De um tal sentido, precisa-se obviamente por toda parte em que se tem em mente um todo, mas que não é dado como um todo, ou seja, não é pensado à base de conceitos finais. Dessa maneira, o gosto não se restringe, de forma alguma, ao belo na natureza e na arte, julgando-o de acordo com a sua qualidade decorativa, mas abrange todo o campo dos costumes e da decência. Também os conceitos dos costumes nunca são dados como um todo ou determinados normativamente de maneira unívoca. Antes, a minuciosa ordenação da vida através das regras do direito e dos costumes é incompleta, necessitando de uma complementação produtiva. Ela precisa de juízo para avaliar corretamente os casos concretos. Conhecemos essa função do juízo sobretudo a partir da jurisprudência, campo em que o desempenho jurídico complementar da “hermenêutica” reside justamente em promover a concreção do direito. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Aqui, em princípio, reconhece-se o primado do jogo em face da consciência do jogador, e, de fato, justamente as experiências do jogo, que o psicólogo e o antropólogo terão de descrever, ganham uma luz nova e esclarecedora, caso se parta do sentido medial do jogo. E evidente que o jogo representa uma ordem, na qual o vaivém do movimento do jogo corre como que espontaneamente. Faz parte do jogo o fato de que o movimento não somente não tem finalidade nem intenção, mas que também não exige esforço. Ele vai como que espontaneamente. A leveza do jogo, que naturalmente não precisa uma real falta de esforço, mas que apenas alude fenomenologicamente à falta de esforçabilidade (Angestrengtheit), será experimentada subjetivamente como alívio. A estrutura de ordenação do jogo faz que o jogador desabroche em si mesmo e, ao mesmo tempo, tira-lhe, com isso, a tarefa da iniciativa, que perfaz o verdadeiro esforço da existência. Isso aparece também no espontâneo impulso à repetição, que surge no jogador e no renovar-se permanente do jogo, que cunha sua forma (p. ex., no refrão). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Temos pois de renovar a indagação: o que é confirmado pelo espectador? É evidente que se trata justo da inconveniência e da dimensão assustadora das conseqüências que resultam de uma ação culposa, que representam a verdadeira provocação do espectador. A afirmação trágica é a superação dessa provocação. Tem o caráter de uma genuína comunhão. O que se experiecia num tal excesso de desgraça trágica é algo verdadeiramente comunitário. O espectador reconhece a si mesmo e ao seu próprio ser finito em face do poder do destino. O que acontece com os grandes passa a ter significado exemplar. A confirmação da nostalgia trágica não vale para o processo trágico como tal ou para a justiça do destino, que atinge o herói, mas significa uma ordenação metafísica do ser, válida para todos. O “é assim mesmo” é uma espécie de autoconhecimento do espectador, que retorna de modo clarividente dos ofuscamentos em que ele, como qualquer outro, vive. A afirmação trágica é clarividência por força da continuidade de sentido, no qual o próprio espectador volta a se colocar. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
No entanto, Schleiermacher declara que esses fios condutores dogmáticos não podem reivindicar nenhuma validez prévia, e por isso, são apenas restrições relativas do círculo. Em princípio, compreender é sempre um mover-se nesse círculo, e por isso é essencial o constante retorno do todo às partes e vice-versa. A isso se acrescenta que esse círculo está sempre se ampliando, já que o conceito do todo é relativo, e a integração em contextos cada vez maiores afeta sempre também a compreensão do individual. Schleiermacher aplica à hermenêutica esse seu procedimento tão habitual de uma descrição dialética polar, e com isso presta conta da provisoriedade interna e da infinidade da compreensão, na medida em que o desenvolve a partir do velho princípio hermenêutico do todo e das partes. Não obstante, a relativização especulativa que o caracteriza representa mais um esquema descritivo de ordenação para o processo do compreender, do que se ela fosse intencionada fundamentalmente. Isso mostra-se no fato de que, ao introduzir a transposição adivinhatória, ele admite algo como uma compreensão completa: “Até que, finalmente, todo particular, de repente, recebe sua luz plena”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Entretanto, a nós interessa menos essa coincidência, do que as diferenças entre a palavra divina e humana. Teologicamente, isso é também completamente correto. O mistério da