o fogo arde igual em todas as partes, tanto na Grécia como na Pérsia”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Nesse sentido a legitimidade filosófica do formalismo desses argumentos da reflexão é somente aparente. Na realidade, neles não se reconhece nada. A pseudolegitimidade dessa maneira de argumentar nos é conhecida já desde a antiga sofística, cuja vacuidade Platão pôs a descoberto. Foi também Platão que viu com clareza que não existe nenhum critério argumentativamente suficiente para distinguir o uso verdadeiramente filosófico do discurso com relação ao sofista. Ele demonstra, sobretudo na sétima carta, que a refutabilidade formal de uma teoria não exclui necessariamente sua verdade. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
O modelo original da argumentação vazia é a pergunta sofística de como se pode perguntar algo que não se conhece. Essa objeção sofística formulada por Platão no Menon, não é superada, neste caso, por uma refutação argumentativamente superior, coisa digna de nota, mas é superada pelo apelo ao mito da preexistência da alma. É um apelo bastante irônico, pois o mito da preexistência e da anamnesis, destinado a resolver o enigma do perguntar e do buscar, não coloca em jogo, na realidade, uma certeza do conhecimento, e que se impõe face à vacuidade das argumentações formais. De outra parte, é uma caracterização clara da debilidade que Platão reconhece no logos o fato de que a crítica à argumentação sofística é fundamentada por ele, não lógica mas míticamente. Tal como a opinião verdadeira é um favor e um dom divino, a busca e o conhecimento do logos verdadeiro não é uma autopossessão do espírito. Mais tarde reconheceremos que a legitimação mítica que Platão dá, aqui, à dialética socrática possui um significado fundamental. Se o sofisma ficasse sem refutação — e argumentativamente não é refutável — esse argumento levaria à resignação. É o argumento da “razão preguiçosa” e possui um alcance verdadeiramente simbólico, na medida em que a reflexão vazia conduz, apesar de sua aparência triunfal, ao descrédito de qualquer reflexão. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A refutação mítica de Platão ao sofisma dialético, por mais evidente que pareça, não pode satisfazer, todavia, um pensamento moderno. Para Hegel já não há fundamentação mítica da filosofia. Para ele o mito pertence à pedagogia. Em última análise é a razão que se fundamenta a si mesma. E na medida em que Hegel elabora a dialética da reflexão como a automediação total da razão, eleva-se também ele acima do formalismo argumentativo que, de acordo com Platão, chamamos sofístico. Por isso, sua dialética contra a argumentação vazia do entendimento, que ele chama “a reflexão externa”, não é menos polêmica que a do Sócrates platônico. Por esse motivo, a confrontação com ele é tão importante para o problema hermenêutico. Pois a filosofia do espírito de Hegel pretende oferecer uma mediação total da história e do presente. Nela não se trata de um formalismo da reflexão, mas do mesmo tema a que devemos nos ater também nós. Hegel pensou até o final a dimensão histórica, na qual tem suas raízes o problema da hermenêutica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Salta à vista a escassa clareza que tem, aqui, a relação entre experimentar, reter e a unidade da experiência que produziriam ambas as coisas. Evidentemente Aristóteles se apoia aqui num raciocínio que em seu tempo já possuía uma certa [357] cunhagem clássica. O testemunho mais antigo que nos chegou dele é de Anaxágoras, de quem Plutarco nos transmitiu, que o que caracteriza o homem face aos animais se determinaria por empeiria, mneme, sophia e techne. Um nexo parecido surge quando Esquilo destaca, no Prometeu, o papel da mneme, e ainda que sintamos falta de uma ênfase correspondente no mito platônico de Protágoras, Platão mostra, tal como Aristóteles, que isso já é, naquele momento, uma teoria firmada. A permanência de percepções importantes (mone) é claramente o motivo vinculante, através do qual o saber do geral pode elevar-se acima da experiência do individual. Nisso, encontram-se próximos do homem todos os animais que possuem mneme nesse sentido, ou seja, que têm sentido para o passado e o tempo. Precisaria de uma investigação própria para descobrir até que ponto já poderia ser operante o nexo entre retenção (mneme) e linguagem, nessa teoria primitiva da experiência, cujas pegadas estamos rastreando. Pois é claro que a aprendizagem de nomes e da fala acompanha essa aquisição de conceitos gerais, e Temístio ilustra a análise aristotélica da indução diretamente com o exemplo do aprender a falar e da formação das palavras. Seja como for, o que importa é reter que a generalidade da experiência, de que fala Aristóteles, não é a generalidade do conceito nem da ciência. (O círculo de problemas a que nos remete essa teoria poderia ser a da idéia sofistica da formação, pois em todos os nossos testemunhos se detecta uma conexão entre a caracterização do homem, de que se trata, e a organização geral da natureza. E é precisamente esse motivo da confrontação do homem e do animal o que constitui o ponto de partida natural do ideal da formação sofística.) A experiência somente se dá de maneira atual nas observações individuais. Não se pode conhecê-la numa generalidade precedente. Nisso justamente se estriba a abertura básica da experiência para qualquer nova experiência — isso não somente no sentido geral da correção dos erros, mas ao fato de que a experiência está essencialmente dependente de constante confirmação, e, quando esta falta, ela se converte necessariamente em outra diferente (ubi reperitur instantia contradictoria). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Uma das mais importantes intuições que nos medeia a apresentação do Sócrates platônico é que, contrariamente à opinião dominante, perguntar é mais difícil do que responder. Quando os companheiros do diálogo socrático procuram “devolver a bola” a ele, para dissimular respostas às molestas perguntas de Sócrates, reivindicando de sua parte a posição supostamente vantajosa daquele que pergunta, é quando, então, fracassam mais estrepitosamente. Por trás desse motivo comediográfico dos diálogos platônicos não é difícil descobrir a distinção crítica entre discurso autêntico e inautêntico. Aquele [369] que no falar só procura ter razão e não procura a clarividência das coisas, considerará certamente que é mais fácil perguntar que dar resposta. Nisso não se corre o perigo de ficar a dever uma resposta a alguma pergunta. Na verdade, o fracasso do companheiro demonstra que ele pensa saber tudo; não pode perguntar. Para perguntar, temos que querer saber, isto é, saber que não se sabe. E no intercâmbio, ao modo de comédia, de perguntas e respostas, de saber e não saber, descrito por Platão, acaba-se reconhecendo que para todo conhecimento e discurso, em que se queira conhecer o conteúdo das coisas, a pergunta toma a dianteira. Uma conversação que queira chegar a explicar alguma coisa precisa romper essa coisa através de uma pergunta. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Conhecemos isto sobretudo da dialética medieval, que não somente levantava os prós e os contras, e a seguir, dava a própria decisão mas que acabava colocando o conjunto dos argumentos no seu lugar. Esta forma da dialética medieval não é uma simples conseqüência do sistema docente da disputatio, mas, ao inverso, repousa sobre a conexão interna de ciência e dialética, isto é, de resposta e pergunta. Há uma famosa passagem da Metafísica aristotélica, que suscitou muitas discussões e que se explica a partir desse nexo. Aristóteles diz, lá, que a dialética é a capacidade de investigar o contrário, inclusive independentemente do quê, e (de investigar) se para coisas contrárias pode existir uma e a mesma ciência. Nesse ponto parece que uma característica geral da dialética (que corresponde perfeitamente ao que encontramos no Parmênides de Platão), [371] está ligada com um problema “lógico” muito especial, que conhecemos através da Tópica. Parece ser realmente uma pergunta muito especial, saber se é possível uma mesma ciência para coisas opostas. Procurou-se, por isso, descartar esta questão como glosa. Na verdade, o nexo entre as duas perguntas torna-se claro, logo que constatarmos a primazia da pergunta sobre a resposta, que subjaz ao conceito do saber. Saber quer dizer sempre: entrar ao mesmo tempo no contrário. Nisso consiste sua superioridade frente ao deixar-se levar pela opinião, que sabe pensar possibilidades como possibilidades. O saber é fundamentalmente dialético. Somente pode possuir algum saber aquele que tem perguntas, mas as perguntas compreendem sempre a oposição do sim e do não, do assim e do diverso. Somente porque o saber é dialético nesse sentido abrangente, pode haver uma “dialética” que tome explicitamente como objeto a oposição do sim e do não. A pergunta aparentemente demasiado especial, pela possibilidade de uma mesma ciência para os opostos contém, portanto, objetivamente a base da possibilidade da dialética em geral. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Em suas inolvidáveis exposições, Platão mostra-nos em que consiste a dificuldade de sabermos o que não sabemos. É o poder da opinião, contra o qual é tão difícil chegar ao reconhecimento de que não se sabe. Opinião é o que reprime o perguntar. É-lhe inerente uma particular tendência expansionista. Ela gostaria de ser sempre opinião comum, e a palavra que entre os gregos designava a opinião, doxa, significa ao mesmo tempo a decisão alcançada pela maioria na reunião do conselho. Como é possível, então, chegar ao não saber e ao [372] perguntar? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Assim, podemos apelar a Platão, quando colocamos em primeiro plano a referência à pergunta também para o fenômeno hermenêutico. Podemos fazê-lo tanto mais, pelo fato de que no próprio Platão já se mostra o fenômeno hermenêutico de uma certa forma. Sua crítica à escrita deveria ser analisada, uma vez, também sob o ponto de vista de que nela aparece uma conversão da tradição poética e filosófica de Atenas em literatura. Nos diálogos de Platão vemos como a “interpretação” de textos, cultivada nos discursos sofísticos, especialmente a interpretação da poesia para fins didáticos, atrai sobre si a repulsa platônica. Vemos também como Platão tenta superar a debilidade dos logoi, e sobretudo a dos escritos, através de sua própria poesia dialogada. A forma literária do diálogo devolve linguagem e conceito ao movimento originário da conversação. Com isso a palavra se protege de qualquer abuso dogmático. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Apesar de Platão, estamos muito pouco preparados para ela. Quase o único que poderíamos vincular a isso seria R.G. [376] Collingwood. Numa engenhosa e acertada crítica à escola “realista” de Oxford, Collingwood desenvolve a idéia de uma “logic of question and answer”, mas lamentavelmente não chega a um desenvolvimento sistemático. Reconhece com agudeza o que falta à hermenêutica ingênua que subjaz à crítica filosófica habitual. Em particular o procedimento que Collingwood encontrou no sistema universitário inglês, a discussão de statements, talvez um bom exercício de engenho, que ignora evidentemente a historicidade contida em toda compreensão. Collingwood argumenta: na realidade somente se pode compreender um texto quando se compreendeu a pergunta para a qual ele é a resposta. Mas como esta pergunta somente se ganha a partir do próprio texto, e a adequação da resposta representa o pressuposto metódico para a reconstrução da pergunta, a crítica a esta resposta, que parte de uma posição qualquer, é puro passatempo. É como na compreensão das obras de arte. Também uma obra de arte só pode ser compreendida na medida em que se pressupõe sua adequação. Também aqui tem-se que ganhar primeiro a pergunta à qual responde, se é que a queremos compreender — como resposta. De fato, este é um axioma de toda hermenêutica, que já tratamos anteriormente como “antecipação da totalidade”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A vantagem metodológica do texto escrito é que nele o problema hermenêutico aparece em forma pura, e livre de todo o caráter psicológico. Mas naturalmente, o que aos nossos olhos e para a nossa intenção representa uma vantagem metodológica é ao mesmo tempo expressão de uma debilidade específica que caracteriza muito mais o escrito, do que a própria linguagem. A tarefa do compreender se coloca com particular claridade quando se reconhece a debilidade de todo o escrito. Basta para isso recordar de novo o exemplo de Platão, que via a debilidade própria do escrito no fato de que o discurso escrito jamais pode vir em ajuda daquele que sucumbe a mal-entendidos deliberados ou involuntários. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
É sabido que Platão considerava o desamparo da escrita como uma debilidade muito maior do que a que afeta os discursos (to asthenes to logon); não obstante, quando requer ajuda dialética para compensar essa debilidade dos discursos, na medida em que o caso da escrita lhe parece não ter saída, isso não é evidentemente senão um exagero irônico, através do qual procura ocultar sua própria obra literária e sua própria arte. Na realidade, com a escrita ocorre o mesmo que com a fala. Assim como naquela, correspondem-se mutuamente uma arte da aparência e uma arte do pensar verdadeiro, sofística e dialética, existe também, evidentemente, uma dupla arte de escrever, de maneira que uma serve a um pensamento e a outra a outro. Verdadeiramente existe também uma arte da escrita capaz de vir em ajuda do pensar, e a ela deve subordinar-se a arte da compreensão, que proporciona ao escrito idêntico auxílio. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
Pois bem, a filosofia grega se inicia precisamente com o conhecimento de que a palavra é somente nome, isto é, que não representa (vertreten) o verdadeiro ser. Esta é a erupção do perguntar filosófico dentro da pressuposição imediatamente indiscutida do nome. Fé na palavra e dúvidas a respeito da palavra são o que caracteriza a situação do problema sob o qual o pensamento da ilustração grega considerava a relação entre palavra e coisa. Através dela o modelo do nome se converte em antimodelo. O nome que se outorga e que pode ser mudado é o que motiva que se duvide da verdade da palavra. Pode-se falar da correctura dos nomes? Mas não se tem de falar da correctura das palavras, isto é, exigir a unidade de palavra e coisa? E não foi um dos pensadores mais profundos da Antigüidade, Heráclito, quem descobriu o sentido profundo do jogo de palavras? Este é o pano de fundo de que surge o Crátilo de Platão, o escrito básico do pensamento grego sobre a linguagem, que abrange a extensão dos problemas, de tal modo que a discussão grega posterior, que só nos é conhecida de maneira muito incompleta, quase não acrescenta nada de essencial. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
[410] No Crátilo de Platão, são postas em discussão duas teorias que procuram determinar, por caminhos diversos, a relação de palavras e coisas: a teoria convencionalista vê a única fonte dos significados das palavras na univocidade do uso lingüístico que se alcança por convenção e exercício. A teoria contrária defende uma coincidência natural de palavra e coisa, designada pelo conceito da correctura (orthotes). É evidente que se trata de duas posições extremas, e que portanto objetivamente não necessitam se excluir. Seja qual for o caso, o indivíduo que fala não conhece a questão pela “correctura” da palavra, que essa posição pressupõe. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.Mas também o limite da teoria da semelhança é claro: não se pode criticar a linguagem por referência às coisas, no sentido de que as palavras não as reproduziram corretamente. A linguagem não está aí como um simples instrumento de que lançamos mão, ou que construímos para nós, com o fim de comunicar e fazer distinções com ele. Ambas as interpretações das palavras partem de sua existência e de sua manualidade e deixam estar as coisas como o que é conhecido de antemão. Justamente por isso, elas já de antemão começam demasiado tarde. Teríamos de nos perguntar se Platão, ao mostrar a insustentabilidade interna dessas duas posições extremas, procura na realidade questionar um pressuposto que lhes seja comum. [411] Na minha opinião, a intenção de Platão é muito clara, e creio que nunca se poderá acentuar isto suficientemente, face à interminável usurpação de Crátilo a favor dos problemas sistemáticos da filosofia da linguagem: com essa discussão das teorias lingüísticas contemporâneas, Platão pretende mostrar que na linguagem, na pretensão da correctura lingüística (orthotes ton onomaton), não se pode alcançar nenhuma verdade pautada na coisa (aletheia ton onton), e o ente tem de ser conhecido sem as palavras (aneu ton onomaton), puramente a partir dele mesmo (auto ex eauton) (Crátilo, 438a-439b). Com isso se desloca radicalmente o problema para um novo nível. A dialética, a que aponta esse contexto, pretende evidentemente confiar o pensamento a si mesmo e a seus verdadeiros objetos (Gegenstände), abrindoas “idéias”, de maneira tal que, com isso, se supere o poder das palavras (dynamis ton onomaton) e sua tecnificação demoníaca na arte da argumentação sofística. A superação do âmbito das palavras (onomata), pela dialética não quer dizer, obviamente, que exista realmente um conhecimento isento de palavras, mas, unicamente, que o que abre o acesso à verdade não é a palavra, mas pelo contrário: que a “adequação” da palavra só se poderia julgar a partir do conhecimento das coisas. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Isso pode ser reconhecido, e, todavia, sempre iremos perder alguma coisa: é claro que Platão retrocede ante a verdadeira relação entre palavra e coisa. Nesse ponto considerava que a pergunta de como se pode conhecer o ente é na realidade demasiado ampla, e onde fala dela, onde portanto descreve a verdadeira essência da dialética, como ocorre no excurso da sétima carta, a lingüisticidade somente aparece como um momento externo de uma não univocidade cambaleante. Faz parte dos pretextos (proteinomena) que procuram se nos impor e que o verdadeiro dialético deve deixar para trás, tal como a aparência sensível das coisas. O puro pensar as idéias, a dianoia, é, em sua qualidade de diálogo da alma consigo mesma, mudo (aneu phones). O logos é a corrente que, partindo desse pensar, flui ressoando através da boca (reuma dia tou stomatos meta phthoggou): é claro que a sensorialização fônica não pode pretender para si nenhum significado de verdade próprio. Indubitavelmente, Platão não reflete sobre o fato de que a realização do pensamento, concebida como diálogo da alma, implica, por sua vez, uma vinculação, à linguagem. E se na sétima carta se expressa ainda algo disso, essa referência se dá, no entanto, no contexto da dialética do conhecimento, isto é, da orientação de todo o movimento do conhecer na direção do uno (auto). Ainda que aqui se reconheça fundamentalmente a vinculação lingüística, esta não aparece, todavia, no seu verdadeiro significado: só é um dos momentos do conhecimento, e todos eles se manifestam em sua provisoriedade dialética [412], a partir da própria coisa, para a qual se dirige o conhecimento. Tem de se concluir, pois, que o descobrimento das idéias por Platão oculta a essência da linguagem ainda mais do que o fizeram os teóricos sofísticos, que desenvolveram sua própria arte (techne) no uso e abuso da linguagem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Seja qual for o caso, onde Platão supera o nível de discussão do Crátilo, apontando para a sua própria dialética, tampouco encontramos outra relação com a linguagem do que a que já se discutiu a esse nível: ferramenta, cópia e produção, e julgamento da mesma a partir do modelo original, a partir das próprias coisas. Portanto, mesmo quando não reconhece ao âmbito das palavras (onomata) nenhuma função cognitiva autônoma, e precisamente quando exige a superação desse âmbito, retém o horizonte de questionamento em que se coloca a questão da “correctura” dos nomes. Inclusive quando não quer saber de uma correctura natural destes (como no contexto da sétima carta), continua mantendo, como padrão, uma relação de semelhança (omoion): cópia e modelo original continuam sendo para ele o modelo metafísico pelo qual ele pensa toda a relação com o noético. A arte do artesão tão bem quando a do demiurgo divino, a arte do orador tão bem quanto a do dialético filosófico copia no seu médium o verdadeiro ser das idéias. Sempre há uma distância (apexei). ainda que o verdadeiro dialético consiga por si mesmo superar essa distância. O elemento do verdadeiro discurso continua sendo a palavra (onoma e rema), a mesma palavra na qual a verdade se oculta até o irreconhecível e mesmo até sua completa anulação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Se a partir desse pano de fundo nos aproximamos agora da disputa “sobre a correctura dos nomes”, tal como se desenvolve no Crátilo, as teorias que entram em debate nele geram, de imediato, um interesse que vai muito mais além de Platão ou de sua própria intenção. Pois as duas teorias que o Sócrates platônico reduz ao fracasso não aparecem sopesadas com todo o peso de sua verdade. A teoria convencionalista reconduz a “correctura” das palavras a um dar nome, que é como batizar as coisas com um nome. Para essa teoria o nome não traz a menor intenção de conhecimento objetivo. Mas Sócrates chama a depor o defensor dessa sóbria perspectiva, na medida em que, partindo da diferença entre logos verdadeiro e logos falso, lhe faz admitir que também os componentes de logos, as palavras (onomata), são verdadeiros ou falsos, e que, portanto, também o nomear, como uma parte do falar, se refere à revelação do ser (ousia) que se produz no falar. Essa é uma [413] afirmação incompatível com a tese convencionalista que já não é difícil deduzir, a partir daqui e inversamente, uma “natureza” que servisse de padrão, tanto para os nomes verdadeiros como para o correto dar nome. O próprio Sócrates reconhecerá que essa compreensão da correção dos nomes conduz a uma embriaguez etimológica e às conseqüências mais absurdas. Não é menos peculiar o tratamento de que se faz objeto a tese contrária, a de que as palavras são por natureza (physei). Se esperássemos que essa contrateoria fosse refutada, por sua vez, pelo descobrimento da incoerência da conclusão sobre a verdade das palavras a partir da do discurso, da qual derivava essa posição (no “Sofista” aparece uma correção desse defeito), sentir-nos-íamos decepcionados. Ao contrário, todo o desenvolvimento se mantém dentro dos pressupostos de princípio da teoria “natural, isto é, no princípio da similitude, e somente o resolve através de uma restrição progressiva: se a “correctura” dos nomes deve repousar no fato de se encontrarem os nomes corretos e adequados às coisas, e estágios de correção, propriamente ali, como ocorre também como qualquer adaptação dessa natureza. E se só o um pouco correto consegue ainda reproduzir em si os contornos (tupos) da coisa, isso pode bastar para que seja utilizável. Tem que ser, todavia, um pouco mais generoso: uma palavra pode ser entendida por hábito ou convenção, ainda que contenha sons que não possuem a menor similitude com a coisa, com o que, todo o princípio da similitude começa a balançar e acaba se refutando com exemplos como o das palavras que designam números. Nessas, não pode ter lugar a menor similitude, porque os números não pertencem ao mundo sensível e móvel, de maneira que para eles só seria plausível o princípio da convenção. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
