Todo escrito é, como já vimos, uma espécie de fala alheada, que necessita da reconversão de seus signos à fala e ao sentido. Essa reconversão se coloca como o verdadeiro sentido hermenêutico, porque através da escrita ocorre ao sentido uma espécie de auto-alheamento. O sentido do que foi dito tem de voltar a ser enunciado unicamente com base na literalidade transmitida pelos signos escritos. Ao inverso do que ocorre com a palavra, a interpretação do escrito não dispõe de outra ajuda. Por isso é, aqui, tão importante a “arte” de escrever. É assombroso até que ponto a palavra falada se interpreta a si mesma, pelo modo de falar, o tom, a cadência etc, assim como pelas circunstâncias nas quais se fala. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
O modo de ser especulativo da linguagem mostra assim seu significado ontológico universal. O que vem à fala é, naturalmente, algo diferente da própria palavra falada. Mas a palavra só é palavra em virtude do que nela vem à fala. Somente está aí em seu próprio ser sensível para subsumir-se no que é dito. Inversamente, também o que vem à fala não é algo dado com anterioridade e desprovido de fala, mas recebe na palavra sua própria determinação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Foi, em todo caso, um renascimento estranhamente declamatório. Como se poderia redescobrir a arte clássica da linguagem sem seu espaço clássico, a polis, ou a res publicai A retórica havia perdido seu posto central desde o final da República Romana e na Idade Média constitui um elemento da cultura escolar mantida pela Igreja. Não podia experimentar uma renovação, como pretendia o humanismo, sem passar por uma mudança funcional muito mais drástica. A redescoberta da Antigüidade clássica coincidiu com dois fatos carregados de conseqüências: a descoberta da imprensa e, como efeito da Reforma, a enorme difusão da leitura e da escrita, ligada à doutrina sobre o sacerdócio comum. Assim iniciou-se um processo que, ao final, e depois de séculos, levou não somente à erradicação do analfabetismo, mas também a uma cultura da leitura privada que deixava em segundo plano a palavra falada, inclusive a palavra lida em voz alta e o discurso pronunciado: um imenso processo de interiorização do qual só agora nos damos conta, quando os meios de comunicação social abriram caminho para uma nova maioridade. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
É interessante notar que o próprio Dannhauer já se referia à difusão da imprensa como um fator relevante para a hermenêutica. Não há dúvidas de que a arte da imprensa transformou radicalmente (296) a realidade da comunicação pela linguagem. O hábito da leitura privada, que coincidiu sobretudo com o dinamismo reformador da idéia protestante do sacerdócio geral, representa uma nova situação, que requer uma nova diretriz disciplinada. A distância entre os signos escritos, que aparecem como vestígios de sentido do texto, e o sentido a que se refere o texto aumentou enormemente desde que a palavra falada ou lida por um arauto já não presidia o processo de comunicação. Aqui surgem novos problemas que não se referem apenas ao círculo de tarefas da compreensão e da interpretação, mas também à arte da escrita. Em todo caso, é fácil de compreender que é nesse ponto que se deve buscar a verdadeira origem da hermenêutica. Não é só a variante da teoria da ciência proposta por Dannhauer que se ocupa disso. O próprio Melanchton advoga pela conversão da retórica em arte da interpretação. VERDADE E METODO II OUTROS 21.
A concepção da filosofia prática baseia-se de fato na crítica aristotélica à idéia do bem de Platão. Mas uma análise mais atenta, como tentei demonstrar numa investigação já concluída, irá descobrir que a questão do bem se coloca como se fosse a realização suprema daquela mesma idéia do saber que perseguem as technai e as ciências em suas esferas respectivas. Mas essa questão não se materializa realmente numa ciência suprema que se possa aprender. Esse objeto supremo de aprendizagem que é o bem (to agathon) aparece sempre no elencos socrático com uma função negativa de demonstração. Sócrates nega que as technai constituam um verdadeiro saber. Seu saber específico é a docta ignorantia e se chama, não por acaso, dialética. Só sabe realmente aquele que consegue ir até o fim do discurso e da resposta. Assim também quanto à retórica, esta só poderá ser techne ou ciência na medida em que se tornar dialética. Só pode falar realmente com autoridade aquele que conheceu como bom e justo aquilo que ele deve comunicar de modo convincente, podendo portanto responsabilizar-se por isso. Mas esse saber do bem e essa capacidade retórica não designam um saber geral “do bem”, mas o saber daquilo que deve ser aqui e agora objeto de persuasão. Mas deve saber igualmente o modo de fazer isso e frente a quem deve fazê-lo. É só quando se conhece a situação concreta exigida pelo saber a respeito do bem que se pode compreender por que a arte de escrever discursos desempenha essa função na argumentação mais ampla. Escrever discursos (307) também pode ser uma arte. É o que reconhece expressamente Platão com sua virada conciliadora rumo a Isócrates. Mas alguém só poderá adquirir essa arte se, além da debilidade da palavra falada, conhecer também a debilidade de todo escrito, podendo assim vir em seu auxílio, como o dialético que sustenta o discurso socorre a debilidade de todo discurso. VERDADE E METODO II OUTROS 22.