trindade, embora iluminado pela analogia com a palavra interior, permanece, em última análise, incompreensível para o pensamento humano. Se na palavra divina se expressa o todo do espírito divino, o momento processual dessa palavra significa, então, algo a respeito do que, no fundo, toda analogia nos deixa na estaca zero. Na medida em que, conhecendo a si mesmo, o espírito divino conhece ao mesmo tempo todo ente, a palavra de Deus é a palavra do espírito que em uma só contemplação (intuitus) contempla e cria tudo. O surgimento desaparece na atualidade da onisciência divina. Tampouco a criação seria um processo real, mas interpretaria tão-somente a ordenação da estrutura do universo no esquema temporal. Se quisermos compreender de uma maneira mais exata o momento processual da palavra, que para nosso questionamento do nexo de lingüisticidade e compreensão é o mais importante, não poderemos permanecer na coincidência com o problema teológico, mas teremos que nos deter na imperfeição do espírito humano e na sua diferença para com o divino. Também aqui podemos acompanhar Tomás quando destaca três diferenças. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Ao inverso disso, na palavra humana mostra-se a relação dialética da multiplicidade das palavras com a unidade da palavra, sob um nova luz. Já Platão havia reconhecido que a palavra humana possui um caráter de discurso, isto é, expressa a unidade de um pensamento (Meinung) através da integração de uma multiplicidade de palavras, e tinha desenvolvido, em forma dialética, essa estrutura do logos. Mais tarde, Aristóteles demonstrou as estruturas lógicas que constituem a frase, e correpondentemente o juízo, ou o nexo de frases, ou correspondentemente a conclusão. Mas tampouco isso esgota a questão. A unidade da palavra, que se auto-expõe na multiplicidade das palavras, permite compreender também aquilo que não se esgota na estrutura essencial da lógica e que instaura o caráter de acontecer da linguagem: o processo da formação dos conceitos. Quando o pensamento escolástico desenvolve a doutrina do verbo, não se limita a pensar a formação do conceito como cópia de ordenação da essência. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Todas as diairesis conceituais de Platão, assim como as definições aristotélicas, confirmam que a formação natural dos conceitos, que acompanha a linguagem, não segue sempre a ordenação da essência, mas realiza muitas vezes a formação das palavras com base em acidentes e relações. Porém, a primazia da ordenação lógica essencial, determinada pelos conceitos de substância e acidente, faz aparecer a formação natural dos conceitos da linguagem somente como uma imperfeição do nosso espírito finito. Somente porque conhecemos acidentes, nos guiamos por eles na conceituação. E, no entanto, ainda que isso seja correto, dessa imperfeição segue-se uma vantagem peculiar — coisa que São Tomás parece ter detectado corretamente — , a liberdade para uma conceituação infinita e uma progressiva penetração no intencionado. Se se pensa o processo do pensamento como um processo de explicação em palavras, torna-se visível um desempenho lógico da linguagem que não poderia ser concebido por inteiro a partir da relação de uma ordem de coisas, tal como o teria presente um espírito infinito. O fato de que a linguagem submeta a conceituação natural à estrutura essencial da lógica, como ensina Aristóteles e, na sua esteira, também Tomás, somente possui pois uma verdade relativa. Em meio da penetração da teologia cristã pela idéia grega da lógica, germina de fato algo novo: o meio da linguagem, no qual chega à sua plena verdade o caráter de mediação, inerente ao acontecer da encarnação. A cristologia se converte em precursora de uma nova antropologia, que mediará, de uma maneira nova, o espírito humano, em sua finitude, para com a infinitude divina. Aqui encontrará seu verdadeiro fundamento o que antes havíamos chamado “experiência hermenêutica”. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Isso não impede que se possa assumir sem dificuldade uma certa influência da ciência sobre a linguagem. Por exemplo, em alemão não se fala mais de Walfisch (peixe-baleia), mas simplesmente de Wal (baleia), porque todo mundo sabe que as baleias são mamíferos. Por outro lado, a extraordinária riqueza de designações populares para determinados objetos vai se nivelando cada vez mais, em parte pela influência da vida de intercâmbio moderna, em parte pela estandartização científica e técnica, e, em geral, o vocabulário parece que não tende a aumentar, mas, antes, a diminuir. Existe, ao que parece, uma língua africana que possui não menos de duzentas expressões diferentes para o camelo, segundo as diferentes referências vitais em que se encontra o camelo com respeito aos habitantes do deserto. Em virtude do significado dominante que mantém em todos eles, apresenta-se um ente distinto. Pode-se dizer que em tais casos há uma tensão particularmente aguda entre o conceito de gênero e a designação lingüística. Entretanto, pode-se dizer também, que em nenhuma língua viva jamais se alcança um equilíbrio definitivo entre a tendência à generalidade conceitual e a tendência ao significado pragmático. Por isso, acaba sendo tão artificioso e tão contrário à essência da linguagem medir-se a contingência da conceituação natural pelo verdadeiro ordenamento da essência e tê-la por meramente acidental. Essa contingência se produz na realidade em virtude da margem de variação necessária e legítima, dentro da qual o espírito humano pode articular a ordenação essencial das coisas. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Essa teoria da linguagem pressupõe que tampouco as coisas (forma), a que se atribuem os nomes, pertencem a uma ordenação previamente dada de imagens originárias a que o conhecimento humano se aproximaria cada vez mais, mas que essa ordenação se forma na realidade a partir do que está dado nas coisas e por meio de distinções e reuniões. Nesse sentido, introduz-se no pensamento de Nicolau de Cusa uma mudança de rumo nominalista. Se os gêneros e espécies (genera et species) são, por sua vez, seres inteligíveis (entia rationes), então se pode compreender que as palavras possam concordar com a contemplação pautada na coisa a que dão expressão, ainda (442) que em línguas distintas se empreguem palavras distintas. Em tal caso não se trata somente de variações da expressão, mas de variações da contemplação pautada na coisa e da conceituação subseqüente, e conseqüentemente de uma imprecisão essencial que não exclui que em todas elas esteja um reflexo da própria coisa (forma). Essa imprecisão essencial somente pode ser superada, evidentemente, se o espírito se eleva ao infinito. No infinito já não há, então, mais que uma única coisa (forma) e uma única palavra (vocabulum), a palavra indizível de Deus (verbum Dei), que se reflete em tudo (relucet). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Não seguimos o grandioso auto-esquecimento desse pensamento, e ainda teremos que nos perguntar até que ponto podemos seguir sua renovação, sobre a base do conceito moderno da subjetividade, que o idealismo absoluto de Hegel representa. Pois a nós, nos guia o fenômeno hermenêutico, e seu fundamento mais determinante é precisamente a finitude de nossa experiência histórica. Para fazer justiça a isso, seguimos o rastro da linguagem; nesse, não se copia a estrutura do ser, simplesmente, mas é no seu envio que se forma, primeiramente e em constante mudança, a ordenação e a estrutura de nossa própria experiência. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
A palavra não é simplesmente a perfeição da species, como acreditava o pensamento medieval. Se no espírito pensante se representa o ente, isso não é a cópia de uma ordenação prévia do ser, cujas verdadeiras relações só serão presentes para um espírito infinito (o espírito do criador). Mas a palavra não é tampouco um instrumento capaz de construir, como a linguagem da matemática, um universo dos entes, objetivados e disponíveis graças ao cálculo. Nem um espírito infinito nem uma vontade infinita estão capacitados para superar a experiência do ser, adequada à nossa finitude. Somente o mediu da linguagem, por sua referência ao todo dos entes, pode mediar a essência histórico-finita do homem consigo mesmo e com o mundo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Se tomamos como referência o “modo de proceder do espírito poético”, tal como o descreve Hölderlin, por exemplo, tornar-se-á logo patente, em que sentido o acontecer lingüístico da poesia é especulativo. Hölderlin mostrou que o achado da linguagem de um poema pressupõe a total dissolução de todas as palavras e modos de falar habituais. “Quando o poeta se sente captado, em toda sua vida interna e externa, pelo tom puro de sua sensibilidade originária e olha então ao seu redor, ao seu mundo, este se torna novo e desconhecido; a soma de todas as suas experiências, de seu saber, de seu contemplar, de sua reflexão, arte e natureza, como se representam nele e fora dele, tudo parece como se fosse a primeira vez, e justamente por isso, inconcebido, indeterminado, dissolvido