A renúncia à teoria da physei aparece revestida de um caráter surpreendentemente conciliador, pois se faz intervir o princípio da convenção, como complementar, onde o da similitude fracassa. Platão parece opinar que o princípio da similitude é razoável, ainda que em sua aplicação convém proceder de uma maneira muito liberal. A convenção, que aparece no uso lingüístico prático, e que é a única que determina a correctura das palavras, pode se servir, dentro do possível, do princípio de similitude, mas não está atada a ele. É uma posição muito moderada, mas que encerra a premissa básica de que as palavras não possuem um verdadeiro significado cognitivo. É um resultado que ultrapassa a esfera das palavras e da questão de sua correctura e que aponta para o conhecimento da coisa, que é, evidente, a única coisa que interessa a Platão. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Mas como ocorre sempre em Platão, também aqui a cegueira de Sócrates face ao que ele refuta tem sua razão de ser. O próprio Crátilo não vê com toda a clareza que o significado das palavras não é idêntico às coisas a que se refere, como tampouco, e esta é a base da tácita superioridade do Sócrates platônico, que o logos, o dizer e falar, assim como a abertura das coisas que têm lugar neles, é algo diferente do que se as palavras contivessem uma intenção de significado, e que é aqui onde se estriba a verdadeira possibilidade da linguagem de comunicar o concreto e verdadeiro. O uso incorreto da linguagem, pelos sofistas, procede justamente da ignorância desta genuína possibilidade de verdade da fala (e à qual pertence, como possibilidade contrária, a falsidade essencial, pseudos). Quando o logos é entendido como representação de uma coisa (deloma), ou seja, como a sua abertura, sem distinguir essencialmente essa função de verdade da fala, com respeito ao caráter significativo das palavras, abre-se uma possibilidade de confissão que é própria da linguagem. Pode-se chegar a crer que a coisa é possuída na palavra. Atendo-se à palavra, estaríamos pois no caminho legítimo do conhecimento. Só que então vale também o inverso, onde há conhecimento, a verdade da fala tem de ser construída com a verdade das palavras, como seus elementos. E assim como se pressupõe a “correctura” dessas palavras, ou seja, sua adequação natural às coisas nomeadas por elas, estará permitido também interpretar os elementos dessas palavras, as letras, na perspectiva de sua função de ser cópia das coisas. Essa é a conseqüência a que Sócrates obriga [416] o seu interlocutor a chegar. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Na realidade, esse ideal torna patente que a linguagem é algo diverso do que um mero sistema de signos para designar o conjunto do que é objetivo. A palavra não é somente signo. Em algum sentido difícil de precisar é também algo assim como uma cópia. Basta ponderar a possibilidade extrema e contraria, de uma linguagem puramente artificial, para reconhecer nessa teoria arcaica da linguagem, apesar de tudo, uma certa porção de razão. De um modo enigmático, a palavra mostra uma certa vinculação com o “copiado”, uma pertença ao ser do copiado. E isso deve ser pensado de uma maneira fundamental, não somente assim que na formação da linguagem a relação mimética tenha uma certa participação. Pois isso é indiscutível. Já Platão tinha pensado claramente nesse sentido mediador, e a investigação lingüística continua fazendo-o agora, quando atribui uma certa função à onomatopéia na história da palavra. [421] Nessa maneira de pensar, imaginamos a linguagem inteiramente à margem do ser pensado, como um instrumentarium da subjetividade. Isso quer dizer que se segue uma direção abstrativa, em cujo termo se encontra a construção racional de uma linguagem artificial. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Pois bem, também a filosofia do logos grego conhecia certamente este fato. Platão descreve o pensamento como uma conversação interior da alma consigo mesma, e a infinitude do esforço dialético que ele exige do filósofo é a expressão da discursividade da nossa compreensão finita. E, no fundo, por mais que Platão exigisse o “pensar puro”, ele mesmo não deixa de reconhecer constantemente que, para o pensamento da coisa, não se pode prescindir do meio da onoma e do logos. Mas se a doutrina da palavra interior não quer dizer outra coisa que a discursividade do pensar e do falar humano, como pode então a “palavra” ser uma analogia do processo das pessoas divinas, de que fala a doutrina da trindade? Não está em jogo nisso precisamente a oposição entre intuição e discursividade? Onde está o fator comum entre este e aquele “processo”? VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Ao inverso disso, na palavra humana mostra-se a relação dialética da multiplicidade das palavras com a unidade da palavra, sob um nova luz. Já Platão havia reconhecido que a palavra humana possui um caráter de discurso, isto é, expressa a unidade de um pensamento (Meinung) através da integração de uma multiplicidade de palavras, e tinha desenvolvido, em forma dialética, essa estrutura do logos. Mais tarde, Aristóteles demonstrou as estruturas lógicas que constituem a frase, e correpondentemente o juízo, ou o nexo de frases, ou correspondentemente a conclusão. Mas tampouco isso esgota a questão. A unidade da palavra, que se auto-expõe na multiplicidade das palavras, permite compreender também aquilo que não se esgota na estrutura essencial da lógica e que instaura o caráter de acontecer da linguagem: o processo da formação dos conceitos. Quando o pensamento escolástico desenvolve a doutrina do verbo, não se limita a pensar a formação do conceito como cópia de ordenação da essência. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Todas as diairesis conceituais de Platão, assim como as definições aristotélicas, confirmam que a formação natural dos conceitos, que acompanha a linguagem, não segue sempre a ordenação da essência, mas realiza muitas vezes a formação das palavras com base em acidentes e relações. Porém, a primazia da ordenação lógica essencial, determinada pelos conceitos de substância e acidente, faz aparecer a formação natural dos conceitos da linguagem somente como uma imperfeição do nosso espírito finito. Somente porque conhecemos acidentes, nos guiamos por eles na conceituação. E, no entanto, ainda que isso seja correto, dessa imperfeição segue-se uma vantagem peculiar — coisa que São Tomás parece ter detectado corretamente — , a liberdade para uma conceituação infinita e uma progressiva penetração no intencionado. Se se pensa o processo do pensamento como um processo de explicação em palavras, torna-se visível um desempenho lógico da linguagem que não poderia ser concebido por inteiro a partir da relação de uma ordem de coisas, tal como o teria presente um espírito infinito. O fato de que a linguagem submeta a conceituação natural à estrutura essencial da lógica, como ensina Aristóteles e, na sua esteira, também Tomás, somente possui pois uma verdade relativa. Em meio da penetração da teologia cristã pela idéia grega da lógica, germina de fato algo novo: o meio da linguagem, no qual chega à sua plena verdade o caráter de mediação, inerente ao acontecer da encarnação. A cristologia se converte em precursora de uma nova antropologia, que mediará, de uma maneira nova, o espírito humano, em sua finitude, para com a infinitude divina. Aqui encontrará seu verdadeiro fundamento o que antes havíamos chamado “experiência hermenêutica”. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
E evidente que o que se expressa nessas transposições é a particularidade de uma experiência, e que não são, portanto, o fruto de uma conceituação pela abstração. Mas é também evidente que desse modo se incorpora simultaneamente um conhecimento do comum. O pensamento pode assim retornar, para a sua própria instrução, para esse acervo que a linguagem nele depositou. Platão o faz expressamente com sua “fuga para os logoi”. Mas também a lógica classificatória toma pé nesse desempenho prévio de caráter lógico, que para ela já completou a linguagem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Uma olhadela à sua pré-história, em particular à teoria da formação dos conceitos na academia platônica, nos poderá confirmá-lo. Já tínhamos visto que a exigência platônica de elevar-se acima dos nomes pressupõe, por princípio, que o cosmos das idéias é independente da linguagem. Mas, na medida em que essa elevação sobre os nomes se produz segundo as idéias e se determina como dialética, isto é, como olhar juntos para a unidade do aspecto, como extrair um comum dos fenômenos mutáveis, segue de fato a direção natural na qual a linguagem se forma a si mesma. Elevar-se sobre os nomes quer dizer meramente que a verdade da coisa não está posta no próprio nome. Não significa que o pensamento pode prescindir de usar nome e logos. Ao contrário, Platão sempre reconheceu que há necessidade dessas mediações do pensamento, mesmo que elas tenham de ser consideradas como sempre superáveis. A idéia, o verdadeiro ser da coisa, não se conhece a não ser passando por essas mediações. Mas existe um conhecimento da própria idéia, como determinada e individual? A essência das coisas não é um todo, da mesma maneira que o é a linguagem? Assim como as palavras individuais somente alcançam seus significados e sua relativa univocidade na unidade da fala, assim também o conhecimento verdadeiro da essência só pode ser alcançado no todo da estrutura relacional das idéias. Essa é a tese do Parmênides platônico. Mas isso suscita a pergunta: Para definir mesmo que seja uma única idéia, isto é, para poder destacá-la, no que é, de todo o resto, não se tem de saber já o todo? VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Se se pensa como Platão que o cosmos das idéias é a verdadeira estrutura do ser, será difícil subtrair-nos a essa conseqüência. E, efetivamente, Speusipo, o sucessor de Platão na direção da academia, relata que Platão a extraiu de fato. Sabemos dele que cultivou muito particularmente a busca do comum (ouoia), e que isso ultrapassa em muito o que se entende por generalização no sentido da lógica da espécie, pois seu método de investigação era a analogia, isto é, a correspondência proporcional. A capacidade dialética de descobrir características comuns e perceber o múltiplo sob o aspecto do uno está aqui, todavia, muito próxima à livre universalidade da linguagem e aos princípios de sua formação de palavras. O comum da analogia, tal como o buscava por todas as partes Speusipo — correspondências do tipo: “O que para os pássaros são as asas, são para os peixes as nadadeiras” — serve para definir conceitos, porque essas correspondências representam ao mesmo tempo um dos mais importantes princípios formadores na formação lingüística das palavras. A transposição de um âmbito ao outro não somente possui uma função lógica, mas corresponde ao metaforismo fundamental da própria linguagem. A conhecida figura estilística da metáfora não é mais do que a aplicação retórica desse princípio geral de formação, que é ao mesmo tempo lingüístico e lógico. Assim, Aristóteles poderá dizer: “transpor bem é reconhecer o comum” . Sobremodo a Tópica aristotélica mostra uma ampla gama de confirmações para o caráter indissociável do nexo de conceito e linguagem. A definição, na qual se estabelece o gênero comum, deriva-se aqui, expressamente, da consideração do comum. Desse modo, no começo da lógica do gênero está o desempenho precedente da linguagem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Isso se testemunha também, se nos recordarmos da análise do epagogé. Já vimos que Aristóteles, aqui, deixa aberto, de maneira muito engenhosa, o problema de como chegam a se formar na realidade os conceitos gerais. Agora reconhecemos que, com isso, ele faz justiça ao fato de que a formação natural dos conceitos da linguagem já está sempre em ação. Por isso a conceituação lingüística possui também, segundo Aristóteles, uma liberdade inteiramente não dogmática; o que na experiência se destaca como comum entre o que nos vem ao encontro e o que se erige em generalidade, tem o caráter de um mero desempenho precedente que está, obviamente, no começo da ciência, mas que não é ainda ciência. Isso é o que Aristóteles traz ao primeiro plano. Na medida em que a ciência preconiza como ideal o poder coativo da demonstração, está obrigada a ir mais além desse procedimento. Por isso Aristóteles critica, a partir de seu ideal da demonstração, tanto a doutrina comum de Speusipo como a dialética diairética de Platão. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
É evidente que essa rememoração não nos faz falta, quando se observa a história da filosofia. Já vimos como no pensamento medieval a relevância teológica do problema lingüístico aponta, uma ou outra vez, para a unidade de pensar e falar e traz assim ao primeiro plano um momento que a filosofia grega clássica todavia não tinha pensado assim. O fato de que a palavra seja um processo, em que chega à sua plena expressão a unidade do intencionado — como é pensado na especulação sobre o verbo — é, face à dialética platônica do uno e do múltiplo, algo verdadeiramente novo. Para Platão o logos se movia, ele mesmo, no interior dessa dialética, e não era nada além do que o padecer a dialética das idéias. Nisso não há um verdadeiro “problema da interpretação”, na medida em que os meios da mesma, a palavra e o discurso, estão sendo constantemente superados pelo espírito que pensa. Diferentemente disso, encontramos que na especulação trinitaria o processo das pessoas divinas encerra em si o questionamento neoplatônico sobre o desenvolvimento, isto é, o surgir a partir do uno, com o que se faz justiça, pela primeira vez, ao caráter processual da palavra. Não obstante, o problema da linguagem somente poderia irromper com toda a sua força, quando a mediação escolástica de pensamento cristão e filosofia aristotélica se completasse com um novo momento, que daria uma mudança de rumo positiva à distinção entre o pensamento divino e humano, mudança que alcançaria na idade moderna a maior significação. É o comum do criacional. E, na minha opinião, é esse o conceito que caracteriza mais adequadamente a posição de Nicolau de Cusa, que nos últimos tempos está sendo estudada tão intensamente. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Da relação mundana da linguagem, segue-se seu caráter peculiar de coisa. O que vem à fala são conjunturas. Uma coisa que se comporta desse modo ou de outro. Nisso estriba-se o reconhecimento da alteridade autônoma, que pressupõe por parte do falante uma distância própria com respeito à coisa. Sobre essa distância repousa o fato de que algo possa destacar-se como conjuntura própria e converter-se em conteúdo de uma proposição, suscetível de ser entendida pelos demais. Na estrutura da conjuntura que se destaca, está dado o fato de que sempre haja nela algum componente negativo. A determi-natividade de qualquer ente consiste precisamente em ser tal coisa e não ser tal outra. Em conseqüência existem, por princípio, conjunturas negativas, que o pensamento grego leva em conta pela primeira vez. Já na obstinada monotonia do princípio eleático da correspondência de ser e noein o pensamento grego segue o caráter fundamental de coisa, próprio da linguagem, e, em sua superação do conceito eleático do ser, Platão reconhece que o não-ser no ser é o que, na realidade, torna possível que se fale do ente. É claro que na variada articulação do logos do eidos não podia desenvolver-se adequadamente, como já vimos, a questão do ser próprio da linguagem; tão penetrado estava o pensamento grego da objetividade da linguagem. Perseguindo a experiência natural do mundo em sua conformação lingüística, o pensamento grego pensa o mundo como o ser. O que pensa em cada caso como ente destaca-se como logos, como conjuntura enunciável, a partir de um todo circundante, que constitui o horizonte do mundo da linguagem. O que desse modo se pensa como ente não é, na realidade, objeto de enunciados, mas “vem à fala em enunciados”. Com isso, ganha sua verdade, seu caráter de ser e estar aberto no pensamento humano. Desse modo, a ontologia grega se fundamenta na objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, concebendo a linguagem a partir do enunciado. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Convém não desatender esse aspecto, quando se pretende afirmar que a origem da ciência é grega. Já devia ter passado definitivamente o tempo em que se tomava como padrão o método científico moderno e se interpretava Platão por referência a Kant, e a idéia por referência à lei da natureza (neokantismo), ou se alardeava que em Demócrito já aparecia o começo esperançoso do verdadeiro conhecimento “mecânico” da natureza. Já uma simples reflexão sobre a superação fundamental hegeliana do ponto de vista da compreensão, sob o fio condutor da idéia da vida, pode mostrar os limites de semelhante consideração. Creio que Heidegger alcança mais tarde, no Ser e tempo, o ponto de vista, sob o qual se pode pensar tanto a diferença, quanto a vinculação entre a ciência grega e a moderna. Quando mostra o conceito do ser simplesmente dado (Vorhandenheit) como um modo deficiente do ser, e quando, o reconhece como pano de fundo da metafísica clássica e de sua sobrevivência no conceito moderno da subjetividade, persegue de fato um nexo ontológico correto entre a teoria grega e a ciência moderna. No horizonte de sua interpretação temporal do ser, a metafísica clássica lhe parece, em seu conjunto, como uma ontologia do simplesmente dado, e a ciência moderna lhe parece, sem dar-se conta disso, sua herdeira. Na própria teoria grega havia, no entanto, algo mais que isso. Theoria abarca não tanto o simplesmente dado, mas também a própria coisa (Sache), que ainda tem a dignidade da “coisa” (“Ding”). O próprio Heidegger destacará mais tarde, que a experiência da coisa tem pouco a ver com a pura constatabilidade do mero ser simplesmente dado, como com a experiência das chamadas ciências empíricas. Por conseqüência, [460] temos de manter tanto a dignidade da coisa como a objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, livres do preconceito contra a ontologia do simplesmente dado e portanto do conceito da objetividade (Objetivität). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
A lingüisticidade da experiência humana do mundo já foi reconhecidamente o fio condutor do desenvolvimento do pensamento sobre o ser, na metafísica grega, a partir da fuga “aos logoi” de Platão. Nesse sentido, deveremos nos perguntar até que ponto a resposta que se ofereceu então, e que chega até Hegel, faz justiça ao questionamento que nos guia. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Somente agora chegamos, por fim, ao verdadeiro solo e fundamento do grande enigma dialético do uno e do múltiplo, que deu o que fazer a Platão, como antagonista do logos, e que experimentou uma tão misteriosa confirmação na especulação trinitaria da Idade Média. Era somente um primeiro passo, quando Platão se deu conta de que a palavra da linguagem é ao mesmo tempo una e múltipla. É sempre uma palavra que nós dizemos uns aos outros e que nos é dita (teologicamente: “a palavra de Deus”), mas a unidade dessa palavra desdobra-se a cada vez, como vimos, no falar articulado. Essa estrutura do logos e do verbo, tal como a reconhece a dialética platônica e agostiniana, não é senão o reflexo de seus conteúdos lógicos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Com isso viemos parar, como era de se supor, num âmbito de questões com as quais a filosofia está familiarizada desde antigamente. Na metafísica, pertença quer dizer a relação transcendental entre o ser e a verdade, que pensa o conhecimento como um momento do próprio ser, não primariamente como um comportamento do sujeito. Essa inclusão do conhecimento no ser é pressuposto do pensamento antigo e medieval. O que é, é verdadeiro por sua essência, isto é, está presente na atualidade de um espírito infinito, e somente por isso, torna-se possível ao pensamento humano e finito conhecer o ente. Por conseguinte, aqui não se parte do conceito de um sujeito que fosse por si e convertesse tudo o mais em objeto. Ao contrário, em Platão, o ser da “alma” se determina por sua participação no ser verdadeiro, isto é, porque pertence à mesma esfera da essência a que pertence a idéia. E Aristóteles dirá que a alma é, de um certo modo, todo ente. Nesse pensamento, não se faz menção de nenhum espírito sem mundo, com certeza de si mesmo e que tivesse de achar o caminho rumo ao ser [463] do mundo, mas que ambas as coisas vão originariamente juntas. O primário é a relação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Para descrever o verdadeiro método, que é o fazer da própria coisa, Hegel se reporta, por sua vez, a Platão, que gosta de apresentar o seu Sócrates em conversação com os jovens, porque estes estão dispostos a seguir as perguntas conseqüentes de Sócrates, sem fazer caso das opiniões reinantes. Ele ilustra seu próprio método do desenvolvimento dialético com esses “jovens flexíveis”, que se abstêm de se imiscuir no curso da coisa e não alardeiam sobre as idéias que lhes ocorrem. Dialética não é aqui mais que a arte de conduzir uma conversação e, sobretudo, de descobrir a inadequação das opiniões que dominam uma pessoa, formulando conseqüentemente perguntas e mais perguntas. A dialética é aqui, portanto, negativa, ela desconcerta as opiniões. Mas este desconcerto é ao mesmo tempo um esclarecimento, pois libera o olhar e lhe permite orientar-se adequadamente para a coisa. Tal como na conhecida cena do Ménon, o escravo é conduzido desde o seu desconcerto até a verdadeira solução do problema matemático que lhe colocam — uma vez que lhe falharam, uma após a outra, todas as opiniões prévias e insustentáveis — , toda negatividade dialética contém uma espécie de desenho objetivo prévio do que é verdade. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
E não somente na conversação pedagógica, mas em todo pensamento, a única coisa que deixa emergir o que há na coisa é a perseguição de sua conseqüência objetiva. A própria coisa consegue fazer-se valer, na medida em que nos entregamos por completo à força do pensar e não deixamos valer as idéias e opiniões que pareciam lógicas e naturais. Platão une a dialética eleática, que conhecemos sobretudo por Zenão, com a arte socrática da conversação, e a eleva em seu Parmênides, a uma nova etapa da reflexão. O fato de que, na conseqüência do pensamento, a coisa se inverta sob nossa mão e se converta em seu contrário, que o pensamento ganhe força “ainda que sem conhecer o ‘quê’, mas extraindo tentativamente conclusões, a [469] partir de supostos contrários”, tal é a experiência do pensamento, a que apela o conceito hegeliano do método como autodesenvolvimento do pensamento puro na direção do todo sistemático da verdade. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Não obstante, será preciso explicar mais precisamente o fato de que aqui se dê uma dialética pensada a partir do centro da linguagem, e em que se distingue da dialética metafísica de Platão e Hegel. Engatando num uso terminológico atestado por Hegel, podemos chamar ao que é comum à dialética metafísica e à hermenêutica de especulativo. Especulativo significa, aqui, a relação do espelho. Espelhar-se é uma permuta contínua. Algo se reflete em outra coisa, o castelo no lago, por exemplo, e isso quer dizer que o lago devolve a imagem do castelo. A imagem refletida está unida essencialmente ao próprio [470] aspecto visível, através da mediação que é o observador. Não tem um ser para si, é como uma “aparição” que não é ela mesma e que, todavia, permite que apareça espelhado o próprio aspecto visível. É como uma duplicação que, no entanto, não é mais que a existência de um só. O verdadeiro mistério do espelho é justamente o caráter inatingível da imagem, o caráter etéreo da pura reprodução. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Essa incomum inibição que o pensamento experimenta quando, por seu conteúdo, a frase obriga a suspender o comportamento usual do saber, é o que constitui de fato a essência especulativa de toda filosofía. A grandiosa historia da filosofía de Hegel mostra até que ponto a filosofía é, desde seus primordios, especulação nesse sentido. Quando se expressa sob a forma da predicação, isto é, quando trabalha com representações fixas de Deus, da alma e do mundo, mal-interpreta sua própria essência e cultiva uma atividade unilateral, a de “olhar com os olhos do entendimento o que é objeto da razão”. Para Hegel, é esta a essência da metafísica dogmática pré-kantiana, e o que caracteriza em geral “os novos tempos da não-filosofia. Seja qual for o caso, Platão não é um metafísico desses, e Aristóteles muito menos, ainda que em certas ocasiões acredite-se ser o contrário”. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
