O conceito da realidade, ao qual Schiller opõe a poesia, já não é mais, certamente, kantiano. Porque Kant parte sempre, como vimos, do belo natural. Mas na medida em que Kant, devido à sua crítica da metafísica dogmática, restringe o conceito do conhecimento inteiramente à possibilidade da “pura ciência da natureza”, tornando assim indiscutivelmente válido o conceito da realidade nominalística, no final das contas o constrangimento ontológico em que veio a se encontrar a estética do século XIX terá de ser atribuído ao próprio Kant. Sob o domínio do preconceito nominalístico só se pode compreender o ser estético de uma forma insuficiente e equívoca. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Até se pode dizer mais do que isso: A representação da essência é tampouco uma mera imitação, que é necessariamente demonstrativa. Quem imita tem de deixar algo fora ou realçar algo. Porque ele mostra, queira ou não, terá de exagerar. Tendo isso em vista, existe uma distância de ser intransponível entre o ente que “é assim como” e aquele ao qual ele quer se igualar. Sabe-se que Platão insistiu nesse distanciamento ontológico, no mais ou no menos de desvantagem da cópia em relação ao modelo originário, e a partir daí, relegou à terceira categoria a imitação e a representação no jogo da arte, tidas como uma imitação da imitação. Não obstante, é o reconhecimento que está em obra na representação da arte, o qual possui o caráter de um genuíno conhecimento da essência e é justamente através do fato de que Platão entende todo conhecimento da essência como reconhecimento, que isso está objetivamente fundamentado: Aristóteles pôde denominar a poesia como mais filosófica do que a história. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
No que diz respeito à primeira pergunta, é somente aqui que o conceito da representação se emaranha com o conceito do quadro, que se vincula com o seu quadro original. Nas artes transitórias, das quais partimos, falamos, é verdade, de representação, mas não de quadro. A representação aparecia, nesse caso, ao mesmo tempo dupla. Tanto a obra literária como a sua reprodução, como por exemplo, no palco, é representação. E foi para nós de importância decisiva que a verdadeira experiência da arte passasse por entre a duplicação dessas representações, sem as diferenciar. O mundo que aparece no jogo da representação não está posicionado como uma cópia de seu ser. E tão-somente a reprodução, p. ex., a encenação no palco, não é uma cópia, ao lado da qual o quadro originário do próprio drama manteria seu ser-para-si. O conceito da mimesis, que foi empregado para ambas as formas de representação, não significa tanto o ato de copiar (Abbildung), como a manifestação do representado. Sem a mimesis da obra, o mundo não está aí, do mesmo modo como ele está na obra, e sem a reprodução, a obra de sua parte, não está aí. Na representação se realiza, assim, a presença do representado. Iremos reconhecer como justificado o significado fundamental desse entrelaçamento ontológico do ser original e reprodutivo com a primazia metódica que demos às artes transitórias, caso a compreensão que ali obtivemos se preserve nas artes plásticas. É claro que aí não podemos falar da reprodução como sendo genuíno ser da obra. O quadro, antes, enquanto original, rejeita o ser reproduzido. Parece claro, da mesma maneira, que o copiado na cópia possui um ser independente do quadro, e isso de tal maneira que o quadro em contraste com o representado parece ser um ser inferiorizado. Emaranhamo-nos assim na problemática ontológica do quadro original e da cópia. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Na essência da emanação reside o fato de que o emanado é uma supra-abundância. Aquilo de onde a emanação flui não se torna menor, por isso. O desenvolvimento desse pensamento através da filosofia neoplatônica, que despedaça o domínio da ontologia grega da substância, fundamenta o status ontológico positivo do quadro. Pois quando o uno original não se torna menor por causa da profusão da multiplicidade que sai dele, isso, diz certamente que o ser se torna mais. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
É evidente que o conceito da repraesentatio não se apresenta por acaso, quando se quer determinar o status ontológico do quadro, em contraste com a cópia. Tem de dar-se uma modificação substancial, sim, quase uma inversão da relação ontológica do quadro original com a cópia, caso o quadro seja um momento de “re-presentação” e, com isso, possua uma valência própria do ser. O quadro tem então uma independência que estende seu efeito sobre o quadro original. Pois, num sentido estrito, acontece que, somente através do quadro, o quadro original se torna imagem-da-origem (Ur-Bild), isto é, somente a partir do quadro é que o representado se torna plástico. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Na ciência da arte, o aspecto ontológico do quadro se revela no problema especial da formação e da mudança dos tipos. A peculiaridade dessas relações parece-me repousar no fato de que, aqui, existe um duplo devir do quadro, na medida em que a arte plástica, em face da tradição poético-religiosa, produz, mais uma vez, a mesma coisa que esta própria já faz. O conhecido dito de Heródoto, que Homero e Hesíodo teriam criado os deuses para os gregos, quer dizer que trouxeram para a variada tradição religiosa dos gregos a sistemática teológica de uma família de deuses e somente assim fixaram, nos moldes da configuração (eidos) e da função (time), configurações destacadas. A poesia produziu aqui um trabalho teológico. Ao manifestar as relações dos deuses entre si, produziu a fixação de um todo sistemático. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