em pura matéria e vida, presente. E é importantíssimo que, nesse momento, não aceite nada como dado, não parte de nada positivo, e que a natureza e a arte, tal como as aprendeu antes e as vê agora, não falem antes de que exista para ele uma linguagem…” (Observe-se o parentesco com a crítica hegeliana à positividade.) O poema, que logrou ser obra e criação, não é ideal, mas é espírito reanimado a partir da vida infinita. (Também isso lembra a Hegel). Nele não se designa ou se significa um ente, mas se abre um mundo do divino e do humano. A enunciação poética é especulativa porque não copia uma realidade que já é, não reproduz o aspecto da espécie na ordenação da essência, mas representa o novo aspecto de um novo mundo no âmbito imaginário da invenção poética. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Assim, na filosofia platônica encontra-se uma relação bastante estreita, e em certas ocasiões uma verdadeira troca, entre a idéia do bem e a idéia do belo. Ambas encontram-se além do que é condicionado e múltiplo: O belo em si encontra-se finalmente com a alma amante, ao cabo de um caminho que passa por múltiplas belezas, como o uno, o que somente possui uma forma, o supremo (Banquete), tal como a idéia do bem, que se encontra acima do que está condicionado e do múltiplo que somente é bom num determinado sentido (República). O belo em si, tal como o bom em si (epekeina), está acima de todo ente. A ordenação do ente, que consiste em sua referência ao bem uno, coincide assim com a ordenação do belo. O caminho do amor que Diotima ensina, conduz dos corpos belos às almas belas, e destas às instituições, costumes e leis belas, e finalmente às ciências (por exemplo, as belas relações numéricas que a teoria dos números conhece), a esse “amplo mas dos belos discursos”, e inclusive mais além de tudo isso. Poderíamos nos perguntar se a superação da esfera do que se vê com os sentidos, e o acesso à esfera do “inteligível”, significa realmente uma diferenciação e elevação da beleza do belo e não meramente do ente que é belo. Todavia, é inteiramente claro que para Platão a ordenação teleológica do ser é também uma ordenação de beleza, que a beleza se manifesta no âmbito inteligível de maneira mais pura e mais clara que no sensível, onde pode aparecer distorcida pela imperfeição e pela desmedida. De um modo parecido, a filosofia medieval vincula estreitamente o conceito do belo com” o do bom, bonum, tão estreitamente que uma passagem clássica de Aristóteles sobre o kalon ficou incompreendida na Idade Média porque o termo grego tinha sido traduzido diretamente por bonum. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
A base da estreita relação da idéia do belo com a da ordenação teleológica do ser está constituída pelo conceito pitagórico-platônico da medida. Platão determina o belo com os conceitos de medida, adequação e proporcionalidade. Aristóteles enumera como momentos (eidé) do belo, a ordem (taxis), a correta proporcionalidade (symmetria) e a (483) determinação (horismenon), e encontra esses momentos representados exemplarmente na matemática. A estreita relação entre a ordem essencial matemática do belo e a ordem celeste significa, ademais, que o cosmo, o modelo de toda ordenação sensível correta, é ao mesmo tempo o mais elevado exemplo de beleza visível. Adequação à medida e simetria são as condições decisivas de todo ser belo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Procuramos separar novamente essa frase de sua conexão metafísica com a teoria da forma, apoiando-nos outra vez em Platão. Ele foi o primeiro que mostrou como momento essencial doijelo a aletheia, e é muito claro o que queria dizer com isso: o belo, o modo como aparece o bom, manifesta-se a si mesmo no seu ser, representa-se. O que se representa assim não se torna distinto de si mesmo, na medida em que se representou. Não é uma coisa para si, e outra distinta para os demais. Nem sequer se encontra noutra coisa. Não é o resplendor despejado sobre uma forma, e que chega a ela a partir de fora. Ao contrário, a constituição ontológica, própria dessa forma, é brilhar assim, é representar-se assim. Disso resulta que, em relação com o ser belo, o belo tem de ser compreendido ontologicamente sempre como “imagem”. E não há nenhuma diferença entre o fato de que apareça “ele mesmo” ou sua imagem. Já havíamos visto que a característica metafísica do belo era justamente a ruptura do hiato entre idéia e aparência. Com toda segurança, é “idéia”, ou seja, pertence a uma ordenação de ser que se destaca sobre a corrente dos fenômenos como algo consistente em si mesmo. Mas igualmente certo é que aparece por si mesmo. Como vimos, isso não significa, de modo algum, uma instância contra a doutrina das idéias, mas uma exemplificação concentrada de sua problemática. Aí onde Platão invoca a evidência do belo, não necessita reter a oposição entre “ele mesmo” e imagem. É o belo o que simultaneamente põe e supera essa oposição. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