E esse é o ponto no qual a proximidade de nossa própria colocação com respeito à dialética especulativa de Platão e de Hegel tropeça numa barreira fundamental. A superação da diferença entre especulativo e dialético que encontramos na ciência especulativa do conceito em Hegel mostra até que ponto este se entende a si mesmo como aquele que verdadeiramente consuma a filosofia grega do logos. O que ele chama de dialética, como o que Platão chamava de dialética, repousa objetivamente na submissão da linguagem a seu “enunciado”. O conceito do enunciado, o aguçamento dialético até a contradição, acha-se, todavia, na mais radical oposição à essência da experiência hermenêutica e à lingüisticidade da experiência humana do mundo. É verdade que também a dialética de Hegel se guia de fato pelo espírito especulativo da linguagem. Mas se atendemos à maneira como Hegel se entende a si mesmo, ele só pretende extrair da linguagem o jogo reflexivo de sua determinação do pensamento, e elevá-lo pelo caminho da mediação dialética, dentro da totalidade do saber sabido, até a autoconsciência do conceito. Com isso a linguagem fica na dimensão do enunciado e não alcança a dimensão da expressão lingüística do mundo. Assim, deve-se mostrar com alguns traços, como se apresenta a essência dialética da linguagem para os problemas hermenêuticos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Assim, na filosofia platônica encontra-se uma relação bastante estreita, e em certas ocasiões uma verdadeira troca, entre a idéia do bem e a idéia do belo. Ambas encontram-se além do que é condicionado e múltiplo: O belo em si encontra-se finalmente com a alma amante, ao cabo de um caminho que passa por múltiplas belezas, como o uno, o que somente possui uma forma, o supremo (Banquete), tal como a idéia do bem, que se encontra acima do que está condicionado e do múltiplo que somente é bom num determinado sentido (República). O belo em si, tal como o bom em si (epekeina), está acima de todo ente. A ordenação do ente, que consiste em sua referência ao bem uno, coincide assim com a ordenação do belo. O caminho do amor que Diotima ensina, conduz dos corpos belos às almas belas, e destas às instituições, costumes e leis belas, e finalmente às ciências (por exemplo, as belas relações numéricas que a teoria dos números conhece), a esse “amplo mas dos belos discursos”, e inclusive mais além de tudo isso. Poderíamos nos perguntar se a superação da esfera do que se vê com os sentidos, e o acesso à esfera do “inteligível”, significa realmente uma diferenciação e elevação da beleza do belo e não meramente do ente que é belo. Todavia, é inteiramente claro que para Platão a ordenação teleológica do ser é também uma ordenação de beleza, que a beleza se manifesta no âmbito inteligível de maneira mais pura e mais clara que no sensível, onde pode aparecer distorcida pela imperfeição e pela desmedida. De um modo parecido, a filosofia medieval vincula estreitamente o conceito do belo com” o do bom, bonum, tão estreitamente que uma passagem clássica de Aristóteles sobre o kalon ficou incompreendida na Idade Média porque o termo grego tinha sido traduzido diretamente por bonum. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
A base da estreita relação da idéia do belo com a da ordenação teleológica do ser está constituída pelo conceito pitagórico-platônico da medida. Platão determina o belo com os conceitos de medida, adequação e proporcionalidade. Aristóteles enumera como momentos (eidé) do belo, a ordem (taxis), a correta proporcionalidade (symmetria) e a [483] determinação (horismenon), e encontra esses momentos representados exemplarmente na matemática. A estreita relação entre a ordem essencial matemática do belo e a ordem celeste significa, ademais, que o cosmo, o modelo de toda ordenação sensível correta, é ao mesmo tempo o mais elevado exemplo de beleza visível. Adequação à medida e simetria são as condições decisivas de todo ser belo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Ninguém poderá pensar, certamente, em querer tornar retroativo esse desenvolvimento e procurar recompor, por exemplo, a categoria metafísica do belo, como a encontramos na filosofia grega, renovando a última reformulação dessa tradição, a estética da perfeição do século XVIII. Por mais insatisfatório que nos tenha parecido o caminho que Kant traçou rumo ao subjetivismo na nova estética, não obstante, Kant conseguiu demonstrar de maneira convincente até que ponto é insustentável o racionalismo estético. Só que não é correto fundamentar a metafísica do belo unicamente sobre a ontologia da medida e da ordem teleológica do ser, a que apela, em última instância, a aparência classicista da estética da regra do racionalismo. De fato, a metafísica do belo não é a mesma coisa que essa aplicação do racionalismo estético. Ao contrário, o retorno a Platão permite reconhecer no fenômeno do belo um aspecto completamente diferente, justamente o que nos vai interessar agora para o nosso questionamento hermenêutico. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Por mais estreita que seja a relação entre a idéia do belo e a idéia do bom em Platão, este não deixa de ter presente uma diferença entre ambos, diferença que contém um característico predomínio do belo. Já vimos que o caráter inacessível do bom no belo, isto é, no caráter de medida do ente e na abertura que lhe é própria (aletheia), encontra uma correspondência na medida em que ainda lhe convém uma última exaltação. Mas Platão pode afirmar paralelamente que na tentativa de apreender o bom em si mesmo, este se refugia no belo. Assim, o belo se distingue do bem, que é o completamente inapreensível, porque se apreende mais facilmente. Ele tem por essência a característica de aparecer. Na busca do bem, o que se mostra é o belo. Este representa de imediato uma caracterização daquele para a alma humana. O que se mostra na sua forma mais [485] completa atrai para si o desejo amoroso. O belo atrai imediatamente, enquanto que as imagens diretrizes da virtude humana só podem ser reconhecidas obscuramente, no meio confuso dos fenômenos, porque elas não possuem luz própria e isto faz que sucumbamos, muitas vezes, às imitações impuras e às formas somente aparentes da virtude. Isso não ocorre com o belo. O belo tem sua própria luminosidade, e isso faz que sejamos desviados por cópias desfiguradas. Pois “somente à beleza foi dado ser o mais reluzente (ekphanestaton) e amável”. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Nessa função anagógica do belo, que Platão descreve de forma inolvidável torna-se visível um momento ontológico da estrutura do belo e também uma estrutura universal do próprio ser. Evidentemente que o que caracteriza o belo, face ao bom, é que se mostra por si mesmo, que se torna transparente diretamente em seu próprio ser. Com isso ele assume a função ontológica mais importante que pode haver, a da mediação entre a idéia e o fenômeno. Ela é a cruz metafísica do platonismo, que se cristaliza no conceito da participação (methexis) e é concernente tanto à relação do fenômeno com a idéia como à das idéias entre si. Como o Fedro mostra, não é casual que Platão goste de ilustrar essa problemática relação da “participação” com o exemplo do belo. A idéia do belo encontra-se verdadeiramente presente naquilo que é belo, indiviso e inteiro. Por isso, o exemplo do belo permite tornar patente a “parusia” do eidos a que se refere Platão, mostrando a evidência da coisa, face às dificuldades lógicas da participação do “devir” no “ser”. “A presença” pertence ao ser do próprio belo, de maneira plenamente convincente. Por mais que a beleza se experimente como reflexo de algo supraterreno, ela está no visível. É no modo de seu aparecer, que ela mostra como algo realmente diferente, uma essência de outra ordem. Aparece de repente, e igualmente de repente e sem transições, sem mediações, já se foi. Se se tem de falar, com Platão, de um hiato (chorismos) entre o sensível e o ideal, aqui está ele, e aqui já está também encerrado. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
A “reluzir” não é, portanto, somente uma das propriedades do que é belo, mas perfaz a sua verdadeira essência. A característica do belo, de atrair imediatamente o desejo da alma humana, está fundamentada em seu próprio modo de ser. É o caráter de medida do ente, que não o deixa ser somente o que é, mas que o faz aparecer também como um todo medido em si mesmo e harmonioso. Esta é a abertura (aletheia), de que Platão fala no Filebo e que faz parte da essência do belo. A beleza não é somente simetria, mas é a própria aparência que repousa sobre ela. Ela tem o modo do “aparecer”. Mas aparecer significa aparecer em algo, e, assim, alcançar o aparecimento, por si mesmo, naquilo que recebe sua aparência. A beleza tem o modo de ser da luz. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
A experiência hermenêutica faz parte desse campo, porque também ela é o acontecer de uma autêntica experiência. O fato de que se evidencie algo naquilo que foi dito, sem que por isso fique assegurado, julgado e decidido em todas as possíveis direções, é algo que de fato ocorre cada vez que algo nos fala a partir da tradição. O transmitido se faz valer a si mesmo, em seu próprio direito, na medida em que é compreendido, e desloca oiorizonte que até então nos rodeava. Trata-se de uma verdadeira experiência, no sentido já mencionado. Tanto o evento do belo como o acontecer hermenêutico pressupõem fundamentalmente a finitude da existência humana. Inclusive podemos fazer a pergunta se um espírito infinito poderia experimentar o elo como nós o experimentamos. Poderia ele ver outra coisa que a beleza do todo que tem ante si? O “aparecer” do belo parece reservado à experiência humana finita. O pensamento medieval conhece um problema análogo, o de como é possível a beleza em Deus, se ele é uno e não múltiplo. Somente a doutrina de Nicolau de Cusa, da complicatio do múltiplo em Deus oferece uma solução satisfatória (cf. O Sermo de pulchritudine, citado acima). E nesse sentido nos parece inteiramente conseqüente que, na filosofia hegeliana do saber infinito, a arte seja uma forma da representação, que encontraria a sua suspensão e subsunção no conceito e na filosofia. Do mesmo modo, a universalidade da experiência hermenêutica não deveria ser, por princípio, acessível a um espírito infinito, que desenvolvesse, a partir de si mesmo, tudo quanto é sentido, todo noeton, e que pensasse todo o pensável na plena autocontemplação de si mesmo. O Deus aristotélico (e também o espírito hegeliano) deixou para trás de si a “filosofia”, esse movimento da existência finita. Nenhum dos deuses filosofa, diz Platão. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
O fato de que uma ou outra vez possamos nos reportar a Platão, apesar de que a filosofia grega do logos somente permite apreciar de maneira muito fragmentária o solo da experiência hermenêutica, o centro da linguagem, o devemos evidentemente a essa outra face da doutrina platônica da beleza, a que acompanha a história da metafísica aristotélico-escolástica como uma espécie de corrente subterrânea, e que emerge, de vez em quando, como ocorre na mística neoplatônica e cristã, e no espiritualismo filosófico e teológico. Nessa tradição do platonismo é onde se desenvolve o vocabulário conceitual que o pensamento da finitude da existência humana necessita. Também a afinidade que reconhecemos entre a teoria platônica da beleza e a idéia de uma hermenêutica universal testemunha a continuidade dessa tradição platônica. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Procuramos separar novamente essa frase de sua conexão metafísica com a teoria da forma, apoiando-nos outra vez em Platão. Ele foi o primeiro que mostrou como momento essencial doijelo a aletheia, e é muito claro o que queria dizer com isso: o belo, o modo como aparece o bom, manifesta-se a si mesmo no seu ser, representa-se. O que se representa assim não se torna distinto de si mesmo, na medida em que se representou. Não é uma coisa para si, e outra distinta para os demais. Nem sequer se encontra noutra coisa. Não é o resplendor despejado sobre uma forma, e que chega a ela a partir de fora. Ao contrário, a constituição ontológica, própria dessa forma, é brilhar assim, é representar-se assim. Disso resulta que, em relação com o ser belo, o belo tem de ser compreendido ontologicamente sempre como “imagem”. E não há nenhuma diferença entre o fato de que apareça “ele mesmo” ou sua imagem. Já havíamos visto que a característica metafísica do belo era justamente a ruptura do hiato entre idéia e aparência. Com toda segurança, é “idéia”, ou seja, pertence a uma ordenação de ser que se destaca sobre a corrente dos fenômenos como algo consistente em si mesmo. Mas igualmente certo é que aparece por si mesmo. Como vimos, isso não significa, de modo algum, uma instância contra a doutrina das idéias, mas uma exemplificação concentrada de sua problemática. Aí onde Platão invoca a evidência do belo, não necessita reter a oposição entre “ele mesmo” e imagem. É o belo o que simultaneamente põe e supera essa oposição. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Essa recordação referente a Platão torna-se de novo significativa para o problema da verdade. Na análise da obra de arte, tínhamos procurado demonstrar que o representar-se deve ser considerado como o verdadeiro ser daquela. Com esse fim, havíamos acrescentado o conceito do jogo, o qual já nos projetou a nexos mais gerais: pois tínhamos visto que a verdade do que se representa no jogo não é “de se crer” ou “não se crer”, para além da participação no acontecer lúdico. No âmbito estético, isso se entende por si mesmo. Inclusive quando o poeta é honrado como um vidente, isso não quer dizer que reconheçamos no seu poema uma verdadeira profecia como, por exemplo, nos cantos de Hölderlin sobre o retorno dos deuses. O poeta é 492] um vidente porque representa por si mesmo o que é, o que foi e o que será, e testemunha por si mesmo o que anuncia. É certo que a expressão poética leva em si uma certa ambigüidade, como aquela dos oráculos. Mas precisamente nisso se estriba sua verdade hermenêutica. Quem considera que isso é uma falta de vinculatividade estética, que passaria ao largo da seriedade do existencial, não se dá conta de até que ponto a finitude do homem é fundamental para a experiência hermenêutica do mundo. A ambigüidade do oráculo não é o seu ponto fraco, mas justamente sua força. E igualmente atira no escuro aquele que examinar se Hölderlin ou Rilke acreditavam realmente em seus deuses ou em seus anjos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Eu mesmo preciso afirmar, contra Heidegger, que não há uma linguagem da metafísica. Já expus esse ponto de vista na publicação em homenagem a Löwith. Existem apenas conceitos da metafísica, cujo conteúdo ganha determinação no emprego das palavras, como ocorre com todas as palavras. Tanto os conceitos, onde se movimenta o pensamento, quanto as palavras do uso cotidiano de nossa linguagem não estão dominados por uma regra rígida, com uma posição prefixada. A linguagem da filosofia, mesmo [12] sobrecarregada pelo peso da tradição, como é o caso da metafísica aristotélica traduzida para o latim, busca, sobretudo e sempre de novo, tornar fluentes as produções de linguagem. Pode até trazer para o latim e renovar antigas direções semânticas, capacidade que de há muito admiro no gênio de Nicolau de Cusa. Essa reformulação não precisa necessariamente ser feita pelo método e no estilo da dialética de Hegel ou no modelo agressivo e veemente da linguagem de Heidegger. Os conceitos que emprego em meu contexto definem-se de maneira nova pelo seu uso. Também não se trata dos conceitos da metafísica aristotélica clássica, como foram redescobertos pela ontologia de Heidegger. Pertencem muito mais à tradição platônica. Expressões como mimesis, methexis, participação, anamnesis, emanação, que uso com algumas pequenas modificações — como por exemplo no caso de re-presentação (Repräsentation — são conceitos cunhados por Platão. Em Aristóteles, eles desempenham algum papel apenas no nível da crítica, não fazendo parte do acervo conceitual da metafísica, no que se refere à configuração escolástica fundada por Aristóteles. Remeto novamente para a meu tratado acadêmico sobre a idéia do bem, onde, pelo contrário, procuro demonstrar que o próprio Aristóteles era mais platônico do que se costuma admitir, e que o projeto aristotélico da ontoteologia é apenas uma das perspectivas que Aristóteles extraiu de sua física e que se encontram reunidas nos livros da metafísica. VERDADE E METODO II Introdução 1.
Com isso, toco no ponto de um verdadeiro desvio do pensamento de Heidegger, a que dedico grande parte de meu trabalho, e refiro-me em especial aos meus estudos de Platão. (Tive a satisfação de ver que justamente estes trabalhos significaram alguma coisa para o Heidegger dos últimos anos de sua vida.) A mim parece que não se pode ler Platão como o precursor da ontoteologia. Mesmo a Metafísica de Aristóteles possui dimensões diferentes do que as que foram reveladas por Heidegger em seu tempo. Para isso penso poder apelar, dentro de certos limites, para o próprio Heidegger. Penso sobretudo na predileção de Heidegger pela “famosa analogia”. É assim que ele costumava dizer na época de Marburgo. A doutrina aristotélica da analogia entis foi para ele desde o princípio um recurso contra o ideal da fundamentação última, como Husserl num estilo semelhante a Fichte havia assumido. Seguindo um distanciamento cuidadoso da auto-interpretação transcendental de Husserl, encontramos em Heidegger freqüentemente a expressão “co-originariedade” — uma ressonância da “analogia” e uma versão au fond fenomenológico-hermenêutica. Não foi, portanto, somente a crítica aristotélica à idéia do bem que levou Heidegger do conceito de phronesis para seu próprio caminho. Ele recebeu também um impulso do próprio núcleo da metafísica de Aristóteles, e principalmente da Física, como mostra seu artigo sobre a Physis, muito rico em perspectivas. A partir dali fica claro por que atribuí um papel tão central à estrutura de diálogo da linguagem. O que aprendi de Platão, o mestre do diálogo, ou melhor, dos diálogos de Sócrates, compostos por Platão, é que a estrutura de monólogo da consciência científica jamais permitirá, de modo pleno, ao pensamento filosófico alcançar seus intentos. A minha interpretação do excurso à 7a Carta parece-me estar acima dos questionamentos críticos sobre a autenticidade desse fragmento. É só a partir daqui que podemos compreender por que a linguagem da filosofia, desde então, desenvolve-se constantemente no diálogo com sua própria história — antes disso, comentando, corrigindo e criando variações, e com o surgimento da consciência histórica, numa duplicidade nova e cheia de tensão entre a reconstrução histórica e a transposição especulativa. A linguagem da metafísica é e permanece sendo o diálogo, mesmo que esse se dê na distância de séculos e milênios. Por este motivo, os textos de filosofia não são propriamente textos ou obras, mas contribuições a um diálogo que dura através dos tempos. VERDADE E METODO II Introdução 1.
Talvez aqui seja o lugar para se fazer algumas observações às ampliações e apresentações autônomas do problema hermenêutico, do modo como foram apresentadas de um lado por Hans-Robert Jauss e Manfred Frank e, por outro, por Jacques Derrida. É sem dúvida incontestável que a estética da recepção, desenvolvida por Jauss, enfocou sob uma nova luz toda uma dimensão da pesquisa literária. No entanto, será justo seu posicionamento contra o que tenho em mente com minha hermenêutica filosófica? Parece-me que a ilustração da historicidade da compreensão, que apresentei no exemplo do conceito do clássico, é mal-entendida, toda vez que atribuímos a palavra aqui ao classicismo e ao conceito vulgar de platonismo. Dá-se exatamente o contrário. O exemplo do clássico, em Verdade e método I, quer ilustrar o quanto a mobilidade histórica está incluída na atemporalidade daquilo que se chama de clássico (e que contém, todavia, um componente normativo, mas nenhuma caracterização de estilo), de tal forma que a compreensão se transforma e se renova constantemente. O exemplo do clássico, portanto, nada tem a ver com o ideal de estilo clássico e nem com o conceito vulgar de platonismo, que [14] considero uma deformação das reais intenções de Platão. Neste ponto, Oskar Becker viu melhor do que Jauss, quando me acusou, em sua crítica, de estar sendo tomado pela história, e arrolou contra mim o pitagorismo do número, do som e do sonho. Não me senti atingido, neste particular. Mas não vamos tratar disso aqui. A estética da recepção de Jauss seria, ela própria, truncada, segundo me parece, se quisesse dissolver a obra que subjaz em cada configuração receptiva em meras facetas. VERDADE E METODO II Introdução 1.
Atrás disto está o antigo problema metafísico da concreção do universal. Eu já tinha isto em mente nos meus primeiros trabalhos sobre Platão e Aristóteles. Os primeiros textos de minha formação intelectual foram publicados pela primeira vez, recentemente, no volume V dessa edição alemã, sob o título Praktisches Wissen [Saber prático] (escrito em 1930). Ali trabalhei na elaboração da essência da phronesis, em estreita ligação com o livro 6 da Ética a Nicômaco, estimulado por Heidegger. Em Verdade e método I, esta problemática ocupa um lugar central. Nesse meio tempo, a tradição aristotélica da filosofia prática foi retomada e abordada sob diversas perspectivas. Parece-me indiscutível a sua autêntica atualidade. Na minha opinião, isso nada tem a ver com os indícios políticos, ligados hoje a um neo-aristotelismo. O que significa filosofia prática permanece sendo, para o conceito científico do conjunto do pensamento moderno, uma exigência real, que não pode ser ignorada. Há que se aprender com Aristóteles que o conceito grego de ciência, episteme, significa conhecimento racional. Isso significa que ele toma como modelo a matemática, e não abrange propriamente a empiria. Por isso, o conceito grego de ciência, [23] episteme, corresponde menos à ciência moderna, do que o conceito de techne. Em todo caso, o saber prático e político têm fundamentalmente uma estrutura diferente de todas estas formas de saber didático e de sua aplicação. O saber prático (Können), na verdade, é aquilo que, a partir de si, assinala o lugar a todo saber prático fundamentado cientificamente. Isto já era o sentido do questionamento socrático pelo bem, mantido por Platão e Aristóteles. Quem acredita que, graças à sua competência indiscutível, a ciência possa substituir a razão prática e a racionalidade política, desconhece as forças que levam à configuração da vida humana, as quais, pelo contrário, são as únicas que estão em condições de utilizar com sentido e compreensão a ciência e todo saber prático humano, e responsabilizar-se pela utilização do mesmo. VERDADE E METODO II Introdução 1.