De uma forma correspondente, a expressão poética tem se mostrado como o caso especial de um sentido introduzido e incorporado por completo na enunciação. No poema, o vir-à-fala é como um entrar em relações de ordenação, que são as que suportam e avalizam a “verdade” do que foi dito. Todo vir-à-fala, e não somente a expressão poética, tem em si algo desse testemunho. “Que não haja coisa alguma ali onde se rompe a palavra”. Como já destacamos, falar não é nunca uma subsunção do individual sob os conceitos do geral. No uso das palavras, não se torna disponível o que está dado à contemplação, como caso especial de uma generalidade, mas está presente naquilo mesmo que é dito, tal como a idéia do belo está presente no que é belo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Surge aqui um segundo aspecto: A significação não se revela no distanciamento do elemento compreensivo como pensava Dilthey, mas pelo fato de nós mesmos estarmos inseridos no nexo de efeitos da história. A compreensão histórica é ela própria, sempre, a experiência de um efeito e o prolongamento de sua efetividade. (35) Seu envolvimento prévio significa sua força histórica de produzir efeitos. Por isso, o que é historicamente significativo torna-se acessível de modo mais originário na plenitude da ação do que no compreender. A existência (Dasein) histórica guarda sempre uma situação, uma perspectiva e um horizonte. É um caso semelhante ao da pintura: A perspectiva, isto é, a ordenação de “proximidade” ou “distância” das coisas inclui um ponto de vista, que precisa ser levado em conta. Assim, entramos numa relação de ser com as coisas e fazemos parte de sua ordenação, à medida que com elas nos alinhamos. Só assim torna-se representável a singularidade de um acontecimento, a plenitude do instante. A pintura pré-perspectivística, pelo contrário, mostra todas as coisas numa eternidade dilatada e pela ótica de um significado transcendente. A verdade histórica, correspondentemente, não é o transparecer de uma idéia, mas o vínculo de uma decisão irrepetível. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.
O conceito de coisa (Sache) não traduz apenas o conceito jurídico romano de res; a palavra alemã Sache (coisa) e seu significado assumem sobretudo o que expressa a palavra latina causa. No uso da língua alemã, a palavra Sache significa em primeiro lugar causa, isto é, a coisa (Sache) litigada, que está em questão. Originalmente é a coisa que se coloca no centro entre as partes litigantes, porque ainda não se tendo sentenciado sobre ela há que se tomar uma decisão. A coisa (Sache) precisa ser protegida contra a apoderação particular de uma ou de outra parte. Nesse contexto, objetividade (Sachlichkeit) significa o oposto, a parcialidade, isto é, o contrário do abuso do direito para fins particulares. O conceito jurídico “a natureza da coisa (Sache)” não significa, por certo, uma coisa (Sache) disputada entre as partes, mas os limites colocados ao arbítrio pelo legislador, na imposição da lei ou na interpretação jurídica da mesma. O apelo à natureza da coisa (Sache) refere-se a uma ordenação livre do arbítrio humano e quer fazer prevalecer o espírito vivo da justiça mesmo contra a literalidade da lei. Também aqui, portanto, a natureza da coisa (Sache) é algo que se faz valer, algo que temos que respeitar. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
Essa pergunta é possivelmente uma afronta para a fé que nossa época deposita na ciência. Devemos, porém, considerar essa questão a partir de outra questão ainda mais abrangente, colocada com o surgimento da ciência moderna desde o século XVII e que até não foi solucionada. Toda reflexão sobre as possibilidades de ordenação de nosso mundo deve partir da profunda tensão existente entre a autoridade da ciência, de um lado, e as formas de vida dos povos, cunhadas pela religião, usos e costumes da tradição, de outro. Conhecemos essa tensão, por exemplo, pelos contactos estabelecidos entre antigas culturas da Ásia ou formas de vida dos assim chamados países subdesenvolvidos com a civilização européia. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.