Para concluir vamos recordar uma idéia que já nos havia legado Platão: Platão chama as ciências, que consistem nos logoi, nos discursos, de alimento da alma, da mesma forma que a comida e a bebida são os alimentos do corpo. “Por isso, na sua aquisição, deveríamos ter o mesmo cuidado para não sermos aliciados a comprar mercadorias ruins. Há muito mais perigo na aquisição de saber do que na aquisição de alimentos. Isto porque os alimentos e a bebida que alguém compra de um comerciante podem ser depositados [43] numa vasilha em casa, antes de serem ingeridos, e ali permanecem até que venha um especialista capaz de aconselhar sobre o que se deve comer ou beber e o que não, sobre a quantidade e o tempo de ingeri-los. Nessa aquisição o perigo não é tão grande. O saber, porém, não pode ser separado e guardado numa vasilha específica, sendo inevitável que, tendo pago o seu preço, ele seja imediatamente digerido pela própria alma, e assim sejamos instruídos, seja para o mal, seja para o bem”. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 3.
Sob o ponto de vista dessa questão, passa a despertar interesse a pertença interna de palavra e coisa, tal como foi problematizada no começo da reflexão sobre a linguagem. De certo, a questão pela justeza dos nomes, abordada pelos gregos, constitui um último eco daquela magia da palavra, que a compreende como a coisa (Sache) ela mesma, ou como o seu ser representante. Também o filosofar dos gregos começa com a dissolução dessa magia da palavra, dando seus primeiros passos como crítica da linguagem. Apesar disso, conserva em si tanto daquele auto-esquecimento ingênuo que constitui a experiência originária de mundo que a essência das coisas que se manifestam no logos parece-lhe ser a auto-apresentação dos próprios entes. Trata-se de uma clara ironia, quando Platão, no Fédon, caracteriza a fuga para os logoi como uma “viagem de segunda”, porque aqui se considera o ente apenas numa imagem refletida do logos, ao invés de considerá-lo em sua realidade corpórea. No fim, o verdadeiro ser das coisas torna-se acessível justamente em sua manifestação pela linguagem, quer dizer, na idealidade de um ter em mente, desprovido de pensamento, e se fecha de tal modo para o olhar da experiência que o próprio ter em mente e o caráter de linguagem da manifestação das coisas acabam não sendo experimentados como tais. À medida que compreende o verdadeiro ser das coisas como as essências acessíveis ao “espírito”, a metafísica encobre o caráter próprio de linguagem dessa experiência do ser. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6.
O mesmo ocorre, porém, com o conceito. Um sistema de conceitos, uma multiplicidade de idéias, que se tivesse de definir, delimitar e determinar cada uma por si, não atingiria a questão radical da conceptualidade da filosofia e da filosofia como conceptualidade. Isto porque na filosofia está em questão a unidade “do” conceito. Quando Platão fala de sua teoria das idéias e busca impor filosoficamente essa “tão comentada” teoria das idéias, ele fala do uno e da pergunta sobre como esse uno é ao mesmo tempo múltiplo. Ao procurar em sua Lógica refletir sobre os pensamentos de Deus, que estão em seu espírito, como totalidade das possibilidades do ser, antes do início da criação, Hegel encerra o livro com “o conceito”, enquanto o autodesenvolvimento pleno dessas possibilidades. A unidade do objeto da filosofia dá-se de tal modo que, assim como a unidade da palavra acontece em torno do que é digno de ser dito, também a unidade do pensar filosófico ocorre em torno do que é digno de ser pensado. Não são as definições singulares dos conceitos que possuem uma legitimação filosófica autônoma. É sempre [81] apenas um princípio unitário do pensar que determina a função do conceito singular em sua significação legítima. Vale a pena guardar isso na memória, para quando se quer colocar a pergunta pela tarefa de uma história dos conceitos, que não se presta simplesmente a um trabalho auxiliar da investigação filosófico-histórica, mas deve inserir-se na locupletação da filosofia e realizar-se como “filosofia”. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.
O problema da liberdade parece ser um dos que preenchem perfeitamente a condição prévia de ser um problema filosófico idêntico. A condição prévia de ser um problema filosófico consiste na verdade em ser insolúvel. O problema deve ser de tal modo abrangente e fundamental que volta a se instaurar sempre de novo, uma vez que parece não haver nenhuma “solução” capaz de resolvê-lo totalmente. Já Aristóteles descreveu a essência do problema dialético, afirmando que são as questões grandes e insolúveis que se devem lançar ao adversário numa disputa verbal. A pergunta, porém, é: haverá “o” problema da liberdade? A questão da liberdade será realmente sempre a mesma em todos os tempos? O que dizer daquele mito profundo da República de Platão, segundo o qual a própria alma escolhe, num estado anterior ao nascimento, a sorte para sua vida, de tal modo que se queixa das conseqüências de sua escolha recebe como resposta: “aitia helemenou, Tens culpa na tua escolha”? Terá o mesmo sentido que o conceito de liberdade que dominou, por exemplo, a filosofia moral estóica, que afirmava com certa resolução que o único caminho para tornar-se independente e, com isso, livre seria não prender seu coração a nada, e não apegar-se a si próprio? Será este o mesmo problema do mito platônico? Será o mesmo problema quando a teologia cristã procura tecer e resolver seu grande enigma entre a liberdade do homem e a providência divina? E será o mesmo quando, na era da ciência da natureza, formulamos a pergunta: Como se deve conceber a possibilidade de liberdade, diante da determinação infalível do acontecimento natural diante do fato de que toda ciência da natureza deve partir do pressuposto de que na natureza não acontecem milagres? O problema do determinismo e do indeterminismo da vontade, formulado a partir dessa situação, será ainda o mesmo problema? VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.
No grandioso começo do pensamento ocidental, temos a teoria do ser, apresentada por Parmênides em seu poema didático. Lega aos sucessores a questão que ainda está em aberto. O próprio Platão confessa não poder compreender a dimensão que Parmênides tem em mente com esse ser. A investigação moderna permanece controversa. Hermann Cohen pensava tratar-se da lei da identidade como a mais elevada exigência que o pensamento como tal pode fazer. A investigação histórica esbarra nesses anacronismos sistematizadores. Objeta-se com razão que o ser que se tem em mente nesse caso seria o mundo, a totalidade dos entes, pelo que os [86] jônicos perguntaram sob o título de ta panta. A questão de saber se o ser de Parmênides é o prelúdio de um conceito filosófico supremo ou um nome coletivo para o conjunto de todos os entes, não pode ser encarada como se fosse uma alternativa a que se precisa escolher. Devemos ao contrário sofrer essa carência de linguagem, que num enorme esforço de elevação do pensamento cunhou a expressão to on, o ente, esse singular abstrato. Antes falava-se dos onta, dos muitos entes. Devemos calcular os riscos desse discurso, se quisermos seguir o pensamento que aqui está em jogo. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.
Da mesma forma poder-se-ia mostrar como Platão chegou à idéia de que para cada determinação do pensar, para cada frase, para cada juízo, para cada enunciado é necessário pensar tanto a identidade quanto a diferença. Se quisermos pensar algo como aquilo que ele é, devemos pensá-lo necessariamente como diverso de todo o resto. Identidade e diferença vêm sempre e indissoluvelmente juntas. Na filosofia mais tardia esses conceitos são chamados de conceitos reflexivos, uma vez que se caracterizam por uma relação dialética de intercâmbio recíproco. Quando Platão empreende essa descoberta grandiosa, apresenta esses ditos conceitos reflexivos numa conjugação digna de nota, justapondo aos conceitos de identidade e diferença, presentes sempre que se pensa, o repouso e o movimento. Perguntamo-nos o que eles têm a ver entre si. Uns são conceitos que descrevem o caráter do mundo: nele há repouso movimento — os outros, como identidade e diferença, são conceitos que só ocorrem no pensamento. Ambos devem ser dialéticos, no sentido de que mesmo o repouso não pode ser pensado sem movimento. São, porém, de natureza totalmente diversa. Para Platão essa diversidade parece pertencer a uma única série. No Timeu, ele indica que a estrutura do mundo coloca literalmente frente aos olhos do espírito humano a identidade e a diferença de tal modo que, ao considerar a regularidade da órbita estelar e seus desvios, os fenômenos relacionados com a eclíptica, o homem aprende a pensar participando desses movimentos. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.
Como costuma ocorrer com as palavras derivadas do grego e adotadas em nossa linguagem científica, o título “hermenêutica abarca diversos níveis de reflexão. Hermenêutica significa em primeiro lugar praxis relacionada a uma arte. Sugere a “techne” como palavra complementaria. A arte, em questão aqui, é a arte do anúncio, da tradução, da explicação e interpretação, que inclui naturalmente a arte da compreensão que lhe serve de base e que é sempre exigida quando o sentido de algo se acha obscuro e duvidoso. Já no uso mais antigo da palavra, detecta-se uma certa ambigüidade. Hermes é chamado o mensageiro divino, aquele que transmite as mensagens dos deuses aos homens: No relato de Homero, ele costuma executar verbalmente a mensagem que lhe fora confiada. Mas freqüentemente, e em especial no uso profano, a tarefa do hermeneus consiste em traduzir para uma linguagem acessível a todos o que se manifestou de modo estranho ou incompreensível. Assim, a tarefa da tradução sempre tem uma certa “liberdade”. Pressupõe a plena compreensão da língua estrangeira e, mais do que isso, a compreensão da verdadeira intenção de sentido do que se manifestou. Quem quiser se fazer compreender como intérprete deve trazer novamente à fala este sentido da intenção. A contribuição que a “hermenêutica” pode fazer é sempre essa transferência de um mundo para outro, do mundo dos deuses para o dos homens, do mundo de uma língua estrangeira para o mundo da língua própria (os tradutores humanos podem traduzir somente para sua própria língua). Visto, porém, que a tarefa própria do traduzir consiste em “executar” algo, o sentido de hermeneuein oscila entre tradução e diretiva, entre mera comunicação e requisito de obediência. E certo que, em sentido neutro, hermeneia costuma significar “enunciação de pensamentos”, todavia é significativo o fato de que, para Platão, não é qualquer expressão de pensamento que possui o [93] caráter de diretiva, mas somente o saber do rei, do arauto etc. A proximidade da hermenêutica com a mântica não pode ser compreendida de modo diverso: a arte de transmitir a vontade do deus segue paralela à arte de adivinhá-la ou de prever o futuro mediante sinais. Mesmo assim, quando Aristóteles trata da questão do logos apophantikos, no tratado Peri hermeneias, ele só tem em mente o sentido lógico do enunciado, concentrando-se no outro componente semântico, puramente cognitivo. De modo semelhante, desenvolve-se no mundo grego posterior um sentido de hermeneia e hermeneus puramente cognitivo, que pode significar “explicação erudita”, “comentador” e “tradutor”. É claro que, enquanto arte, encontram-se ligados à hermenêutica restos herdados da esfera sacral: é a única arte cuja palavra deve ser estabelecida como padrão de medida, que se acolhe com admiração porque pode compreender e explicitar o que oculta, seja em discursos estranhos, seja na convicção inexpressa de outro. Trata-se, portanto, de uma ars: uma técnica, como a oratória, a arte de escrever ou a aritmética. É mais aptidão prática do que propriamente “ciência”. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.
A hermenêutica tem, em todo caso, uma temática própria. Apesar de sua generalidade, não pode ser integrada legitimamente na lógica. Em certo sentido, partilha com a lógica a universalidade. Em outro, chega, porém, a superá-la. É claro que todo conjunto enunciativo pode ser considerado do ponto de vista de sua estrutura lógica: As regras da gramática, da sintaxe e finalmente as leis da dedução lógica podem sempre ser empregadas aos contextos do discurso e do pensamento. Raras são, contudo, as vezes em que um conjunto discursivo realmente vivo satisfaz as exigências estritas da lógica de enunciado. O discurso e o diálogo não são “enunciados” no sentido de um juízo lógico, cuja univocidade e significado pode ser comprovado e verificado por todos, mas têm seu lado ocasional. Eles se dão num processo comunicativo, no qual o monólogo do discurso científico e o processo de demonstração representam apenas um caso especial. O modo de realizar-se da linguagem é o diálogo, mesmo que seja o diálogo da alma consigo mesma, que é como Platão caracteriza o pensamento. Nesse sentido, enquanto teoria da compreensão e do entendimento, a hermenêutica congrega a máxima generalidade. Compreende todo enunciado não apenas em sua validade lógica, mas como resposta a uma pergunta. Isto significa, porém, que aquele que compreende, precisa compreender a pergunta, e uma vez que a compreensão precisa alcançar seu sentido a partir de sua história motivacional, precisa ir necessariamente além do conteúdo do enunciado concebido pela lógica. No fundo, isto já estava presente na dialética do espírito de Hegel, tendo sido retomado por B. Croce, Collingwood e outros. Vale a pena ler, na Autobiography de Collingwood, o capítulo sobre The logic of question and answer (A lógica de pergunta e resposta). Mas mesmo uma análise puramente fenomenológica não pode furtar-se ao fato de que não existem percepções nem juízos isolados. Foi o que demonstrou fenomenologicamente H. Lipp, em sua Hermeneutische Logik (Lógica hermenêutica), à base da teoria husserliana das intencionalidades anônimas, desenvolvendo uma análise na linha do conceito existencial de mundo, de Heidegger. Na Inglaterra, Austin desenvolveu, em sentido análogo, a virada do Wittgenstein tardio. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.
Já demonstrei em outro lugar que a forma em que se realiza todo diálogo pode ser descrita a partir do conceito de jogo. Para isso é necessário livrar-se de um hábito de pensar que define a essência do jogo a partir da consciência do jogador. Essa definição do jogador popularizada por Schiller apreende a verdadeira estrutura do jogo apenas em sua aparência subjetiva. Jogo é, na verdade, um processo dinâmico (cinético) que abarca os jogadores ou o jogador. Quando falamos de jogo do navio ou de jogo cênico ou do livre jogo das articulações, não se trata de uma mera metáfora. Pelo contrário, a fascinação do jogo para a consciência que joga repousa justamente nessa saída extática de si próprio para um nexo dinâmico que desenvolve sua própria dinâmica. Dá-se jogo quando o jogador individual leva a sério o jogo, isto é, quando entra seriamente no jogo, sem considerar-se apenas um jogador. As pessoas que não conseguem isso, dizemos que não conseguem jogar. Penso que a estrutura fundamental do jogo de estar impregnado de seu espírito — espírito de leveza, de liberdade, do prazer do logro — e nisso impregnar o jogador é aparentada com a estrutura do diálogo, onde se dá a linguagem real. A vontade de o indivíduo reservar-se ou abrir-se já não é determinante para o modo de entrarmos em diálogo mútuo e de sermos levados por ele. O determinante é a lei da coisa que está em questão (Sache) no diálogo, que provoca a fala e a réplica e acaba conjugando a ambas. Assim, quando se dá o diálogo sentimo-nos plenos. O jogo da fala e da réplica prolonga-se para um diálogo interior da alma consigo mesma, como Platão já havia tão bem qualificado o pensamento. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 11.
A pergunta que se faz, porém, é a seguinte: Será o conhecimento dos conhecimentos, caracterizado por Platão como arte política, algo mais do que uma imagem crítica do empreendimento cego daqueles que, segundo Platão, têm de responsabilizar-se pela decadência de sua pátria? O ideal da tékhne, do saber técnico, capaz de ser ensinado e aprendido, satisfaz a exigência feita à existência política do homem? Aqui não é o lugar para discutirmos o alcance e os limites do pensamento da téknne na filosofia platônica. E nem tampouco para tocar no problema de até que ponto a própria filosofia de Platão segue certos ideais políticos que não podem ser os nossos? Mesmo assim, mencionar Platão nesse contexto pode ajudar a esclarecer o problema que nos atinge hoje. Platão ensina a duvidar de que a intensificação da ciência humana possa apreender e regular a totalidade de sua própria existência social e política. Podemos evocar aqui a oposição cartesiana entre res cogitans e res extensa, que em todas as possíveis modificações dimensionou corretamente a questão fundamental de toda aplicação da “ciência” à autoconsciência. Só com a aplicação da nova ciência à sociedade — que o Descartes da “moral provisória” tinha em mente apenas como um objetivo distante — é que essa questão alcançou toda sua gravidade. Os discursos de Kant sobre o homem como “cidadão de dois mundos” conferiram-lhe uma expressão adequada. O fato de que, na totalidade de sua existência, o homem possa tornar-se um objeto a ponto de ser considerado produto em todas as relações de sua vida social, que possa ainda existir um especialista que “ele” mesmo não é, para administrar cada “homem” junto com todos os outros e que esse especialista seja ele mesmo administrado por sua própria administração, tudo isso provoca evidentes confusões. Uma delas é que o saber objetivo de [162] Platão não passa de uma caricatura irônica, mesmo que iluminada com todas as cores de uma inspiração, de um conhecimento do divino ou do bem transcendentes. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.
Mesmo prescindindo da questão sobre o posicionamento do planejador de uma organização racional do mundo e de um administrador racional dentro deste mundo, parece insolúvel a confusão gerada pelo domínio da “ciência” sobre a situação concreta da vida humana e a racionalidade nela atuante. Também nesse caso, o pensamento grego mostra grande atualidade. A distinção aristotélica entre tékhne e phronesis vai clarificar essa confusão. Reconhecendo na situação concreta da vida o que é passível de ser feito, o saber prático não encontra sua perfeição do mesmo modo que o saber objetivo tem sua perfeição na tékhne. A tékhne que pode ser ensinada e aprendida e seu desempenho não depende evidentemente do tipo de homem que se é, já, do ponto de vista moral ou político, ocorre exatamente o contrário com o saber e a razão que iluminam e guiam a situação prática da vida humana. É claro que também aqui se dá, dentro de certos limites, algo como a aplicação de um saber universal sobre um caso particular. O que assumimos como conhecimento humano, experiência política, astúcia nos negócios, contém — mesmo que segundo uma analogia um tanto inexata — um elemento do saber universal e de sua aplicação. Se não fosse assim, não poderia haver nem o seu ensino e aprendizagem e nem o saber filosófico que Aristóteles desenvolveu no projeto de sua ética e de sua política. Mas o problema aqui não é o da relação lógica entre lei e caso particular e nem tampouco de um cálculo e previsão das conseqüências, consoante à idéia moderna de ciência. Mesmo na suposição utópica de uma física da sociedade, não nos livraríamos da confusão indicada por Platão quando estilizou o homem de Estado, isto é, o agente político, como um especialista mais gabaritado. Esse saber do físico da sociedade, se posso chamá-lo assim, bem pode possibilitar a existência de um técnico da sociedade capaz de produzir tudo o que se imagina, mas permaneceria alguém que não sabe o que se deve realmente fazer com o que ele mesmo sabe. Aristóteles refletiu profundamente sobre essa confusão. Chamou, por isso, o saber prático, que trata de situações concretas, de “outro tipo de saber. O que defende não é um irracionalismo opaco, mas a clareza da razão que sabe encontrar o factível, a cada vez, num sentido prático-político. Assim, em toda decisão prática da vida, está em questão um ponderar sobre as possibilidades que levam aos fins estabelecidos. É compreensível que, desde Max Weber, as ciências sociais tenham buscado sua legitimação científica na racionalidade da escolha dos meios e que hoje tendam a objetivar cada vez mais áreas que antes estavam sujeitas à decisão “política”. Mas se até Max Weber relacionou o pathos de sua sociologia avalorativa à confissão não menos patética de um “deus” que cada um deve escolher, poderíamos realmente admitir a abstração de que sempre podemos partir de fins estabelecidos? Em caso afirmativo, bastaria um saber técnico para estarmos a caminho de um futuro esplêndido, uma vez que a perspectiva de entendimento é muito maior entre técnicos do que entre homens de Estado. Somos tentados a responsabilizar as diretivas políticas dos governos pelo fracasso nos acordos das negociações internacionais nos assim chamados congressos de especialistas. É bem provável que isso não seja verdade. É verdade que existem âmbitos particulares onde o modo de proceder constitui uma questão de pura racionalidade das metas. Aqui o consenso entre especialistas parece fácil. Mas que grau de autocontrole já não estará atuando para que, mesmo no caso do consultor jurídico, a opinião do consultor possa restringir-se àquilo por que ele pode responsabilizar-se cientificamente? E bem provável que o consultor ideal, no sentido indicado, esteja nesse contexto forense em vias de tornar-se inútil, porque a necessidade de decidir, própria da justiça, obriga sempre de novo a trabalhar com constatações sem garantia irrevogável. Quanto mais decisivamente intervir o teor dos preconceitos sociais ou políticos dominantes, tanto mais ficcional parecerá o puro especialista e com ele o conceito de uma racionalidade cientificamente segura. Em todo âmbito das ciências sociais modernas deve-se admitir que elas não conseguem dominar o nexo entre meios e fins, sem dar preferência a determinados fins. Se explorássemos a fundo os condicionamentos internos dessas implicações, acabaria se mostrando a contradição entre a verdade atemporal, postulada pela ciência, e a estruturação temporal daqueles que usam a ciência. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.
Essa falta se evidencia no exagero quixotesco operado por Max Weber com relação à diferença entre a ciência destituída de valores e a decisão sustentada numa cosmovisão. O ideal de produção, à base do pensamento construtivista da ciência moderna, alcança aqui uma aporia. Talvez pudéssemos superar essa falta colocando em lugar do modelo do fazer o antigo modelo do governo. Governar não é fazer. Governar é, antes, um adaptar-se a circunstâncias. Dois momentos, intimamente ligados, perfazem a essência do governar: a manutenção de um equilíbrio, que oscila dentro de um espaço de jogo bem delimitado, e a condução, isto é, a determinação de um direcionamento do movimento que possibilite manter esse equilíbrio oscilante. Evidencia-se então que todo nosso planejar e fazer realiza-se dentro desse estado de equilíbrio instável, presente em todas as nossas condições de vida. Essa idéia de equilíbrio não é apenas uma das mais antigas concepções de ordem política, a partir de onde se delimita e define o grau de liberdade do sujeito ativo. Equilíbrio é uma determinação fundamental da própria vida. Nele enraízam-se todas as possibilidades indeterminadas e ainda não definidas do vivo. O homem da civilização técnica e científica está tão sujeito a ele quanto o mero vivente. No equilíbrio podemos observar a verdadeira condição da liberdade humana. O fator da vontade e do agir humanos só tem importância decisiva onde as forças mantêm o equilíbrio. Sabemos disso por causa da política. A conquista da liberdade de ação pressupõe a criação de um estado de equilíbrio. Também na ciência natural moderna ocorre algo parecido. Cada vez mais seguimos um sistema de regras, e sempre mais distantes de uma fé ingênua de poder representar esses sistemas de autocorreção do ser vivo com nossos recursos rudimentares. À medida, porém, que nossas investigações produzem conhecimentos, tornamo-nos [166] aptos a intervir, com recursos artificiais, no curso da natureza de um modo cada vez mais objetivo e adequado. Assim, em contraposição ao planejar e ao fazer, o modelo de conhecimento orientado pelo governar adquire cada vez mais importância. Mas mesmo esse modelo não pode encobrir seus pressupostos — o conhecimento das metas e da direção — , que presidem todo ato de governar. No exemplo sobre o poder dado ao piloto, Platão demarcou os limites de todo poder prático. Esse conduz seus passageiros à terra firme… mas se isso é ou não é bom para eles, ele não pode saber. Depois do assassinato de seu chefe, é possível que o piloto de Agamenão tenha sido acometido por muitas dúvidas. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.
Não precisamos, pois, demonstrar a tese de que todo entendimento é um problema de linguagem e de que o sucesso ou fracasso no entendimento só se obtém no elemento da condição de linguagem. Todos os fenômenos do entendimento, da compreensão e da incompreensão, que formam o objeto da assim chamada hermenêutica, representam um fenômeno de linguagem. Mas a tese que pretendo discutir dá um passo ainda mais radical. A tese afirma que não apenas o processo do entendimento entre os seres humanos, mas também o próprio processo da compreensão representa um acontecimento de linguagem mesmo quando se volta para algum aspecto fora do âmbito da linguagem ou escuta a voz apagada da letra escrita. Trata-se de um acontecimento de linguagem semelhante àquele diálogo interno da alma consigo mesma, que para Platão caracterizava a essência do pensamento. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14.
Ninguém nega que a linguagem exerce uma influência sobre nosso pensamento. Pensamos com e por palavras. Pensar significa sempre pensar alguma coisa. E pensar alguma coisa significa dizer algo para si. Nesse sentido, parece-me que Platão definiu com muita precisão a essência do pensamento, identificando-o com o diálogo da alma consigo mesma, um diálogo que é um constante superar — se, um retomar a si mesmo mediante dúvidas e objeções a suas próprias opiniões e juízos. E se há algo que caracteriza bem nosso pensar humano, é justamente esse diálogo infinito com nós mesmos, que não leva a nada definitivo. É isso que nos distingue daquele ideal de um espírito infinito, para o qual tudo que é e tudo que é verdadeiro se encontraria diante dele no abrir-se de um único instante vital. Ademais, a nossa experiência de linguagem, a nossa inserção crescente no diálogo interno conosco mesmos, esse que representa igualmente uma antecipação do diálogo com os outros e um envolvimento dos outros no diálogo conosco, essa experiência é onde o mundo se nos abre e ordena em todos os âmbitos de experiência. Isso significa, porém, que não temos outro caminho para a ordenação e orientação a não ser aquele que nos leva dos dados apresentados na experiência para pontos de orientação conhecidos pelo nome de conceito ou o universal, para o qual o que se dá a cada vez passa a ser considerado um caso particular seu. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 15.
Também no âmbito do pensamento filosófico, o fenômeno do diálogo e sobretudo aquela forma específica do diálogo entre duas pessoas desempenharam uma importante função, e talvez na mesma confrontação que acabamos de descobrir como um fenômeno cultural comum. Foi sobretudo a época romântica e seu renascimento no século XX que conferiu ao fenômeno do diálogo uma função crítica frente à funesta monologização do pensamento filosófico. Mestres do diálogo como Friedrich Schleiermacher, esse gênio da amizade, ou Friedrich Schlegel, cuja sensibilidade cativante era mais propícia a diálogos caudalosos do que a forma permanente aos conceitos, advogaram filosoficamente por uma dialética que atribuía ao modelo platônico de diálogo e de conversação uma primazia especial na busca da verdade. É fácil ver em que consiste [210] essa primazia. Quando duas pessoas se encontram e trocam experiências, trata-se sempre do encontro entre dois mundos, duas visões e duas imagens de mundo. Não é a mesma visão a respeito do mesmo mundo, como tenta comunicar o pensamento dos grandes pensadores com seu esforço conceitual e a elaboração de suas teorias. O próprio Platão não comunicou sua filosofia simplesmente em diálogos escritos em reconhecimento ao mestre do diálogo, Sócrates. Viu ali um princípio da verdade, segundo o qual a palavra só encontra confirmação pela recepção e aprovação do outro e que o pensamento que não viesse acompanhado do pensamento do outro seria inconseqüente e sem força vinculante. Cabe afirmar que todo ponto de vista humano tem algo de aleatório. O modo como alguém experimenta o mundo, pela visão, pelo ouvido e sobretudo pelo gosto permanece um mistério pessoal intransponível. “Quem pode mostrar um cheiro com os dedos?” (Rilke). Assim como nossa apercepção sensível do mundo é ineludivelmente privada, também nossos impulsos e nossos interesses individualizam-nos, e nossa razão, comum e capaz de apreender o comum a todos, permanece impotente diante dos ofuscamentos alimentados pela nossa individualidade. Assim, o diálogo com os outros, suas objeções ou sua aprovação, sua compreensão ou seus mal-entendidos, representam uma espécie de expansão de nossa individualidade e um experimento da possível comunidade a que nos convida a razão. Poderíamos imaginar toda uma filosofia do diálogo, partindo dessas experiências: o ponto de vista intransferível do indivíduo, onde se espelha a totalidade do mundo, e a totalidade do mundo que se apresenta nos pontos de vista individuais de todos os outros como um e o mesmo. A extraordinária concepção metafísica de Leibniz, admirada também por Goethe, foi de que a multiplicidade de espelhos do universo, representados pelos indivíduos, singulares, forma na sua totalidade um único universo. Isso se deixa configurar num universo do diálogo. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16.
Mas, para não falarmos sempre apenas desse sentido mais extremo e profundo de diálogo, devemos também considerar diversas formas de diálogo que ocorrem em nossa vida, agora ameaçados como discutimos em nosso tema. O primeiro é o diálogo pedagógico. Não que merecesse por si uma primazia especial, mas nele mostra-se de modo especial o que pode estar por trás da experiência da incapacidade para o diálogo. O diálogo entre professor e alunos é certamente uma das formas mais primitivas de experiência de diálogo, e aqueles carismáticos do diálogo de que falamos acima são todos mestres e professores que ensinam seus discípulos ou alunos através do diálogo. Na situação do professor reside uma dificuldade peculiar em manter firme a capacidade para o diálogo, na qual a maioria sucumbe. Aquele que tem que ensinar acredita dever e poder falar, e quanto mais consistente e articulado por sua fala, tanto [212] mais imagina estar se comunicando com seus alunos. É o perigo da cátedra que todos conhecemos. Recordo-me de meu tempo de estudante de um seminário que fiz com Husserl. Sabemos que o exercício do seminário costuma conter o máximo de diálogo investigativo possível e o mínimo possível de diálogo pedagógico. Husserl, que nos primeiros vinte anos como mestre de fenomenologia em Friburgo sentia-se movido por um profundo impulso missionário e exercia na realidade uma atividade filosófica de ensino muito significativa, não era nenhum mestre do diálogo. Ele abria aqueles seminários com uma questão inicial, recebia uma resposta curta e movido por essa prosseguia seu monólogo por duas horas seguidas. Quando ao final da reunião saía da sala junto com seu assistente, Heidegger, dizia a este último: “hoje, sim, tivemos realmente um debate animado”. São experiências desse tipo que nos dias de hoje colocaram em crise as preleções acadêmicas. A incapacidade para dialogar dá-se principalmente por parte do professor, e sendo o professor o autêntico transmissor da ciência, essa incapacidade radica-se na estrutura de monólogo da ciência moderna e da formação teórica. Em escolas superiores têm-se feito repetidas tentativas de animar as preleções através do debate, fazendo-se também a experiência contrária de que a passagem da posição receptiva de ouvinte para a iniciativa da pergunta e da oposição é extremamente difícil e raras vezes alcança êxito. Por fim, na situação de ensino, quando esta ultrapassa a intimidade de um pequeno círculo, reside uma dificuldade intransponível para o diálogo. Platão já sabia disso: o diálogo jamais se torna possível com muitas pessoas, nem pela simples presença de muitos. Nossas experiências com os chamados fóruns de conversação, esses diálogos em mesas semi-redondas, são também diálogos semimortos. Há também outras situações de diálogo autênticas, isto é, individualizadas, onde o diálogo conserva sua verdadeira função. Gostaria de distinguir três tipos diferentes: O diálogo para negociação, o diálogo terapêutico e o diálogo familiar. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16.
Isso tem conseqüências no que Heidegger ensinou sobre a produtividade do círculo hermenêutico. Eu próprio formulei esse princípio afirmando que, mais que nossos conceitos, são nossos preconceitos que perfazem nosso ser. Isso é uma formulação provocativa, uma vez que busca restituir o direito ao conceito positivo do preconceito que o Iluminismo francês e inglês expulsou do uso da linguagem. Pode-se mostrar que originalmente o conceito de preconceito ultrapassa o sentido que lhe damos à primeira vista. Os preconceitos não são necessariamente injustificados e errôneos, de modo a distorcer a verdade. Na realidade, o fato de os preconceitos, no sentido literal da palavra, constituírem a orientação prévia de toda nossa capacidade de experiência é constitutivo da historicidade de nossa existência. São antecipações de nossa abertura para o mundo, que se tornam condições para que possamos experimentar qualquer coisa, para que aquilo que nos vem ao encontro possa nos dizer algo. De certo, isso não significa que estejamos cercados por um muro de preconceitos, e que somente permitiríamos o acesso a quem mostrasse seu passaporte, contendo a seguinte inscrição: aqui não se diz nada de novo. Ao contrário, é bem-vindo o hóspede que promete nos trazer algo novo para nossa curiosidade. Mas como vamos reconhecer o hóspede, admitido na nossa companhia, que vai dizer-nos algo novo? Também nossa expectativa e [225] nossa disposição para ouvir o novo não são trazidas necessariamente pelo antigo, onde nos encontramos? A comparação deve servir como uma espécie de legitimação para justificar por que o conceito de preconceito, que contém uma relação interna profunda com o conceito de autoridade, necessita de uma reabilitação hermenêutica. Como toda comparação, também essa é caolha. A experiência hermenêutica não consiste em que algo esteja fora e cioso para entrar. Ao contrário, somos tomados por algo, e, em virtude disso que nos toma, sentimo-nos abertos para o novo, o outro, o verdadeiro. É o que nos mostra Platão com a bela comparação entre a comida para o corpo e o alimento espiritual: enquanto podemos recusar o primeiro, por exemplo, pelo conselho do médico, o segundo é sempre assimilado. VERDADE E METODO II OUTROS 17.
A primeira história da retórica foi escrita por Aristóteles. Restaram-nos apenas fragmentos. Aristóteles fez suas formulações, porém, seguindo um esquema projetado primeiramente por Platão. Por trás de todas as pseudo-reivindicações que faziam os retóricos de seu tempo, Platão descobriu uma tarefa autêntica, que apenas o filósofo, o dialético está em condições de resolver, a saber, dominar de tal modo o discurso que deve produzir evidências efetivas que os argumentos adequados a cada caso devem se aproximar daqueles que a alma é especificamente capaz de receber. Isso representa uma tarefa teoricamente esclarecedora, que implica, no entanto, dois pressupostos platônicos: o primeiro que só poderá encontrar [235] com segurança o pseudos “verossímil” do argumento retórico aquele que conhece a verdade, isto é, as idéias; e o segundo é que precisa conhecer na mesma proporção também as almas que deve influenciar. A retórica aristotélica é primeiramente uma elaboração do último tema. Nela realiza-se a teoria da adequação do discurso à alma, formulada por Platão no Fedro, na forma de uma fundamentação antropológica da arte do discurso. VERDADE E METODO II OUTROS 18.
A teoria da retórica foi o resultado de uma controvérsia preparada de há muito, desencadeada pela irrupção delirante e assustadora de uma arte do discurso e por uma idéia de educação que conhecemos pelo nome de sofística. Como um saber prático incrivelmente novo, que ensinava a colocar tudo de cabeça para baixo, essa arte passou da Sicília para uma Atenas firmemente estabelecida mas com uma juventude fácil de ser seduzida. Então, tinha-se que impor uma nova disciplina a esse grande déspota (como chama Górgias à arte do discurso). Desde Protágoras até Isócrates, a preocupação dos mestres não era apenas ensinar a discursar, mas também a formar uma consciência de cidadania justa, que prometia trazer êxito político. Mas foi só Platão que lançou as bases pelas quais a nova e revolucionária arte do discurso encontraria seus limites e seu legítimo posto, como nos descreveu exaustivamente Aristófanes. É o que nos testemunha também a dialética filosófica da academia platônica e a fundamentação aristotélica da lógica e da retórica. VERDADE E METODO II OUTROS 18.
Mas onde deveria se apoiar também a reflexão teórica sobre a compreensão, se não na retórica, a qual, desde a antiga tradição, representa o único advogado de uma pretensão de verdade que defende o verossímil, o eikos (verosimile)”? E o que se torna evidente pela razão comum contra a pretensão demonstrativa e de certeza da ciência? Persuadir e evidenciar sem lançar mão da demonstração é o objetivo e o parâmetro tanto da compreensão e da interpretação quanto da arte da persuasão e do discurso… e esse amplo domínio das convicções evidentes e das opiniões comuns reinantes não se restringe gradualmente pelo progresso da ciência, por maior que seja, mas estende-se antes a todo novo conhecimento da investigação, reivindicando-o como seu e adaptando-o para si. A ubiqüidade da retórica é ilimitada. Graças a ela a ciência se sociabiliza na vida. O que saberíamos sobre a física moderna, que transforma nossa vida a olhos vistos, se dependêssemos apenas dela? Todas as suas explanações que extrapolem o círculo de especialistas (e talvez tenhamos que dizer: à medida que não se restringem a um pequeno círculo de especialistas consagrados) devem seus efeitos ao elemento retórico que as sustenta. Como demonstrou sobretudo Henri Gouhier, mesmo Descartes, esse grande e apaixonado defensor do método e da certeza, enquanto escritor, lança mão largamente dos recursos da retórica em todos os seus escritos. Não pode haver dúvidas quanto à sua fundamental função dentro da vida social. Toda ciência que queira ser prática depende dela. Por outro lado, a função da hermenêutica não é menos universal. A incompreensibilidade e a existência de mal-entendidos presentes nos textos da tradição de que se ocupou originariamente a hermenêutica é apenas um caso especial do que se encontra em toda orientação humana no mundo como o atopon, o estranho que jamais se deixa enquadrar nas expectativas habituais da experiência. E assim como no progresso do conhecimento os mirabila acabam perdendo sua estranheza, à medida que são compreendidos, assim também toda apropriação exitosa da tradição ganha uma nova familiaridade própria, pela qual ela nos pertence e nós pertencemos a ela. Ambas confluem num único mundo próprio e compartilhado, que abarca a história e a atualidade, o qual encontra sua articulação de linguagem nos discursos entre os seres humanos. Também da parte da compreensão, portanto, a universalidade da estrutura da linguagem humana mostra-se como um elemento ilimitado que sustenta tudo, não somente a cultura transmitida pela linguagem, mas simplesmente tudo, porque tudo é assumido pela compreensibilidade na qual nos relacionamos uns com os outros. Platão pode tomar como ponto de partida legítimo o fato de que quem considera as coisas no espelho dos discursos assegura-se de sua plena e irrestrita verdade. E quando Platão ensina que todo conhecimento só é tal pelo reconhecimento, isso tem um sentido profundo e correto. Um “primeiro” conhecimento é tão impossível como uma primeira palavra. Também o conhecimento mais recente, cujas conseqüências ainda não são visíveis, só será o que realmente foi quando tiver se decantado nelas e tiver trilhado o caminho da mediação do entendimento intersubjetivo. VERDADE E METODO II OUTROS 18.
É verdade que a ciência moderna, desde o século XVII, suscitou um novo mundo, renunciando radicalmente ao conhecimento das substâncias e limitando-se ao projeto matemático da natureza [252] e ao emprego metodológico da medição e dos experimentos, para assim abrir a via construtiva para o domínio da natureza. Foi isso que impulsionou a expansão planetária da civilização técnica. Mas só em nosso século foi se acirrando cada vez mais, junto com os crescentes êxitos, a tensão entre nossa consciência do progresso científico e nossa consciência sociopolítica. Mesmo assim, o conflito entre esses saberes é um problema muito antigo. Custou a vida a Sócrates, quando pôs em evidência a ignorância do saber técnico e dos artesãos com relação ao verdadeiro saber, o bem. Isso se repetiu no portrait socrático que faz Platão. Platão empunha a bandeira da dialética, a arte de dialogar, não somente contra o saber limitado e especializado dos técnicos, mas até contra o mais elevado paradigma de toda ciência, a matemática, embora considere o domínio da matemática um pressuposto indispensável para quem quiser dedicar-se às últimas questões “dialéticas” sobre o verdadeiro ser e o bem supremo. VERDADE E METODO II OUTROS 19.
E mesmo onde se elaborou uma explicação fundamental sobre a diferença entre um saber produtivo (techne) e um saber prático (Phronesis), na Ética de Aristóteles, em muitos pontos não fica claro como se relaciona o saber político do homem de estado e do agente político com o saber técnico do especialista. E verdade que parece haver uma clara hierarquia entre eles, à medida que o general, sob o qual estão a serviço todas as outras “artes”, está ele próprio a serviço da paz, enquanto que o homem de estado atua em vista da felicidade de todos tanto na paz quanto na guerra. Mas a questão básica é esta: Quem é homem de estado? Será aquele especialista que alcança o topo da escala dos cargos políticos, ou o cidadão que como membro do verdadeiro soberano expressa sua decisão pelo voto (e que ao lado disso exerce ainda sua profissão “cidadã”)? No Cármides, Platão levou ao absurdo o ideal técnico de uma ciência política, que seria a ciência da ciência. E claro que não é viável compreender-se o saber em que se baseiam as decisões prático-políticas segundo o modelo do saber produtivo, considerando o saber sobre a produção da felicidade humana como o mais elevado saber técnico. Isso não pode ser ensinado, como já Platão gostava de demonstrar aos filhos dos grandes homens de Atenas, e como Aristóteles, que ensinava em Atenas, mesmo não sendo ateniense, qualificando como sofistas (e não como politólogos) e rechaçando os especialistas em fundações ideais do Estado e no estabelecimento de constituições, que vinham a Atenas. Na verdade, esses especialistas eram tudo, menos homens de estado, isto é, [253] cidadãos líderes em sua própria polis. Mas mesmo que isso tenha sido muito claro para Aristóteles e ele tenha elaborado magistralmente a própria estrutura do saber prático frente à estrutura do saber técnico, ficou em aberto ainda uma questão: Que tipo de saber é esse pelo qual Aristóteles chegou a essas distinções e as ensinava? E que tipo de saber é a ciência prática (e política)? VERDADE E METODO II OUTROS 19.
O que me interessa, penso que pode ser identificado como um velho problema que já Aristóteles tinha em mente em sua crítica à idéia geral do bem, de Platão. O bem humano é algo que encontramos na praxis humana e não pode ser determinado fora da situação concreta onde se prefere uma coisa à outra. Isso representa a experiência crítica do bem e não um consenso contrafáctico. Deve ser trabalhado e retrabalhado até a concretização da situação. Enquanto idéia geral, essa idéia da vida justa é uma idéia “vazia”. Ali radica-se o fato decisivo de que o saber da razão prática não é um saber que tenha consciência de sua superioridade frente ao ignorante. Ao contrário, dá-se aqui em todos e em cada um a pretensão de saber o que é justo para o todo. Mas para a convivência social das pessoas isso significa que precisamos convencer os outros. E precisamos convencê-los, de certo, não no sentido de que a política e a configuração da vida social sejam uma mera comunidade de diálogo, de modo a sentir-nos dependentes de um diálogo livre de coerções, à margem de todas as pressões de dominação, como o verdadeiro recurso terapêutico. A política exige da razão que re-conduza os interesses para a formação da vontade, e todas as informações sociais e políticas da vontade são dependentes da estrutura das convicções gerais construídas pela retórica. Isso implica — e creio que isso pertence ao conceito de razão — termos de contar sempre com a possibilidade de que a convicção do outro, seja no âmbito individual ou social, possa estar certa. O caminho da experiência hermenêutica, que, como gosto de reconhecer, elaborou em si conteúdos específicos da tradição cultural do Ocidente, levou-me a assumir um conceito com aplicação muito ampla. Refiro-me ao conceito de jogo. Não o conhecemos apenas das teorias lúdicas modernas da economia. Parece-me que reflete muito mais a pluralidade que acompanha o exercício da razão humana, assim como a pluralidade que conjuga as forças opostas na unidade de um todo. O jogo das forças complementa-se com o jogo das convicções, das argumentações e experiências. O esquema do diálogo, quando bem empregado, torna-se muito fecundo: no intercâmbio das forças e no confronto dos pontos de vista vai se construindo uma comunidade que ultrapassa o indivíduo e o grupo ao qual se pertence. VERDADE E METODO II OUTROS 19.