Nosso problema, portanto, não é de modo algum o dualismo metodológico. Refere-se à questão específica da medicina, que parece representar um caso paradigmático para o tema da ordenação do mundo moderno pela ciência. Os espantosos progressos alcançados pela medicina moderna para a solução de situações realmente (168) críticas da enfermidade humana dão origem a confusões bastante problemáticas, das quais terão que prestar conta um dia os comprometidos com o juramento hipocrático. Não se trata apenas de a necessidade prática de ajuda e de cura colocar em evidência o modelo de aplicação técnica da ciência como excessivamente particular. Sem dúvida, também o nível de nosso saber, isto é, sua limitação, acaba obrigando o médico a confiar no seu tato e intuição e, onde estes não bastam, a fazer novas tentativas. Nesse sentido, não me parece nada contraditório supor uma biologia perfeita capaz de possibilitar o alcance de uma perfeição na medicina, que hoje mal podemos imaginar. Acho que justamente então tornar-se-iam patentes as confusões, cujos indícios já estamos percebendo hoje. Penso, por exemplo, no retardamento da morte, hoje praticada pela técnica médica. Em situações dessa natureza, a unidade da pessoa do doente, que é um verdadeiro interlocutor para o médico que o ajuda, não terá mais lugar. Algo parecido já havia sido mencionado acima a respeito das possibilidades de criação da biologia genética. Parece que a limitação e finitude da vida tornam inevitável o conflito existente entre a ciência natural, em suas possibilidades extremas, e a autocompreensão humana. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.
Vamos aplicar essas reflexões à situação do mundo moderno e à tarefa que vislumbramos. Trata-se de algo bem diferente do domínio científico com suas tarefas de um ordenamento político planetário que nos esperam. Sublinhemos expressamente que a ciência tem um amplo futuro também nesse sentido; mesmo não sendo certo que a civilização ocidental se prolongue indefinidamente e acabe expulsando ou sufocando todas as outras formas de ordenação humana. Mas é justamente aí que está o problema. A produção de um homem marcado pela civilização unitária da técnica, que aprende a utilizar-se igualmente de uma linguagem unitária de civilização — e o inglês está bem adiantado em assumir essa função — poderia certamente facilitar o ideal de um governo científico mundial. Mas a verdadeira pergunta é se esse ideal pode ser realmente desejável. Quem sabe já possamos perceber em alguns fatos de linguagem as conseqüências do processo de equilíbrio civilizatório em nosso planeta. O sistema de signos, que exige e possibilita a utilização de um aparelho técnico, desenvolve uma dialética característica. Deixa de ser um mero meio para a obtenção de objetivos técnicos. Exclui os objetivos que não podem ser indicados e comunicados com seus meios. O perfeito funcionamento da linguagem do tráfico internacional, por exemplo, baseia-se na limitação do que se comunica. O aperfeiçoamento lógico-epistemológico de uma linguagem comum da ciência, como o que preside os esforços da unity ofscience, apresentaria exatamente a mesma fisionomia. Sua perfeição talvez pudesse eliminar todas as imprecisões e ambigüidades que atrapalham o entendimento inter-humano. Por isso, não precisaríamos aspirar por uma linguagem mundial do futuro. Bastaria que as linguagens vivas dos povos fossem articuladas num sistema de equações transformadoras, de modo que uma máquina de tradução ideal garantisse a unicidade do entendimento. Tudo isso seria possível e quem sabe até não esteja longe de acontecer. Mas também aqui seria inevitável que esse meio universal se degenerasse num fim universal. Desse modo, não se teria alcançado propriamente um meio para comunicar e dizer tudo que possa ser pensado, mas um meio para garantir que só haveremos de pensar o que se capta e comunica pela programação. No fundo já estamos imersos nesse processo. O estranho fenômeno da “versão oficial”, que com a difusão dos meios modernos de comunicação de massa começa a experimentar uma nova envergadura, já mostra com clareza a dialética de meio e fim aqui presente. Isso pode ser visto com freqüência na exposição de uma linha de combate. O que numa parte do mundo se chama democracia e liberdade aparece como uma versão oficial, denunciada pela outra parte do mundo como mera manipulação da formação de opinião e domesticação das massas. Mas essa é apenas uma expressão da imperfeição desse sistema. Abarcando tudo, a idéia de versão oficial erigiu a si própria como objetivo, passando adiante inadvertidamente. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.
Ninguém nega que a linguagem exerce uma influência sobre nosso pensamento. Pensamos com e por palavras. Pensar significa sempre pensar alguma coisa. E pensar alguma coisa significa dizer algo para si. Nesse sentido, parece-me que Platão definiu com muita precisão a essência do pensamento, identificando-o com o diálogo da alma consigo mesma, um diálogo que é um constante superar — se, um retomar a si mesmo mediante dúvidas e objeções a suas próprias opiniões e juízos. E se há algo que caracteriza bem nosso pensar humano, é justamente esse diálogo infinito com nós mesmos, que não leva a nada definitivo. É isso que nos distingue daquele ideal de um espírito infinito, para o qual tudo que é e tudo que é verdadeiro se encontraria diante dele no abrir-se de um único instante vital. Ademais, a nossa experiência de linguagem, a nossa inserção crescente no diálogo interno conosco mesmos, esse que representa igualmente uma antecipação do diálogo com os outros e um envolvimento dos outros no diálogo conosco, essa experiência é onde o mundo se nos abre e ordena em todos os âmbitos de experiência. Isso significa, porém, que não temos outro caminho para a ordenação e orientação a não ser aquele que nos leva dos dados apresentados na experiência para pontos de orientação conhecidos pelo nome de conceito ou o universal, para o qual o que se dá a cada vez passa a ser considerado um caso particular seu. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 15.
Todo o conjunto da discussão de Löwith sobre a interpretação que Heidegger fez de Nietzsche, que aqui ou ali faz algumas observações justificadas, padece, sem perceber, do mesmo mal, a saber, propor o ideal nietzschiano da naturalidade frente ao princípio da formação ideal. Com isso, torna-se incompreensível o que pensa Heidegger ao colocar intencionalmente Nietzsche na mesma linha de Aristóteles — o que não significa que o coloque no mesmo ponto de Aristóteles. Ao contrário, por causa desse atropelo, o próprio Löwith vê-se enredado no absurdo de tratar a teoria nietzschiana do eterno retorno como uma espécie de Aristóteles redivivo. Para Aristóteles, na verdade, o eterno processo circular da natureza era o aspecto mais óbvio e evidente do ser. Para ele, a vida ética e histórica do homem permanece referida à ordem paradigmática do cosmos. Nada disso se encontra em Nietzsche. Este, ao contrário, pensa o círculo cósmico do ser inteiramente a partir da contradição que a existência humana representa para este círculo. O sentido do eterno retorno do mesmo está em ser uma doutrina para os homens, ou seja, ser uma tremenda provocação para a vontade humana, que aniquila todas as suas ilusões de futuro e progresso. Nietzsche pensa, portanto, a teoria do eterno retorno com o objetivo de atingir o homem na tensão de sua vontade. A natureza é pensada aqui a partir do homem, como aquilo que nada sabe sobre ele. Se quisermos compreender a unidade do pensamento de Nietzsche, não podemos agora, como numa nova inversão, querer colocar novamente em jogo a natureza contra a história. O próprio Löwith finca pé na afirmação da discrepância insolúvel de Nietzsche. Diante dessa afirmação, devemos colocar a seguinte pergunta: Como foi que Nietzsche acabou se enredando em um tal beco sem saída? Ou seja, por que para o próprio Nietzsche isso não representou uma amarra nem um fracasso, mas a grande descoberta e libertação? Para essa pergunta mais abrangente, o leitor não encontrará resposta alguma em Löwith. Mas é justamente isso que gostaríamos de compreender, isto é, tornar realizável pelo próprio pensamento. Foi isso o que fez Heidegger: construiu o sistema de referência a partir do qual as proposições de Nietzsche ganham uma ordenação recíproca. O fato desse sistema de referência não estar imediatamente expresso no próprio Nietzsche funda-se no sentido (382) metodológico desta mesma reconstrução. Löwith, ao contrário e de modo paradoxal, acaba reproduzindo o que ele próprio reconhecia como uma lacuna em Nietzsche: Reflete sobre a irreflexão; filosofa contra a filosofia, em nome da naturalidade, e apela para o sadio bom senso. Mas se este fosse um argumento filosófico, a filosofia já estaria morta há muito tempo e com isso também todo apelo a ela. Não há outra saída: Löwith só se libertará desse emaranhado ao reconhecer que o apelo à natureza e à naturalidade não é nem natureza e nem natural. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO III