Desse modo, a tarefa da retórica deslocou-se para a hermenêutica, sem existir uma consciência expressa dessa mudança, e supostamente anterior à invenção do termo “hermenêutica”. Mesmo assim o grande legado da retórica continua influenciando em pontos decisivos no que diz respeito ao novo trabalho de interpretação dos textos. Assim como a verdadeira retórica, para o discípulo de Platão, é inseparável do conhecimento da verdade das coisas (rerum cognitio), sob pena de mergulhar numa absoluta nadidade, também para a interpretação dos textos representa o postulado óbvio de que estes contenham a verdade sobre as coisas. Isso já era uma evidência inquestionável para a primeira renovação da retórica durante a época humanista, que estava totalmente regida pelo ideal da imitatio; agora aplica-se inteiramente à nova virada rumo à hermenêutica que é o objeto de nosso estudo. Isso porque tanto em Melanchton, quanto no primeiro fundador da hermenêutica protestante, Flacius Illyrucius, a controvérsia teológica sobre a compreensibilidade da Sagrada Escritura constitui o fundamento motivador. Nesse sentido, não podemos perguntar se a arte da compreensão tem por objeto também o descobrimento do verdadeiro sentido de um enunciado errôneo. Isso só vai mudar com o incremento da consciência metodológica no século XVII — sob a influência de Sabarella — , que modifica também o apoio teórico-científico da hermenêutica. É o que observamos em Dannhauer, que faz da retórica um anexo e busca fundamentar a nova retórica na retórica aristotélica. Mas isso não significa que, do ponto de vista do conteúdo, Dannhauer não dependesse da tradição retórica, que continuava paradigmática na exposição dos textos. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
Numa análise mais precisa, vemos que aqui se esgrimem as metáforas conceituais clássicas da retórica contra a submissão dogmática da Escritura sob a autoridade magisterial da Igreja. Flacius apresenta o scopus como a cabeça ou o rosto do texto que se [287] manifesta às vezes já no título, mas que aflora sobretudo nas linhas-mestras da exposição do pensamento. Desse modo assume e elabora a antiga perspectiva retórica da dispositio. Há que se olhar com cuidado onde, para usar essa imagem, está a cabeça, o peito, as mãos ou os pés, e como os distintos membros e partes se conjugam com o todo. Flacius chega a falar de uma “anatomia” do texto. Aqui está o Platão mais autêntico. Em lugar da mera justaposição de palavras e frases, cada discurso deve organizar-se como um ser vivo, deve ter seu próprio corpo, de modo que não lhes faltem a cabeça nem os pés, mas que os membros centrais e as extremidades se relacionem entre si em boa harmonia e remetam à totalidade. É isso o que diz o Fedro (264 c). Também Aristóteles segue esse esquema conceitual retórico quando em sua Poética descreve a construção de uma tragédia: hosper zoon hen holon. A expressão “isso não tem pés nem cabeça” pertence a essa mesma tradição. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
Uma das teses do Platão mais autêntico (tese que Aristóteles comentou e buscou fundamentar) também é que a essência da retórica não se esgota nessas artes que se podem formular como regras técnicas. Aquilo que fazem os mestres de retórica, criticados por Platão no Fedro, é algo que está “aquém” da verdadeira arte. Pois a autêntica arte da retórica é inseparável do conhecimento da verdade e do conhecimento da “alma”. Platão refere-se ao estado anímico do ouvinte, cujos afetos e paixões o discurso deve despertar para poder persuadir. Esse é o ensinamento do Fedro, e toda a retórica segue assim o princípio do argumentum ad hominem no trato cotidiano com as pessoas até os nossos dias. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
Por mais adequada que seja essa exposição da idéia de hermenêutica por Dannhauer, a perspectiva que persegue Jaeger me parece unilateral. A consideração do conjunto do material filológico que nos traz o douto autor, e especialmente a aparição antiga da palavra, não nos leva à lógica e à teoria da ciência. O campo referencial da palavra remete-nos antes ao âmbito da retórica. Como isso não corresponde à intenção do autor, permito-me destacar esse aspecto da questão utilizando o material apresentado por ele. Em primeiro lugar, a já conhecida ocorrência da palavra na obra platônica Epinomis (84, nota 160). Não se pode duvidar, apelando ao paralelismo com a mântica, de que se trata aqui de um uso real da linguagem. A palavra refere-se ao trato com os deuses, que não é tão simples que pudesse interpretar o significado de seus sinais sem o recurso da arte. Ignoro por que o autor não simpatiza com essa passagem. Ninguém afirma que Platão a considere como uma arte muito nobre. Mas isso não tem importância aqui. É inegável que se trata aqui da mesma tarefa proposta à hermenêutica humanista, admitida também por Jaeger, mas também à hermenêutica mais recente que ele repudia: vir a compreender o que não se compreende (a situação fundamental na atividade do intérprete). VERDADE E METODO II OUTROS 21.
Frente à dialética platônica, entendida como um saber teórico, Aristóteles reivindicou para a filosofia prática uma autonomia peculiar e iniciou uma tradição que exerceria sua influência até o século XIX a dentro, e acabaria sendo dissolvida no século XX pela “ciência política” ou “politologia”. Mas, apesar de toda determinação com que Aristóteles apresenta a idéia da filosofia prática contra a ciência unitária da dialética de Platão, o aspecto teórico-científico da chamada “filosofia prática” permaneceu na penumbra. Algumas iniciativas que se estendem até os nossos dias buscam ver no “método” da ética aristotélica, introduzida por ele como “filosofia prática” e na qual a virtude da racionalidade prática, a phrone-sis, ocupa um lugar central, nada mais que um exercício de racionalidade prática. (O fato de toda ação humana, e portanto também a exposição dos pensamentos aristotélicos sobre a filosofia prática, estar sujeita aos critérios da racionalidade prática nada diz sobre o que seja o método da filosofia prática.) A discussão sobre esses pontos não deve causar muita surpresa, uma vez que os enunciados gerais aristotélicos sobre a metodologia e a sistemática das ciências são bastante escassos e contemplam menos a natureza metodológica das mesmas do que a diversidade de âmbitos de seus objetos. Isso vale sobretudo para o primeiro capítulo da Metafísica E e sua duplicação em K 7. Decerto, nela destaca-se a física (e em última instância a “filosofia primeira”), como ciência teórica, frente à ciência prática e poiética. Mas se examinarmos o modo de fundamentar a distinção entre as ciências teóricas e as não teóricas, veremos que se fala unicamente da diversidade dos objetos desse saber. Ora, isso corresponde sem dúvida ao princípio geral metodológico de Aristóteles, segundo o qual o método deve reger-se sempre por seu objeto, e o tema aparece claro no que se refere aos objetos. No caso da física, seu objeto caracteriza-se pelo automovimento. O objeto do saber produtivo, ao contrário, a obra a ser criada, tem sua origem no fabricante e em seu saber e poder. Igualmente o que orienta o sujeito na ação prática política é determinado a partir do próprio sujeito e de seu próprio saber. Poderia parecer que Aristóteles está falando aqui do saber técnico (o do médico, por exemplo) e do saber prático daquele que toma uma decisão racional (prohairesis), como se esse saber, ele mesmo, constituísse a ciência poiética ou prática que corresponde à física. É claro que não é o caso. As ciências que se distinguem aqui (junto com a distinção teórica entre física, matemática e teologia) aparecem como ciências que buscam conhecer os archai e as aitiai. Trata-se de uma investigação da arche, ou seja, não do saber aplicado do médico, do artesão ou do político, mas do que se pode dizer e ensinar em geral. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
O que é a retórica enquanto ciência, o que constitui portanto a arte da retórica, é um problema que foi abordado já nos inícios da reflexão sobre a teoria da ciência. O conhecido antagonismo entre filosofia e retórica no sistema educativo grego fez Platão colocar a questão do caráter científico da retórica. Depois de ter comparado, no Górgias, a retórica, enquanto mera arte de adular, com a arte culinária, contrapondo-a ao verdadeiro saber, Platão se dedica no Fedro à tarefa de conferir à retórica um sentido mais profundo e dar-lhe uma justificação filosófica. Esse diálogo pergunta o que significa a techne na retórica. As perspectivas do Fedro aparecem ainda implícitas na retórica aristotélica, que representa mais uma filosofia da vida humana definida pela fala do que uma técnica da arte de falar. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Essa retórica compartilha com a dialética a universalidade de seu postulado, porque não se limita a um âmbito determinado, como o saber especializado de uma techne. Isso explica o fato de [306] ela competir com a filosofia e ter podido rivalizar com esta como uma propedêutica universal. O Fedro busca mostrar que essa retórica ampliada, se é que deve superar a estreiteza de uma mera técnica regrada, que segundo Platão só contém ta pro tes technes anankaia mathemata (Faidros, 269b), deve dissolver-se no final em filosofia, na globalidade do saber dialético. Essa demonstração interessa-nos aqui, pois o que disse o Fedro em favor da retórica, elevando-a de uma mera técnica para um verdadeiro saber (que Platão chamou de techne), deve poder estender-se também à hermenêutica como arte da compreensão. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Ora, é uma opinião amplamente aceita que Platão compreendeu a dialética, quer dizer, a própria filosofia como uma techne e destacou sua peculiaridade frente ao resto das technai unicamente no sentido de que é o saber do supremo, inclusive o saber da coisa suprema que é preciso conhecer: o bem (megiston mathema). Podemos dizer o mesmo, mutatis mutandis, da retórica filosófica postulada por ele e portanto de toda a hermenêutica. Só Aristóteles teria encontrado a importante distinção entre ciência, techne e racionalidade prática (phronesis). VERDADE E METODO II OUTROS 22.
A concepção da filosofia prática baseia-se de fato na crítica aristotélica à idéia do bem de Platão. Mas uma análise mais atenta, como tentei demonstrar numa investigação já concluída, irá descobrir que a questão do bem se coloca como se fosse a realização suprema daquela mesma idéia do saber que perseguem as technai e as ciências em suas esferas respectivas. Mas essa questão não se materializa realmente numa ciência suprema que se possa aprender. Esse objeto supremo de aprendizagem que é o bem (to agathon) aparece sempre no elencos socrático com uma função negativa de demonstração. Sócrates nega que as technai constituam um verdadeiro saber. Seu saber específico é a docta ignorantia e se chama, não por acaso, dialética. Só sabe realmente aquele que consegue ir até o fim do discurso e da resposta. Assim também quanto à retórica, esta só poderá ser techne ou ciência na medida em que se tornar dialética. Só pode falar realmente com autoridade aquele que conheceu como bom e justo aquilo que ele deve comunicar de modo convincente, podendo portanto responsabilizar-se por isso. Mas esse saber do bem e essa capacidade retórica não designam um saber geral “do bem”, mas o saber daquilo que deve ser aqui e agora objeto de persuasão. Mas deve saber igualmente o modo de fazer isso e frente a quem deve fazê-lo. É só quando se conhece a situação concreta exigida pelo saber a respeito do bem que se pode compreender por que a arte de escrever discursos desempenha essa função na argumentação mais ampla. Escrever discursos [307] também pode ser uma arte. É o que reconhece expressamente Platão com sua virada conciliadora rumo a Isócrates. Mas alguém só poderá adquirir essa arte se, além da debilidade da palavra falada, conhecer também a debilidade de todo escrito, podendo assim vir em seu auxílio, como o dialético que sustenta o discurso socorre a debilidade de todo discurso. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Isso é apresentado de maneira muito aguda e simpática no Fedro de Platão (268s): aquele que possui todos os conhecimentos médicos e as regras de conduta, mas ainda não sabe quando e onde aplicá-los, não é um médico. O trágico ou o músico que aprendeu apenas as regras e os procedimentos gerais de sua arte, mas não criou com eles uma obra, não é um literato ou um músico (280 bs). Também o orador deve conhecer o lugar e o tempo de todas as coisas (hai eukairiai te kai akairiai, 272 a 6). Nesse ponto, Platão já sugere uma superação do modelo de ciência inspirado na techne, ao transferir o supremo saber para a dialética. Nem o médico, nem o poeta e nem o músico conhecem “o bem”. O dialético ou o filósofo verdadeiro, que não é sofista, não “possui” um saber especial, mas é em sua pessoa a materialização da dialética ou da filosofia. Nessa linha, também no diálogo sobre o estadista aparece a arte política como uma espécie de arte têxtil que permite compor com o oposto numa unidade (305 e). Essa arte aparece personificada no estadista. Também no Filebo, o saber sobre à “vida honesta” representa a arte da composição ou mescla que o indivíduo desejoso da felicidade deve realizar. Ernst Kapo comentou essa idéia no que diz respeito ao estadista num belo trabalho, e meus próprios estudos iniciais de crítica à construção histórico-evolutiva de Werner Jaeger detectavam algo similar no Filebo. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Sobre esse fundo é preciso ver a distinção entre filosofia teórica, filosofia prática e filosofia poiética, que se inicia em Aristóteles e deve determinar o grau teórico-científico de sua filosofia prática. [308] O destaque dialético que Platão confere à retórica no Filebo é um bom indicador. A retórica é inseparável da dialética; a persuasão, que é um convencer, é inseparável do conhecimento da verdade. Assim mesmo, a compreensão deve ser concebida a partir do saber. E uma capacidade de aprendizagem, e isso o sublinha ainda Aristóteles quando trata da synesis. Pois bem, o verdadeiro orador dialético, tanto quanto o estadista e qualquer um que busque conduzir sua própria vida, persegue “o bem”. Mas o bem não se apresenta como um ergon, produzido pelo fazer, mas como praxis e eupraxia (quer dizer, como energeia). Nessa linha, a política aristotélica não trata a educação como uma filosofia poiética, embora tenha de “fazer” bons cidadãos. Trata-a, antes, como teoria das formas de constituição enquanto filosofia prática. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Quando partimos da panorâmica do desenvolvimento da hermenêutica moderna e remontamos à tradição aristotélica da filosofia prática e da teoria da arte, é necessário perguntarmos até que ponto a tensão existente em Platão e Aristóteles entre um conceito técnico de ciência e um conceito prático-político, que inclui os fins últimos do ser humano, pode ser útil no terreno da ciência moderna e de sua teoria. No que se refere à hermenêutica, é natural confrontarmos a dissociação entre teoria e praxis — que corresponde ao conceito moderno de ciência teórica e a sua aplicação prático-técnica — com uma idéia do saber que percorreu o caminho inverso, partindo da praxis para alcançar sua conscientização teórica. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Essas reflexões permitem perfilar com precisão a questionada descrição inicial da tarefa da filosofia prática e política. O que Burnet considerou uma adaptação de Aristóteles ao uso de linguagem que faz Platão do termo technesl tem seu verdadeiro fundamento na interferência que existe entre o saber “poiético” da techne e a “filosofia prática” que estuda “o bem” dentro de uma generalidade típica. Essa filosofia prática como tal não é a phronesis. Praxis, prohairesis, techne e methodos aparecem também aqui numa seqüência e formam de certo modo um contínuo de transições. Mesmo assim, Aristóteles reflete também sobre o papel que pode desempenhar a politike na vida prática. Compara o postulado dessa pragmática com o ponto que o arqueiro toma como mira quando aponta para o objetivo da caça. Com esse ponto na mira acertará melhor. Isso não significa que a arte do tiro a arco consista somente em apontar para esse ponto. Deve-se dominar, antes, essa arte para poder acertar. Mas o ponto pode ser útil para facilitar a pontaria, para manter a direção do disparo com mais precisão. Aplicando essa imagem à filosofia prática, também aqui devemos partir do princípio de que o ser humano se guia, em suas decisões concretas, de acordo com seu ethos, pela racionalidade prática e para isso não depende das orientações de um mestre. Também aqui a pragmática ética pode oferecer certa ajuda para se evitar conscientemente os erros, fazendo com que a reflexão racional tenha consciência dos objetivos últimos de sua ação. Essa pragmática não se limita a um campo particular. Também não é a aplicação de uma faculdade a um objeto. Pode desenvolver métodos — são regras práticas mais que métodos — e pode converter-se em verdadeira maestria num indivíduo determinado. Mas, apesar disso, não é uma “faculdade” que escolhe cada vez (por conta própria ou a pedido) sua tarefa como uma capacidade técnica. Apresenta-se, antes, como a praxis da vida a apresenta. Assim, a filosofia prática de Aristóteles difere do saber técnico supostamente neutro do especialista, que aborda [317] as tarefas da política e da legislação como um observador distante. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Esse é o ensinamento inequívoco de Aristóteles no capítulo que passa da ética à política. A filosofia prática pressupõe já estarmos conformados pelas idéias normativas nas quais fomos educados e que sustentam a ordem de toda vida social. De modo algum isso significa que essas perspectivas normativas sejam imutáveis, não podendo ser criticadas. A vida social consiste num processo constante de reajuste das vigências existentes. Mas a tentativa de derivar in abstracto as idéias normativas e dar-lhes validade com o pretexto de sua retidão científica não passa de uma ilusão. Trata-se, pois, de um conceito de ciência que não preconiza o ideal do observador distante, mas que impulsiona a conscientização do elemento comum que vincula a todos. Em meus trabalhos, empreguei esse ponto às ciências hermenêuticas, sublinhando a pertença do intérprete ao interpretandum ou ao objeto a ser interpretado. Aquele que busca compreender algo já traz consigo uma antecipação que o liga com o que busca compreender, um consenso de base. Assim, o orador deve ligar-se sempre a essa antecipação se quiser ter sucesso na persuasão e convencimento sobre questões discutidas. Também a compreensão da opinião do outro ou de um texto se realiza dentro de uma relação de consenso, apesar de todos os possíveis mal-entendidos, e busca o entendimento acima de qualquer dissenso. A praxis de uma ciência viva segue essa mesma linha. Essa praxis também não é uma mera aplicação de um saber e de métodos a um objeto qualquer. Só quem adota a perspectiva de uma ciência é que sente a premência das questões. Todo historiador das ciências sabe até que ponto os problemas pessoais, as experiências intelectuais, as necessidades e esperanças de uma época determinam a orientação e o interesse da ciência e da investigação. Mas a antiga pretensão de universalidade atribuída por Platão à retórica se prolonga sobretudo no âmbito das ciências compreensivas, cujo tema universal é o homem imerso nas tradições. Desse modo, pode-se aplicar à hermenêutica a mesma afinidade com a filosofia que representou o resultado provocativo da discussão do Fedro sobre a retórica. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Isso não significa que se menospreze ou se limite o rigor metodológico da ciência moderna. As denominadas “ciências hermenêuticas” ou “ciências do espírito” estão sujeitas aos mesmos critérios [318] de racionalidade crítica que caracteriza o método de todas as ciências, embora seus interesses e procedimentos sejam substancialmente diversos dos que animam as ciências naturais. Mas podem apelar com razão sobretudo para o paradigma da filosofia prática, que em Aristóteles poderia ser chamada também de “política”. Aristóteles classificou essa ciência como “a ciência mais arquitetônica”, uma vez que reunia em si todas as ciências e artes do saber antigo. A própria retórica pertencia a ela. A pretensão universal da hermenêutica consiste assim em ordenar todas as ciências, em captar as chances de êxito cognitivo de todos os métodos científicos, sempre que possam ser aplicados a objetos, e em utilizá-los em todas as suas possibilidades. Mas se a “política”, enquanto filosofia prática, é algo mais que uma técnica suprema, o mesmo podemos dizer da hermenêutica. Tudo que as ciências podem conhecer, a hermenêutica deve levá-lo à relação de consenso, onde todos nós estamos. Uma vez que inclui a contribuição das ciências nessa relação de consenso que nos liga com a tradição legada a nós numa unidade vital, a própria a hermenêutica não é um simples método nem uma série de métodos, como ocorreu no século XIX desde Schleiermacher e Boeckh até Dilthey e Emilio Betti. Nesse período, a hermenêutica se converteu em teoria metodológica das ciências filológicas. A hermenêutica é antes filosofia. Não se limita a prestar conta dos procedimentos que a ciência aplica. Trata igualmente das questões prévias à aplicação de qualquer ciência — como a retórica, tematizada por Platão. Trata-se das questões que determinam todo o saber e o fazer humanos, essas questões “máximas” que são decisivas para o ser humano enquanto tal e para sua escolha do “bem”. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Contra meus trabalhos intelectuais, Theodor Litt provavelmente objetaria que uma justificação filosófica das ciências do espírito, apoiada no modelo aristotélico de phronesis, deve admitir um a priori que não pode ser simplesmente o resultado de uma universalização empírica. A filosofia prática de Aristóteles se equivocaria se fundamentasse seu princípio no “que” (dass), sem reconhecer que ela própria, enquanto filosofia, como um querer saber teórico, não pode depender de algo que aparece na experiência como um ethos concreto e como uma razão que atua praticamente. Litt atinha-se, pois, à reflexão transcendental que guiara também Husserl e o Heidegger de Ser e tempo. Mas pareceu-me e continua parecendo que esse procedimento, embora justificado frente a uma [329] teoria empirista-indutivista, esquece que essa reflexão encontra seu fundamento e sua limitação na práxis da vida donde provém sempre. Essa constatação impede o acesso a uma reflexão que se aventura num escalonamento idealista até o “espírito”. Creio que a cautela aristotélica e a autolimitação de sua idéia do bem encontram sua justificação na vida humana, e que impõem de maneira justa — quem sabe com Platão — ao pensamento filosófico a vinculação à sua própria finitude. Essa vinculação se impõe no modo como nós experimentamos a finitude, ou seja, dentro de nosso condicionamento histórico. Esse pensamento filosófico, porém, não é de princípio nenhuma mera generalização empirista. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
No fundo, essa experiência fundamental é válida também para a filosofía e sua historia. Isso pode ser aprendido não apenas em Platão, que escreveu somente diálogos e não textos dogmáticos. Através daquilo que o próprio Hegel caracterizou como o especulativo na filosofia, que forma a base de sua própria consideração da historia da filosofía, somos constantemente desafiados, a meu ver, a buscar expressar isso mesmo num método dialético. Meu esforço foi no sentido de estabelecer o caráter inconcluso de toda experiência de sentido e tirar conclusões para a hermenêutica partindo da idéia heideggeriana da relevância central da finitude. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
Aqui percebemos uma limitação do modelo grego, já denunciada criticamente no Antigo Testamento, em Paulo, em Lutero e em seus inovadores modernos. Na famosa descoberta do diálogo socrático como forma básica de pensamento, esta dimensão no diálogo não ganha consciência conceitual. Isso se explica em parte porque um escritor com a imaginação poética e a força de linguagem como Platão soube descrever a figura carismática de seu Sócrates de modo a deixar transparecer a pessoa e a tensão erótica que dele emana. Mas quando insiste na explicitação do diálogo, convencendo os outros de sua ignorância e atraindo-os inclusive para a sua causa, esse seu Sócrates pressupõe que o logos é comum a todos e não exclusividade sua. Como foi dito, a profundidade do princípio dialogai somente alcançou a consciência filosófica no ocaso da metafísica, na época do romantismo alemão, e se impôs novamente no século XX em contraposição ao idealismo e seu atrelamento ao sujeito. Esse é meu ponto de partida. Nesse contexto, pergunto como a comunidade de sentido que se produz no diálogo cria intermediação com a opacidade da alteridade do outro, e o que é em última instância a estrutura da linguagem: é uma ponte ou uma barreira? Uma ponte para a comunicação de um com o outro e construir [337] identidades sobre o rio da alteridade, ou uma barreira que limita nossa auto-entrega e nos priva da possibilidade de expressar-nos e comunicar-nos plenamente. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
Decerto, o interesse do historiador é seguir e investigar, na formação do jogo da arte, os traços e as relações que o entrelaçam com sua época. Parece-me, no entanto, que Carl Schmitt menospreza a dificuldade dessa tarefa, legítima para o historiador. Ele crê poder reconhecer uma ruptura no jogo, através de cuja abertura transparece a realidade contemporânea, deixando entrever a função contemporânea da obra. Esse procedimento, porém, está cheio de ganchos metodológicos, como nos ensinou o exemplo da investigação de Platão. Mesmo que seja fundamentalmente correto desconectar os preconceitos de uma pura estética da vivência e inserir o jogo da arte e seu contexto histórico-temporal e político, parece-me errado encorajar alguém a ler o Hamlet como um romance policial. Creio que aqui não se dá uma irrupção do tempo no jogo, que seria reconhecível no jogo como uma ruptura. Para o próprio jogo não há contradição entre tempo e jogo, como admite Carl Schmitt. O jogo inclui e relaciona, ao contrário, o tempo junto com, e em seu jogo. Essa é a grande possibilidade da poesia, através da qual ela pertence a seu tempo e este a escuta. Nesse sentido geral, também o drama de Hamlet pode ser visto em sua atualidade política. Mas se, de sua leitura, deduzirmos que o poeta toma ocultamente partido a favor de Essex e Jakob, será difícil provar isso pela própria poesia. Mesmo que o poeta realmente estivesse entre os que tomam esse partido, o jogo produzido por sua poesia [380] deveria esconder de tal modo seu partidarismo, que mesmo a agudeza intelectual de Carl Schmitt fracassaria diante disso. O poeta que queira alcançar seu público deve levar em consideração que entre seu público encontra-se também o partido contrário. O que temos aqui, na verdade, é a irrupção do jogo no tempo. Ambíguo como é, o jogo só pode desencadear seu efeito imprevisível em jogando-se. Por sua própria essência, o jogo não pode ser um instrumento de fins mascarados, os quais teríamos de entrever para poder compreendê-lo de modo unívoco; enquanto jogo, permanece em uma ambigüidade insolúvel. A ocasionalidade presente nele não é uma referência preestabelecida, a única que poderia conferir significado a tudo. É, antes, a capacidade enunciativa da própria obra que consegue corresponder a cada ocasião. VERDADE E METODO II ANEXOS EXCURSO II
E claro que ele não irá gostar muito de ouvir isso, pois toda metafísica da história, e mesmo a de Hegel, segundo ele não passaria de um sistema classificatório (276), sem valor de verdade propriamente histórico. Por outro lado, não ficou claro para mim como a sua tese de um historicismo radical se conecta e concorda com sua teoria do re-enactment, uma vez que também considera, e creio que com razão, que o próprio historiador é parte do processo histórico que está pesquisando e que só pode observar esse processo a partir do posto que ele próprio ocupa (260). Como é que se pode conciliar isso com a defesa da reprodução de um “pensamento” da tradição, que Collingwood ilustra no exemplo da crítica ao sensualismo, no Teeteto de Platão? Temo que o exemplo seja falso e demonstre exatamente o contrário. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
No Teeteto, quando Platão apresenta a tese de que o conhecimento é exclusivamente percepção sensível, seguindo a Collingwood, como leitor atual, não consigo reconhecer o contexto que o levou a essa tese. No meu modo de pensar, creio que o contexto para isso é outro: a discussão gerada pelo sensualismo moderno. Essa idéia também não sofre nenhum prejuízo pelo fato de tratar-se de um “pensamento”. Um pensamento pode ser inserido em diversos contextos sem perder sua identidade (315). Gostaríamos de lembrar a Collingwood, aqui, a crítica à discussão sobre o statement de Oxford, em sua própria “Logic of Question and answer”. Creio, na verdade, que só será possível a reprodução do pensamento de Platão, quando se tiver compreendido o verdadeiro contexto platônico (o de uma teoria matemática da evidencia, que pelo que me consta ainda não tem total clareza sobre o modo de ser inteligível do matemático). Será possível compreendermos esse contexto se não suspendermos expressamente os preconceitos do sensualismo moderno? VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Não é por acaso que já um dos primeiros trabalhos de Leo Strauss, que trata da crítica da religião spinoziana (Die Religionskritik Spinozas — 1930), se ocupa dessa querela. Toda a imponente obra de sua vida de erudito está consagrada à tarefa de desdobrar novamente essa querela em um sentido novo e mais radical, isto é, contrapor a justeza luminosa da filosofia clássica à autoconsciência histórica moderna. O questionamento de Platão a respeito do Estado optimal, e mesmo a ampla empiria política de Aristóteles que sustenta a primazia dessa questão, têm muito pouco a ver com o conceito de política que domina o pensamento moderno desde Machiavell. Em seu livro agora também acessível em tradução alemã, Naturrecht und Geschichte (Direito natural e história), Strauss parece remontar à figura oposta da moderna concepção histórica de mundo, ou seja, ao direito natural. Mas o verdadeiro sentido de seu livro também é esclarecer que os clássicos gregos da filosofia, Platão e Aristóteles, são os verdadeiros fundadores do direito natural e não deixar que se sustente a validade filosófica do direito natural estóico nem do medieval, sem falar do da época do Iluminismo. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
E claro que o próprio Strauss não imagina poder empreender essa tarefa do mesmo modo que o fez Platão, por exemplo, ao criticar a sofística. Ele próprio está tão amplamente inserido e familiarizado na consciência histórica moderna, que o direito da filosofia clássica não pode ser postulado e representado por ele de modo “ingênuo”. Nesse sentido, sua própria argumentação contra o que chama de historicismo edifica-se ela própria sobre um fundamento histórico. Apela para o fato de que (também Löwith repete esse apelo) o próprio pensamento histórico está sujeito a condicionamentos históricos para poder surgir. Isso vale tanto para as formas de historicismo ingênuo, isto é, para a formação do sentido histórico no estudo da tradição, quanto para as formas refinadas do mesmo, que pensam também a própria existência do sujeito conhecedor em sua historicidade. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Se pudermos dar crédito a Platão, será interessante notar não só que a interpretação dos poetas foi feita tanto por Sócrates quanto por seus adversários sofistas. Mais importante é o fato de toda a dialética platônica ter sido expressamente relacionada pelo próprio Platão com a problemática da literatura escrita, e que, mesmo no âmbito da realidade do diálogo, a dialética assume, não raro, expressamente um caráter hermenêutico, seja porque se introduza a conversação dialética por uma tradição mítica de sacerdotes e sacerdotisas, seja pelos ensinamentos de Diotima ou simplesmente pela constatação de que os antigos não teriam se preocupado se nós compreendemos ou não, e por isso ter-nos-iam deixado sem ajuda, como diante de uma lenda. Devemos considerar também a posição inversa: Até que ponto os próprios mitos de Platão fazem parte do curso da preocupação dialética, possuindo assim, eles próprios, caráter de interpretação? Assim, a partir dos impulsos dados por Hermann Gundert, a construção de uma hermenêutica platônica poderia ser sumamente instrutiva. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Mas ainda mais importante que isso seria uma análise de Platão como objeto de reflexão hermenêutica. A obra de arte dialógica contida nos escritos de Platão ocupa um lugar peculiar, no centro, entre a multiplicidade das máscaras da poesia dramática e a autenticidade do escrito doutrinário. Nesse sentido, os últimos decênios contribuíram para a formação de uma consciência hermenêutica mais elevada. O próprio Strauss surpreende, em seus trabalhos, com muitas mostras de brilhante decifração das relações de significado ocultas no decurso dos diálogos platônicos. Por mais que tenham nos ajudado a análise formal e outros métodos filológicos, a verdadeira base hermenêutica é a nossa própria relação com os problemas temáticos de que trata Platão. Mesmo a ironia artística de Platão (como qualquer ironia) só pode ser compreendida por quem está por dentro dos temas que ele trata. A conseqüência é que essas interpretações decifradoras permanecem “inseguras”. Sua “verdade” não pode ser demonstrada “objetivamente”, a não ser a partir daquele acordo temático que nos liga com o texto interpretado. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
No mais, indiretamente, Strauss deu uma ampla e importante contribuição para a teoria hermenêutica através de sua investigação sobre um problema específico: saber até que ponto se deve levar em conta a tergiversação consciente da verdadeira opinião na compreensão de textos, quando se está sob a violência de ameaças de perseguição da autoridade ou da Igreja. Foram estudos sobre Maimônides, Halevy e Spinoza, sobretudo, que deram impulso e esse modo de consideração. Não quero pôr em dúvida as [421] interpretações de Strauss, pois parecem amplamente evidentes. Mesmo assim, gostaria de apresentar uma consideração oposta, cuja razão pode ser duvidosa nesses casos, mas que se justifica plenamente em outros casos, como em Platão. A dissimulação consciente, a tergiversação e o fato de esconder a própria opinião não são na verdade o caso extremo, raro de acontecer, de uma situação normal e corriqueira? Do mesmo modo, a perseguição (autoritária ou eclesial, inquisição etc.) não passa de um caso extremo, em comparação com a pressão, deliberada ou não, que a sociedade e a publicidade exercem sobre o pensamento humano. Quando tivermos plena consciência de que um e outro lado não se diferenciam a não ser por uma diferença de grau, então poderemos sentir a dificuldade hermenêutica do problema proposto por Strauss. E como poderemos chegar a uma constatação inequívoca da dissimulação? Desse modo, quando encontramos proposições contraditórias em um autor, não faz sentido tomar as proposições escondidas e ocasionais como expressão de sua verdadeira opinião, como pensa Strauss. Existe também um conformismo inconsciente no espírito humano que tende a tomar por realmente verdadeiro tudo que no geral se mostra como evidente. Existe, por outro lado, também uma tendência inconsciente de experimentar possibilidades extremas, mesmo que nem sempre se deixem conjugar com um todo coerente. O extremismo experimental de Nietzsche é um testemunho irrefutável. O caráter de contraditoriedade pode até ser um critério de verdade privilegiado, mas infelizmente não representa critério algum dentro da atividade hermenêutica. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Strauss propõe uma frase, de princípio evidente, afirmando que se um autor apresenta contradições tão patentes que podem ser facilmente reconhecidas por um garoto secundarista, estas teriam sido escritas deliberadamente e até determinadas para ser assim reconhecidas. Mas creio que aplicar esse exemplo aos assim chamados erros de argumentação do Sócrates de Platão seria um erro muito grande. A razão disso não é porque ali estaríamos ainda nos inícios da lógica (quem pensa assim está confundindo pensamento lógico com teoria lógica). A razão está antes em que a essência de uma conversação fiel à coisa em questão deve assumir também o ilógico. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Essa questão tem conseqüências hermenêuticas gerais. Trata-se do conceito da intenção do autor. Não vou levar em conta a posição auxiliar que a jurisprudência poderia oferecer aqui com sua doutrina da interpretação da lei. Quero apenas mencionar o fato de que o diálogo platônico representa o paradigma de uma multiplicidade de significados e relações, das quais o próprio Strauss extrai coisas importantes. Será que a verdade mimética, presente no decurso dos diálogos socráticos em Platão, deve ser tão subestimada a ponto de [422] já não vermos essa multiplicidade na própria verdade, e até no próprio Sócrates? Será que um autor sabe realmente e em todas as frases o que tem em mente? O capítulo espetacular da auto-interpretação filosófica — estou pensando, por exemplo, em Kant, em Fichte ou em Heidegger — parece-me falar uma linguagem evidente. Se fosse correta a alternativa apresentada por Strauss, segundo a qual um autor filosófico deve ter uma opinião unívoca ou então estará confuso, temo que em muitas questões de interpretação controversa caberia uma única conseqüência hermenêutica, a saber, reconhecer como fatalmente dado o estado da confusão. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Para caracterizar a estrutura do processo hermenêutico lancei mão expressamente da análise aristotélica da phronesis. Com isso, estava avançando num caminho traçado por Heidegger já em seus primeiros anos de Freiburg, ao posicionar-se contra o neokantianismo e a filosofia dos valores (e em última instância também contra o próprio Husserl) e em favor de uma hermenêutica da facticidade. De certo, a base ontológica de Aristóteles tornou-se suspeita para ele já em seus primeiros ensaios. Essa base servira de suporte para o edifício de toda a filosofia moderna, especialmente para o conceito de subjetividade e de consciência e para as aporias do historicismo. Foi o que depois, em Ser e tempo, chamou-se de “ontologia do ser simplesmente dado” (“Ontologie des Vorhandenen “). Mas na filosofia de Aristóteles havia um ponto que na época representava para Heidegger muito mais que um mero contraste. Representava antes um aliado para suas próprias intenções filosóficas, a saber, a crítica aristotélica ao “eidos universal” de Platão e positivamente a demonstração da estrutura analógica do bem e de seu conhecimento, tarefa que se apresenta na situação da ação. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
O que mais me admira na defesa que Strauss faz da filosofia clássica é seu esforço por compreendê-la como uma unidade, de modo que a oposição extrema entre Platão e Aristóteles tanto em relação à forma quanto ao sentido da questão pelo bem parece não lhe causar preocupações. Os primeiros estímulos que recebi de Heidegger tornaram-se fecundos entre outras coisas porque involuntariamente me ajudaram a penetrar mais fundo no problema hermenêutico da Ética a Nicômaco. Não creio, de modo algum, que este seja um uso indevido do pensamento aristotélico. Isso nos ensina, antes, como podemos extrair dali um possível ensinamento, uma crítica do universal-abstrato, nos moldes como essa crítica se tornou determinante para a situação hermenêutica com o surgimento da [423] consciência histórica, sem precisar do extremismo dialético hegeliano e por conseguinte sem a conseqüência insustentável representada no conceito do saber absoluto. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Litt mostra que isso não pode ser nenhuma norma comum, sob a qual poderia ser subsumido o caso do agir prático-político que se deve julgar. Também percebo que ele não se serviu da ajuda que Aristóteles poderia ter-lhe dado nesse terreno, uma vez que este já fizera a mesma objeção contra Platão. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Esse retorno à tradição da filosofia prática pode ajudar-nos na proteção frente à obviedade e naturalidade técnica do conceito moderno de ciência. Mas isso não esgota a minha intenção filosófica. [456] No diálogo hermenêutico em que nos encontramos, sinto que essa intenção filosófica não foi suficientemente levada em consideração. O conceito de jogo, que já há décadas eu deslocara da esfera subjetiva do “instinto de jogo” (Schiller), utilizando-o na crítica da “distinção estética”, implica um problema ontológico. Isso porque nesse conceito conjugam-se tanto o jogo recíproco de acontecer e compreender quanto os jogos de linguagem de nossa experiência de mundo em geral, tal como foram tematizados por Wittgenstein na intenção de criticar a metafísica. Mas o questionamento que eu faço só poderá apresentar-se como uma “ontologização” da linguagem aos olhos de quem deixar de questionar os pressupostos da instrumentalização da linguagem em geral. O que a experiência hermenêutica nos propõe é, na verdade, um problema filosófico, a saber, descobrir as implicações ontológicas inerentes ao conceito “técnico” de ciência e fomentar o reconhecimento teórico da experiência hermenêutica. Nesse sentido, o diálogo filosófico deve vir primeiro, não para renovar um platonismo, mas para renovar um diálogo com Platão, cujo questionamento ultrapasse os conceitos fixos da metafísica e sua inadvertida sobrevivência. Como reconhece muito bem Wiehl, as Fussnoten zu Plato (notas de pé de página a Platão) de Whitehead poderiam ser importantes para essa tarefa (cf. sua introdução à edição alemã do Adventures ofldeas, de Whitehead). Em todo caso, era minha intenção conjugar a dimensão da hermenêutica filosófica com a dialética platônica, e não com a hegeliana. O III volume de meus Kleine Schriften mostra, já no título, qual o tema do livro: Idee und Sprache (Idéia e linguagem). Toda honra seja dada à investigação moderna da linguagem. No entanto, a auto-evidência técnica da ciência moderna está privando-a da dimensão hermenêutica e da tarefa filosófica nela implicada. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
Em muitas oportunidades objetou-se contra as minhas investigações dizendo que sua linguagem seria muito imprecisa. Não posso admitir que isso seja só a descoberta de uma deficiência — o que muitas vezes pode ser suficiente. Ao contrário, parece-me muito mais adequado à tarefa da linguagem conceitual filosófica manter de pé o envolvimento com o todo do saber sobre o mundo baseado na linguagem, e com isso manter viva uma relação com o todo, mesmo que às custas de uma delimitação mais precisa dos conceitos. Isso é a implicação positiva da “carência de linguagem”, que nasceu com a filosofia desde os seus começos. Em momentos muito especiais e sob condições muito específicas, que não podem ser encontradas em um Platão ou em um Aristóteles, em um Mestre Eckhart ou Nicolau de Cusa, nem em um Fichte ou um Hegel, mas talvez em Tomás de Aquino, em Hume e em Kant, essa carência de linguagem permanece oculta sob uma sistemática conceitual equilibrada e só volta a manifestar-se, e nesse caso de maneira necessária, quando o pensar acompanha o movimento do pensamento. Nesse particular remeto à conferência que pronunciei em Dusseldorf, “Die Begriffsgeschichte und die Sprache der Philosophie”. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
Também na escola de Marburgo, abriu caminho esse novo sentimento da época. Era impressionante ver o entusiasmo sensível com que o astuto metodólogo da escola de Marburgo, Paul Natorp, se lançou em idade avançada para a inefabilidade mística do inconcreto e, além de Platão e Dostoievski, conjurou a Beethoven e a Rabindranath Tagore, à tradição mística de Plotino e do Mestre Eckhart — até os Quakers. Não menos impressionante era a energia selvagem com que Max Scheler — como conferencista convidado para Marburgo — demonstrou seu penetrante talento fenomenológico em campos sempre novos e inesperados. A isso acrescenta-se a fria nitidez com que Nicolai Hartmann tentou apagar seu próprio passado idealista com uma argumentação crítica; um pensador e mestre de uma tenacidade impressionante. Quando eu escrevi [483] minha dissertação sobre Platão e me doutorei em 1922, muito jovem ainda, estava sob a influência dominante de Nicolai Hartmann, que enfrentou o sistematismo idealista de Natorp. O que havia de vivo em nós era a esperança de uma reorientação filosófica ligada sobretudo à obscura palavra mágica “fenomenologia”. Mas depois que o próprio Husserl, que com todo seu gênio analítico e sua inegável paciência descritiva buscava sempre uma evidência última, não encontrou um melhor apoio filosófico do que o do idealismo transcendental de cunho neokantiano, donde poderia surgir algum amparo intelectual? Foi Heidegger quem o trouxe. Alguns aprenderam dele o que foi Marx, outros o que foi Freud, e todos nós, definitivamente, o que foi Nietzsche. O que me interessou em Heidegger foi que podíamos “repetir” a filosofia dos gregos, uma vez que a história da filosofia escrita por Hegel e reescrita pela “historia dos problemas” do neokantismo havia perdido seu fundamentum inconcussum: a autoconsciência. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