Um positivismo legal que quisesse reduzir toda a realidade jurídica ao direito positivo e a sua aplicação correta dificilmente encontraria hoje alguém que o adotasse. A distância existente entre a generalidade da lei e a situação jurídica concreta, no caso particular, é insuperável por essência. Também não parece ser suficiente pensar à maneira de uma dogmática ideal, segundo a qual a força produtora de direito inerente ao caso particular seria predeterminada logicamente, no sentido de que fosse possível imaginar uma dogmática que pudesse conter, pelo menos potencialmente, todas as verdades jurídicas geralmente possíveis dentro de um sistema coerente. Mesmo a “idéia” de uma tal dogmática completa parece ser absurda, mesmo sem levarmos em conta que, de fato, a força criadora de direito do caso particular está constantemente preparando a base para novas codificações. É interessante observar nessa questão que a tarefa hermenêutica de criar uma ponte, superando a distância entre a lei e o caso particular, dá-se mesmo quando nenhuma mudança das relações sociais ou outras modificações históricas da realidade permitem que o direito vigente se mostre ultrapassado e inadequado. A distância entre lei e caso particular parece simplesmente insuperável. Nessa perspectiva, o problema hermenêutico pode ser absolvido de levar em consideração a dimensão histórica. Aquilo que deixa espaço de jogo para a concreção tampouco é uma simples e inevitável imperfeição no processo de execução da codificação jurídica, de tal modo que se poderia rebaixar idealmente esse espaço de jogo para todo e qualquer critério de medida. Parece, ao contrário, que esse modo de ser “elástico” que abre o espaço de jogo baseia-se no sentido da própria regulamentação legal e no sentido de toda ordenação jurídica em geral. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Dentro de certos limites, isto é, num certo espaço de jogo. Deixar em aberto esse espaço de jogo não cancela o sentido da ordenação jurídica. É, antes, parte essencial do estado de coisas: “A lei é (402) universal e por isso não pode fazer justiça a cada caso particular”. A questão tampouco depende da codificação das leis. Ao contrário, a codificação só é possível porque as leis, em si e segundo a sua essência, são universais. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
E não me atreveria a decidir se isso vale também para a hermenêutica jurídica, no sentido de que uma ordenação jurídica, que precisa de interpretação porque as coisas mudaram (por exemplo, com a ajuda do princípio da analogia), pode inclusive colaborar com o universal em vista de uma aplicação mais justa do direito, ou seja, no sentido de afinar o senso jurídico que guia a interpretação. Em outros âmbitos, porém, a coisa está mais clara. Não há dúvidas de que a distância criada pelo tempo confere maior visibilidade ao “significado” dos acontecimentos históricos ou ao nível de graduação das obras de arte. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Se apelarmos para o ponto de vista de uma metafísica teológica, será fácil argumentar contra esse tipo de historicismo transcendental para compreender a partir dela tudo que vale como ente, como uma produção ou como um desempenho da objetivação dessa subjetividade. Esse historicismo transcendental, ao estilo da redução transcendental de Husserl, apóia-se na historicidade absoluta da subjetividade. Se deve haver um ser-em-si e único que pode restringir a mobilidade histórica universal dos projetos de mundo que vão se produzindo por si, esse deverá ser, evidentemente, algo que supere todas as perspectivas humanas finitas, como é próprio imaginar-se de um espírito infinito. Mas isso não é nada mais que a ordem da criação, que, deste modo, impõem-se como uma ordenação anterior a todos os projetos humanos de mundo. Nesse sentido, Gerard Krüger interpretou, décadas atrás, o duplo aspecto da filosofia kantiana — seu idealismo do fenômeno e seu realismo da coisa em si — e mesmo em seus trabalhos mais recentes procurou defender o direito de uma metafísica teológica contra o subjetivismo moderno, baseado na experiência mítica ou religiosa. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
É verdade que a historiografía de um Heródoto, e mesmo a de um Plutarco, por exemplo, sabe descrever muito bem as alternâncias da historia humana, como um acervo de exemplos morais, sem refletir pura e simplesmente sobre a historicidade do próprio presente e a historicidade da existência (Dasein) humana. O paradigma das ordenações cósmicas, onde tudo que se desvirtua da norma e que é contrário à norma acaba desvanecendo-se e sendo reassumido no grande equilíbrio do curso da natureza, pode descrever também o curso das coisas humanas. A melhor ordenação das coisas, o estado ideal, é na idéia uma ordenação que dura tanto quanto o universo, e mesmo que uma realização da mesma não consiga perdurar e acabe dando lugar a uma nova confusão e desordem (o que chamamos de história), isto é conseqüência de um erro de cálculo da razão que conhece o que é justo. A ordenação justa não tem história. História é história de decadência e, em todo caso, restabelecimento da ordenação justa. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.