O que nos fascinou foi sobretudo a intensidade com que Heidegger fazia reviver a filosofia grega. Quase não tínhamos consciência de que essa filosofia grega representava muito mais um contraponto do que um paradigma de seu próprio perguntar. A “destruição” da metafísica por Heidegger, porém, não era aplicável somente ao idealismo da consciência da época moderna, mas também a suas origens na metafísica grega. Sua crítica radical questionou tanto o caráter cristão da teologia quanto a cientificidade da filosofia. Frente à inanidade do filosofar acadêmico, que se movia numa linguagem kantiana ou hegeliana degradada e pretendia completar ou superar sempre de novo o idealismo transcendental, Platão e Aristóteles apareciam de imediato como aliados de todo aquele que tinha perdido a fé nos jogos de sistemas da filosofia acadêmica, inclusive nesse sistema aberto de problemas, categorias e valores que orientava a investigação fenomenológica das essências ou a análise categorial baseada na história dos problemas. Os gregos nos ensinavam que o pensamento da filosofia não pode seguir a idéia sistemática de uma fundamentação última e um princípio supremo para poder dar conta da realidade, mas que já se encontra [485] sempre sob uma orientação: na reflexão sobre a experiência originária de mundo, pensar até o fim a virtualidade conceitual e intuitiva da linguagem dentro da qual vivemos. Pareceu-me que o segredo do diálogo platônico consistia nesse ensinamento. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Um dos estudiosos alemães de Platão mais relevantes de então era Julius Stenzel, cujos trabalhos apontavam na mesma direção; frente às aporias da autoconsciência em que se viam implicados tanto o idealismo como seus críticos, ele percebia nos gregos a “contenção da subjetividade”. Mesmo antes que Heidegger começasse a ensinar-me, pareceu-me também que a enigmática superioridade dos gregos consistia em entregar-se ao movimento do pensar em uma total inocência e esquecendo de si mesmos. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
O segundo ponto essencial desse ensinamento foi que (em alguns encontros privados) Heidegger me fez ver no texto de Aristóteles a insustentabilidade de seu suposto “realismo” e sua [486] permanência no terreno do logos, preparado por Platão no seu seguimento a Sócrates. Anos mais tarde, por ocasião de um pronunciamento que fiz num seminário, Heidegger me mostrou que esse novo solo do filosofar dialético comum a Platão e Aristóteles não só sustenta a doutrina aristotélica das categorias como também pode explicar seus conceitos de dynamis e de energeia (o que acabou sendo demonstrado posteriormente por Walter Brõker em sua obra sobre Aristóteles). VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
A história da ciência grega difere evidentemente da história da ciência moderna. No período platônico foi possível religar o caminho seguido pelo esclarecimento, pela investigação e pela explicitação do mundo com os esquemas tradicionais da religião e da visão grega da vida. Foram Platão e Aristóteles, e não Demócrito, os que presidiram a história da ciência na Antigüidade tardia, e de modo algum foi uma história de decadência científica. A ciência helenística, como é chamada hoje, não precisou se defender da “filosofia” e seus postulados, mas alcançou sua emancipação justamente através da filosofia grega, através do Timeu e da Física aristotélica, como procurei demonstrar em um trabalho intitulado Gibt es die Materie? (Existirá a matéria?). Na verdade, mesmo o projeto oposto representado pela física de Galileu e de Newton determina-se a partir daquela. Um trabalho sobre Antike Atomtheorie (Teoria atômica antiga, 1934) foi o único fragmento que publiquei então desse grupo de estudos. Buscava desfazer os preconceitos infantis que a ciência moderna alimenta a respeito de Demócrito, o grande desconhecido. A grandeza de Demócrito nada perderia com isso. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Mas Platão continuou sendo o centro de meus estudos. Meu primeiro livro sobre ele, Platos dialektische Ethik (Ética dialética platônica), que surgiu a partir de meu trabalho de habilitação, foi na verdade um livro abortado sobre Aristóteles. Meu ponto de partida foram os dois trabalhos aristotélicos sobre o “prazer”. Sendo insolúvel do ponto de vista genético, o problema deveria ser abordado pela via fenomenológica, isto é, se não fosse possível “explicar” essa coexistência pela via histórico-genética, pelo menos deveria ser possível justificá-la. Isso não podia ser feito sem relacionar ambas as passagens com o Filebo de Platão. E, com essa intenção, fiz uma interpretação fenomenológica desse diálogo. Na época, eu ainda não estava em condições de avaliar o que o Filebo significava para a teoria platônica dos números e, sobretudo, para o problema das relações entre idéia e “realidade”. Tinha dois objetivos, ambos sob o mesmo signo metodológico: esclarecer a função da dialética platônica a partir da fenomenologia do diálogo e a doutrina do prazer e suas formas de manifestação mediante uma análise fenomenológica dos dados da vida real. A arte da descrição fenomenológica, que tentara aprender com Husserl (em Friburgo, 1923) e com Heidegger, deveria ser capaz e idônea para uma interpretação dos textos antigos, buscando as “coisas, elas mesmas”. Isso alcançou sucesso tolerável e foi reconhecido, mas não pelo simples historiador, que persiste sempre na ilusão de que compreender o que se encontra ali, o que está presente, seja algo muito trivial. Segundo este, o que vale a pena é investigar o que há por trás. Foi assim que Hans Leisegang, em seu relato sobre a investigação de Platão na atualidade (Archiv für Geschichte der Philosophie = Arquivo sobre história da filosofia, 1923), pôde relegar meu trabalho com desdém, citando essas palavras de meu prólogo: “Sua relação com a crítica histórica já será positiva se essa — na suposição de que não contribua para nada — considerar isso que ela afirma como sendo algo óbvio e evidente”. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
O certo é que a partida estava dada. Como professor de filosofia aprendia cada semestre algo novo, nas precárias condições de um bolsista ou de um auxiliar de cátedra, e meu ensino se adaptava perfeitamente aos meus planos de investigação. Assim continuei aprofundando-me em Platão graças sobretudo à colaboração de J. [489] Klein no campo da matemática e da teoria dos números. A obra clássica de Klein Die griechische Logistik und die Entstehung der Algebra (A logística grega e o surgimento da álgebra, 1936) apareceu naquele período. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Não se pode dizer que esses estudos realizados durante mais de um decênio reflitam diretamente e de modo significativo o panorama dos acontecimentos da época. Refletem-no de modo extremamente indireto, na medida em que, em 1933, interrompi por prudência um estudo amplo sobre a teoria sofística e platônica do Estado, da qual publiquei apenas dois aspectos parciais: Plato und die Dichter (Platão e os poetas) (1943) e Platos Staat der Erziehung (O Estado como educador em Platão) (1942). VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Ambos os trabalhos tiveram sua história. O primeiro expõe a interpretação, que até hoje considero a única verdadeira, segundo a qual o Estado ideal de Platão representa uma utopia expressa que tem a ver mais com Swift que com a ciência política. Já no início, o escrito delata minha posição frente ao Nacionalsocialismo com o lema preliminar: “aquele que filosofa não está de acordo com as idéias de seu tempo”. Isso aparecia disfarçado com uma citação de Goethe, seguida de uma caracterização que este fez dos escritos platônicos. Mas se alguém não tivesse a vocação para mártir ou se não quisesse voluntariamente ser deportado, esse lema representava para o leitor inteligente, naquele período de “espírito de igualitação”, um modo de sublinhar a própria identidade — como a célebre afirmação de Karl Reinhardt no prólogo a seu livro sobre Sófocles: “Janeiro e setembro de 1933”. No mais, o fato de evitar cuidadosamente os sistemas de significação política (e, em geral, a publicação fora de revistas especializadas) correspondia à mesma lei de sobrevivência. Um Estado que se serve de razões de estado para classificar como “correta” uma teoria filosófica” deve saber que seus melhores homens, tanto hoje quanto antigamente, acabarão se orientando por outros campos onde não sejam censurados por políticos — o que significa, por leigos — , seja lá qual for a cor que possuam. Assim, continuei trabalhando sem chamar a atenção e encontrei discípulos bastante qualificados, entre os quais quero mencionar aqui apenas Walter Schulz, Wolkmann-Schluck e Arthur Henkel. Por sorte, durante a preparação da guerra no Oeste, a política nacionalsocialista abrandou a pressão sobre as universidades, e minhas oportunidades acadêmicas, que durante anos haviam sido nulas, tornaram-se mais promissoras. Por fim, depois de dez anos de docência, obtive o título largamente perseguido de Professor. Esperava uma cátedra de filologia clássica em Halle, mas, no ano de 1938, acabei obtendo uma cátedra dê filosofia em Leipzig, a qual me obrigou a realizar novas tarefas. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
A segunda parte do trabalho Platos Staat der Erziehung (O Estado como educador em Platão) foi também uma espécie de pretexto. Foi durante a guerra. Um professor da Escola Técnica Superior de Hannover, apelidado Osenberg, havia convencido a Hitler do papel decisivo que desempenha a ciência na guerra, influenciando assim na promoção das ciências naturais e sobretudo na ajuda às novas gerações de investigadores. O que acabou sendo chamado de “ação Osenberg” salvou a vida de muitos jovens investigadores. Isso incitou a inveja dos que se dedicavam às ciências do espírito, até que um membro astuto do partido nazista chegou à feliz idéia de uma “ação paralela” digna do engenho de Musil. Foi a “entrada das ciências do espírito na guerra”. Foi na realidade o início da guerra para as ciências do espírito e nada mais que isso. Para evitar a colaboração no setor filosófico, onde apareciam temas tão belos como Os judeus e a filosofia ou O alemão na filosofia, passei ao setor de filologia clássica. Ali imperava a polidez, e sob a proteção de Helmut Berve surgiu uma interessante obra coletiva, Das Erbe der Antike (0 legado da Antigüidade), que alcançou uma segunda edição, sem modificação alguma, após a guerra. Meu trabalho Platos Staat der Erziehung prolongou o estudo sobre Plato und Dichter e indicou a direção de meus estudos posteriores em suas últimas palavras “o número e o ser”. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Tornamo-nos mais ou menos cegos para essa tarefa por causa da ciência moderna e sua generalização filosófica. No Fédon de Platão, Sócrates coloca a exigência de compreender a estrutura cósmica e o acontecimento natural do mesmo modo que ele compreende o motivo por que está encarcerado e não aceitou a oferta de fuga, a saber, porque considerou bom para ele aceitar inclusive uma sentença injusta. Compreender a natureza como Sócrates se compreende a si mesmo aqui é uma exigência que a física aristotélica realizou a seu modo. Mas essa exigência não é compatível com o que representa a ciência desde o século XVII e com o que possibilitaram a ciência da natureza e do domínio da natureza sustentado por aquela. É exatamente essa a razão por que a hermenêutica e suas conseqüências metodológicas aprenderam muito menos da teoria da ciência moderna do que de outras tradições mais antigas que convém recordar. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Trata-se na verdade de um antigo problema que conhecemos desde Platão. A todos os que presumiam saber, políticos, poetas e especialistas em seu ofício artesanal, Sócrates buscou convencer de que no fundo desconheciam o “bem”. Aristóteles estabeleceu a distinção estrutural subjacente aqui, diferenciando entre techne e phronesis. Isso é indiscutível. Mesmo que essa distinção possa ser mal-compreendida e o apelo à “consciência” possa muitas vezes encobrir dependências ideológicas camufladas, a pretensão de reconhecer o que são a razão e a racionalidade unicamente na ciência anônima e como ciência torna-se um mal-entendido. Assim, minha própria teoria hermenêutica convenceu-me da necessidade de recuperar esse legado socrático de uma “sabedoria humana”, que em comparação com a infalibilidade quase divina do saber científico se converte num não-saber. A “filosofia prática” elaborada por Aristóteles pode servir-nos de modelo. Trata-se da segunda linha de tradição que convém renovar. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Os diálogos platônicos marcaram-me, portanto, mais que os grandes pensadores do idealismo alemão, porque sempre me acompanharam. Meu relacionamento com eles foi singular. Se o caráter antecipador da conceptualidade grega, desde Aristóteles até Hegel e a lógica moderna, se nos apresenta, a nós, instruídos por Nietzsche e Heidegger, como limite além do qual encontram-se nossas [501] próprias perguntas sem reposta e nossas intenções sem serem satisfeitas, então o certo é que a arte do diálogo platônico se antecipou a essa aparente superioridade que cremos possuir como herdeiros da tradição judeu-cristã. Com a doutrina das idéias, com a dialética das idéias, com a matematização da física e com a intelectualização do que chamaríamos de “ética”, Platão plantou as bases para os conceitos metafísicos de nossa tradição. Mas ao mesmo tempo limitou todos seus enunciados pela via mimética e, como Sócrates, soube desarmar seus interlocutores com sua costumeira ironia. Desse modo, também neutralizou a presumida superioridade do leitor com a arte de sua poesia dialogal. A tarefa é filosofar com Platão, e não criticar Platão. Criticar Platão talvez se torne tão simplório como acusar a Sófocles de não ser Shekespeare. Isso poderá parecer paradoxal, mas só para aquele que está cego frente à relevância filosófica da imaginação poética de Platão. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Deve-se aprender, antes, a ler Platão em sentido mimético. O século XX apresenta alguns exemplos nessa linha. Sobretudo o trabalho de Paul Friedländer, mas também outras numerosas obras, mesmo sem grande profundidade, inspiradas no círculo do poeta Stefan George (Friedmann, Singer, Hildebrandt) e os trabalhos de Leo Strauss e seus amigos e discípulos. O tema está ainda longe de ser esgotado. Consiste em referir com precisão os enunciados conceituais inerentes ao diálogo à realidade dialogai donde derivam. É ali que radica a “harmonia dórica” de ação e discurso, de ergon e logos, da qual se fala em Platão, e não só com palavras. Essa harmonia é a verdadeira lei vital dos diálogos socráticos. Esses são literalmente “discursos orientadores”. É só a partir dessa harmonia que se descobre realmente a intenção da arte da contradição em Sócrates, que parece muitas vezes um ardil sofístico e em outras passagens cria uma verdadeira confusão. Se pudéssemos derramar a sabedoria humana como se faz com a água, passando-a de um recipiente ao outro mediante um fio de lã… (Symp. 175 d). Mas a sabedoria humana não é dessa natureza. É o saber do não saber. Nela, está em questão o convencer o outro, o interlocutor de Sócrates, de que nada sabe, e isso significa que seu saber sobre si mesmo e sobre sua vida se torna mera presunção. Ou, para dizê-lo com outra frase audaciosa de Platão da Sétima Carta: não se refuta apenas sua tese, mas sua alma. Isso pode ser aplicado tanto às crianças que acreditam ser amigos, desconhecendo o que seja a amizade, quanto aos generais famosos que crêem encarnar em si a virtude do soldado (Laques) ou aos políticos ambiciosos que [502] presumem possuir um saber superior a qualquer outro (Cármides)… Pode ser igualmente aplicado a todos aqueles que seguem os mestres profissionais da sabedoria e, por último, ao simples cidadão que deve crer e fazer crer que é “justo” como vendedor, comerciante, cambista, artesão etc. Não se trata evidentemente de um saber técnico, mas de outro tipo de saber, além de todas as pretensões e competências especiais de uma superioridade no saber, além de todas as technai e epistemai conhecidas. Esse outro saber significa a “guinada rumo à idéia” que está por trás de todas as meras representações dos presumidos sábios. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Mas também isso não significa que Platão possua, afinal, uma doutrina que possa ser aprendida: a “doutrina das idéias”. E, no diálogo do Parmênides, quando ele critica essa “doutrina”, não significa que ele tenha cometido um erro ali. Significa, antes, que a hipótese das “idéias” não é tanto uma “doutrina”. Designa uma orientação problemática cujas implicações a filosofia, ou dialética platônica, deveria desenvolver e debater. A dialética é a arte de conduzir uma conversa, e isso inclui a arte de conduzir essa conversa consigo mesmo e de perseguir o entendimento consigo mesmo. É a arte de pensar, que equivale à arte de indagar o significado do que se pensa e se diz. Desse modo, segue-se um caminho ou, mais exatamente, se está em um caminho. Isso porque existe algo que se pode chamar de “predisposição natural do homem para a filosofia”. Nosso pensamento não se detém no que alguém tem em mente com isso ou aquilo. O pensar remete para além de si mesmo. A obra dos diálogos platônicos expressa isso de modo característico, a saber, remete ao uno, ao ser, ao “bem” que se expressa na ordem da alma, na ordem da constituição da cidade e da estrutura cósmica. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Para ver que a obra poética se constitui num corretivo do ideal da definição objetiva e da hybris dos conceitos, não precisei seguir o pensamento de Heidegger quando, armado com os poemas de Hölderlin, enfrentou Hegel e interpretou a obra de arte como um acontecimento originário da verdade. Pude constatar isso com meus primeiros ensaios no campo do pensamento. Isso sempre deu o que pensar a minha própria orientação hermenêutica. A tentativa hermenêutica de analisar a linguagem partindo do diálogo — uma tentativa ineludível para um discípulo permanente de Platão — significa em última instância a superabilidade de qualquer fixação mediante o avanço do diálogo. Assim, a fixação terminológica, adequada no campo construtivo da ciência moderna e de seu objetivo de permitir a todos o acesso ao saber, torna-se suspeita na esfera dinâmica do pensamento filosófico. Os grandes pensadores gregos preservaram a mobilidade de sua própria linguagem inclusive nas ocasiões em que lançaram mão dessa fixação conceitual, a saber, na análise temática. Existe, no entanto, uma escolástica antiga, medieval, moderna e novíssima. Ela acompanha a filosofia como sua sombra. Isso significa que se pode avaliar a qualidade de um pensamento pela sua capacidade de quebrar as fossilizações existentes na linguagem filosófica tradicional. O ensaio programático de Hegel, manejado por seu método dialético, teve no fundo muitos antecedentes. Mesmo um pensador tão cerimonioso como Kant, que jamais deixou de lado o latim escolástico, encontrou sua “própria” linguagem, evitando neologismos, é verdade, mas extraindo numerosos significados novos dos conceitos tradicionais. Também o alto status de Husserl se determina frente ao neokantismo de sua época e da anterior pela força intuitiva de seu intelecto, que soube fundir as expressões tradicionais com a flexibilidade descritiva de seu vocabulário. Heidegger amparou-se precisamente no exemplo de Platão e de Aristóteles para justificar a novidade de sua criação de linguagem, e seus seguidores têm sido muito mais numerosos do que se poderia esperar diante das primeiras reações de assombro e escândalo. A filosofia, diferentemente da ciência e [507] da práxis da vida, defronta-se com uma dificuldade toda própria. A linguagem que falamos não foi feita para as finalidades do filosofar. A filosofia vê-se acometida de uma carência constitutiva de linguagem, e essa carência se faz sentir ainda mais quando o filósofo decide pensar com ousadia. Costuma ser característico do diletante o afã em “formar” conceitos arbitrários e “defini-los” com muita avidez. O filósofo reanima a força intuitiva da linguagem, e as ousadias e violências de linguagem podem ser pertinentes, quando ele consegue fazer com que penetrem na linguagem dos que pensam e seguem com ele. Isso significa, quando essa linguagem dinamiza, estende, ilumina unicamente o horizonte do entendimento. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
E inevitável que a linguagem da filosofia não se mova em sistemas de enunciados cuja formalização lógica e exame crítico, baseados na dedução lógica e na univocidade, poderiam aprofundar o conhecimento filosófico. Essa linguagem jamais encontra seu objeto dado de antemão, mas ela própria deve construí-lo. Esse fato não provocará nenhuma “revolução”, nem sequer a revolução proclamada pela análise do ordinary language. Vamos ilustrar esse fato com um exemplo. Analisar com recursos lógicos as argumentações que figuram num diálogo platônico, mostrar suas incoerências, preencher suas lacunas, detectar conclusões falsas etc. pode conter um caráter esclarecedor. Mas será que desse modo aprendemos a ler Platão? Aprendemos a apropriar-nos de suas perguntas? Será que conseguimos aprender dele, em vez de confirmar nossa superioridade sobre ele? O que é dito sobre Platão é aplicável mutatis mutandis a qualquer filosofia. Parece-me que Platão definiu isso, de uma vez por todas, na Sétima Carta: os recursos do filosofar não são o próprio filosofar. O rigor lógico ainda não é tudo. Não significa que a lógica não possui sua validez evidente. Mas limitar-se ao aspecto lógico reduz o horizonte do questionamento a uma verificabilidade formal, eliminando assim a abertura ao mundo, que se produz em nossa experiência de mundo interpretada na linguagem. Essa é uma constatação hermenêutica pela qual creio coincidir de algum modo com o último Wittgenstein. Ele reanalisou os preconceitos nominalistas de seu Tractatus a fim de reconduzir toda a linguagem aos contextos da práxis de vida. De certo, o resultado dessa redução foi para ele amplamente negativo. Consistiu na exclusão de todas as perguntas indemonstráveis da metafísica e não na sua recuperação, por mais indemonstráveis que sejam, escutando-as desde a constituição de nosso ser-no-mundo que se dá na linguagem. Para esse fim, da palavra dos poetas podemos aprender muito mais do que do próprio Wittgenstein. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Isso fica claro sobretudo quando estudamos os diversos modos da fala e suas peculiaridades. Não é só a palavra poética que exibe uma rica gama de diferenciações, como, por exemplo, o épico, o dramático, o lírico. Existem outros modos de linguagem nos quais a relação hermenêutica básica de pergunta e resposta se modifica significativamente. Refiro-me às diversas formas de linguagem religiosa, como a proclamação, a oração, o sermão, a bênção. Cito a “lenda” mítica, o texto jurídico e até a linguagem mais ou menos balbuciante da filosofia. Essas modalidades formam uma problemática da hermenêutica aplicada, à qual dediquei-me cada vez mais desde a aparição de Verdade e método I. Penso ter-me aproximado ao tema a partir de dois ângulos: meus estudos sobre Hegel, nos quais abordei o papel do elemento da linguagem na sua relação com o elemento lógico, e poesia hermética moderna, que analisei em um comentário ao Atemkrista.il de Paul Celan. A relação entre filosofia e poesia ocupa o centro dessas investigações. A reflexão sobre esse tema me serve e pode servir-nos a todos para recordar constantemente que Platão não foi platônico nem a filosofia é escolástica. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.