2.2.2. O fundamento ontológico do ocasional e do decorativo VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
O que é um quadro — a despeito de toda diferenciação estética — continua sendo uma manifestação daquilo que ele representa, ainda que permita a manifestação do mesmo, através de sua capacidade autônoma de expressão. Na imagem do culto isso é indiscutível. Mas a diferença do sagrado e do profano é relativa nas próprias obras de arte. Mesmo o portrait individual, quando se trata de uma obra de arte, tem ainda parte na radiação misteriosa do ser, que resulta do status ontológico, daquilo que vem à representação ali. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Não é por acaso que se interpõem conceitos religiosos, quando se quer fazer valer o status ontológico das obras das belas artes contra o nivelamento estético. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
A diferença entre o quadro e o sinal tem, portanto, um fundamento ontológico. O quadro não é totalmente absorvido na sua função de referência, mas tem participação, a partir de seu próprio ser, naquilo que reproduz. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Assim, o quadro encontra-se de fato no meio entre o sinal e o símbolo. O seu representar não é nem um puro referir nem um fazer as vezes de outro. E justamente essa posição no meio, que lhe convém, eleva-o a um status ontológico que é inteiramente seu. Os sinais artísticos, tanto quanto os símbolos, recebem seu sentido funcional não como o quadro o recebe de seu próprio conteúdo, mas devem ser aceitos como sinal ou como símbolo. Denominamos essa origem de seu sentido funcional a sua instituição. É decisivo para a determinação da valência de ser do quadro, para o qual estamos voltados, que não haja instituição nesse mesmo sentido, naquilo que é um quadro. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
O conceito do decorativo torna-se, pois, apropriado para arredondar o nosso questionamento do modo de ser do estético. Mais tarde veremos que a recuperação do velho sentido transcendental do belo é aconselhável também a partir de outro ponto de vista distinto. Seja qual for o caso, o que queremos dizer, sob o termo “representação”, é um momento universal e ontológico da estrutura do estético, um acontecimento ôntico, e não, por exemplo, um acontecimento vivencial que aconteceria no momento da criação artística e que apenas seria repetida pelo ânimo que a recebe em cada caso. Ao final do sentido [165] universal do jogo tínhamos reconhecido o sentido ontológico da representação no fato de que a “re-produção” é o modo de ser originário da própria arte original. Agora está confirmado que também a imagem pictórica e as artes estatuárias no seu todo possuem, ontologicamente falando, o mesmo modo de ser. A presença específica da obra de arte é um vir-à-representação do ser. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Há que se colocar isso em prova agora, igualmente, no exemplo de se saber, se o aspecto ontológico que temos elaborado até aqui se estende também ao modo de ser da literatura. Aqui já não parece haver nenhuma representação que pudesse reivindicar uma valência ôntica própria. A leitura é um processo da pura interioridade. Nela parece consumada a liberação com respeito a toda ocasião e contingência, como se encontram na conferência pública ou na encenação. A única condição, sob a qual se encontra a literatura, é a transmissão lingüística e seu cumprimento na leitura. Será que a diferenciação estética não encontrará, com o fato de que a consciência estética se afirma a si mesma ante a obra, uma legitimação na autonomia da consciência ontológica. De qualquer livro não somente daquele afamado — pode-se dizer que é para todos e para ninguém. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Não obstante, permanece a indagação de se saber se ambos chegam a fazer justiça às exigências especulativas contidas no conceito da vida. Dilthey quer derivar a construção do mundo histórico da reflexividade que é inerente à vida, enquanto que Husserl procura derivar a constituição do mundo histórico a partir da “vida da consciência”. E a pergunta a ser feita é se em ambos os casos o autêntico conteúdo do conceito de vida não permanece ignorado através do esquema epistemológico de uma tal derivação a partir dos dados últimos da consciência. O que levanta essa questão é, sobretudo, as dificuldades que nos coloca o problema da intersubjetividade e a compreensão do eu estranho. Nisso a dificuldade parece a mesma, tanto em Husserl como em Dilthey. Os dados imanentes da consciência, examinada reflexivamente, não contêm o tu de maneira imediata e originária. Husserl tem toda a razão quando destaca que o tu não possui essa espécie de transcendência imanente, que é princípio dos objetos do mundo da experiência externa. Pois todo tu é um alter ego, isto é, é compreendido a partir do ego e, não obstante, é compreendido também como separado dele, e no modo do próprio ego, como autônomo. Em suas laboriosas investigações, Husserl procurou esclarecer a analogia do eu e do tu — que Dilthey interpreta de uma maneira puramente psicológica, através da conclusão analógica da empatia — pelo caminho da intersubjetividade do mundo comum. Foi suficientemente conseqüente para não restringir, o mínimo que fosse, a primazia epistemológica da subjetividade transcendental. Todavia, o recurso ontológico é nele o mesmo que em Dilthey. O “outro” aparece inicialmente como uma coisa da percepção, que mais tarde “se converte”, por empatia, num tu. E verdade que em Husserl esse conceito da empatia tem uma referência puramente transcendental, no entanto está orientado para a [255] interioridade (Innesein) da autoconsciência e não explicita a orientação segundo o âmbito funcional da vida, que ultrapassa em muito a consciência, e ao qual ele pretende retroceder. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Bem outra questão representa o fato de que mesmo o ser das crianças e dos animais — em oposição àquele ideal da “inocência” — continua sendo um problema ontológico. Em todo caso, seu modo de ser não é “existência” e historicidade no mesmo sentido que Heidegger reivindica para a pre-sença humana. Caberia indagar também o que significa que a existência humana encontre sustentação, por sua vez, em algo extra-histórico [268], natural. Se se quer romper o cerco da especulação idealista, não se pode evidentemente pensar o modo de ser da “vida” a partir da autoconsciência. Quando Heidegger empreendeu a revisão de sua autoconcepção filosófico-transcendental de Ser e tempo, o problema da vida teria de chamar-lhe a atenção novamente e de modo conseqüente. Assim, na Carta sobre o humanismo, fala do abismo que se abre entre o homem e o animal. Não há dúvida de que a fundamentação transcendental da ontologia fundamental realizada por Heidegger na analítica da pre-sença ainda não permitia o desenvolvimento positivo do modo de ser da vida. Aqui ficaram questões abertas. Todavia, tudo isso não muda nada no fato de que se perde completamente o sentido do que Heidegger chama “existencial”, quando se crê poder opor ao existencial da “cura” um determinado ideal de existência, seja qual for. Quem faz isso perde a dimensão do questionamento que Ser e tempo abre desde o princípio. Face a essas polêmicas míopes, Heidegger podia apelar com razão à sua intenção transcendental, no mesmo sentido em que era transcendental o questionamento kantiano. O seu questionamento estava, desde os seus primórdios, acima de toda diferenciação empírica e, por conseqüência, também de toda diferenciação de um ideal de conteúdo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
O que Heidegger diz aqui não é em primeiro lugar uma exigência à praxis da compreensão, mas, antes, descreve a forma de realização da própria interpretação compreensiva. A reflexão hermenêutica de Heidegger tem o seu ponto alto não no fato de demonstrar que aqui esta prejaz um círculo, mas, antes, que este círculo tem um sentido ontológico positivo. A descrição como tal será evidente para qualquer intérprete que saiba o que faz. Toda interpretação correta tem que proteger-se contra a arbitrariedade da ocorrência de “felizes idéias” e contra a limitação dos hábitos imperceptíveis do pensar, e orientar sua vista “às coisas elas mesmas” (que para os filólogos são textos com sentido, que também tratam, por sua vez, de coisas). Esse deixar-se determinar assim pela própria coisa, evidentemente, não é para o intérprete uma decisão “heróica”, tomada de uma vez por todas, mas verdadeiramente “a tarefa primeira, constante e última”. Pois o que importa é manter a vista atenta à coisa, através de todos os desvios a que se vê constantemente submetido o intérprete em virtude das idéias que lhe ocorram. Quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se avança na penetração do sentido. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Portanto, não se trata, de modo algum, de assegurar-se a si mesmo contra a tradição que faz ouvir sua voz a partir do texto, mas, pelo contrário, de manter afastado tudo o que possa impedir alguém de compreendê-la a partir da própria coisa. São os preconceitos não percebidos os que, com seu domínio, nos tornam surdos para a coisa de que nos fala a tradição. A comprovação de Heidegger, segundo a qual no conceito de consciência de Descartes e no espírito de Hegel continua dominando a ontologia grega da substância, que interpreta o ser como ser atual e ser presente, vai, obviamente, mais além da autocompreensão da metafísica moderna, mas não arbitrária e aleatoriamente, senão que a partir de uma “posição” prévia que realmente permite compreender essa tradição, porque põe a descoberto as premissas ontológicas do conceito de subjetividade. E, inversamente a isso, Heidegger descobre na crítica kantiana à metafísica “dogmática” a idéia de uma metafísica da finitude, na qual seu próprio projeto ontológico deve ser validado. Desse modo, “assegura” o tema científico introduzindo-o e pondo-o em jogo na compreensão da tradição. E assim que se mostra a concreção da consciência histórica, da qual se trata no compreender. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Porém, essa nossa relação com a tradição, essa comunhão está submetida a um processo de contínua formação. Não se trata simplesmente de uma pressuposição, sob a qual nos encontramos sempre, porém nós mesmos vamos instaurando-a, na medida em que compreendemos, em que participamos do acontecer da tradição e continuamos determinando-o, assim, a partir de nós próprios. O círculo da compreensão não é, [299] portanto, de modo algum, um círculo “metodológico”, pois isso sim, descreve um momento estrutural ontológico da compreensão. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Este conceito da compreensão rompe, evidentemente, o círculo traçado pela hermenêutica romântica. Na medida em que já não se refere à individualidade e suas opiniões, mas à verdade da coisa, um texto não é entendido como mera expressão vital, mas é levado a sério na sua pretensão de verdade. O fato de que também isso, ou até precisamente isso, se chame “compreender” era antes uma obviedade — nisso recordo-me da citação de Chladenius. No entanto, a dimensão do problema hermenêutico foi desacreditada pela consciência histórica e pela versão psicológica que Schleiermacher deu à hermenêutica, e só pôde ser recuperada quando se tornaram patentes as aporias do historicismo e quando estas conduziram finalmente àquela mudança de rumo, nova e fundamental, para a qual, na minha opinião, o trabalho de Heidegger deu o mais decisivo impulso. Pois a distância de tempo em sua produtividade hermenêutica só pôde ser pensada a partir da mudança de rumo ontológico que Heidegger deu à compreensão como um “existencial” e a partir da interpretação temporal que aplicou ao modo de ser da pre-sença. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Entretanto, quando se pensa na essência da experiência somente por referência à ciência, como faz Aristóteles, simplifica-se o processo no qual se produz. É verdade que a imagem descreve precisamente esse processo, mas o faz sob pressupostos simplificadores que não têm validade sob a forma como aparecem aqui. Como se o que é típico da experiência se oferecesse a si mesmo, sem contradições! Aristóteles assume como dado de antemão esse comum que fica em repouso em meio à fuga das observações e se configura como geral; a generalidade do conceito é para ele um prius ontológico. O que interessa a Aristóteles na experiência é unicamente a sua contribuição à formação dos conceitos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Não obstante, mesmo em Tomás não coincidem por completo os conceitos de logos e verbum. É verdade que a palavra não é o acontecimento do pronunciador, essa entrega inapelá-vel do próprio pensamento ao outro. Porém, o caráter ontológico da palavra é também um acontecer. A palavra interior fica referida à possibilidade de se exteriorizar. O conteúdo da coisa, tal como é concebido pelo intelecto, está ordenado para a sua conversão em som (similitudo rei concepta in intellectu et ordinata ad manifestationem vel ad se vel ad alterum). Por conseqüência, a palavra interior certamente não está referida a uma língua determinada, não são palavras que têm o caráter de pairar à nossa frente, que nos chegam a partir da memória, mas é a conjuntura (Sachverhalt) pensada até o final (forma excogitata). E na medida em que se trata de um pensar até o final, é forçoso reconhecer também nele um momento processual: comporta-se per modo egredientes. Claro que não é manifestação, mas pensar; porém o que se alcança nesse dizer-se-a-si-mesmo é a perfeição do pensar. A palavra interior, na medida em que expressa o pensar, reproduz ao mesmo tempo a finitude da nossa compreensão discursiva. Como a nossa compreensão não está em condições para abarcar num só golpe do pensar tudo o que sabe, não tem outro remédio que trazer para fora, a partir de si mesma, em cada caso, o que pensa, pondo-o diante de si, numa espécie de própria declaração interna. Nesse sentido todo pensar é um dizer-se. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Mas é realmente verdade que esse mundo é um mundo do ser em si, que já suplantou toda relatividade do estar-aí e cujo conhecimento pode, por conseguinte, reclamar o título de ciência absoluta? O próprio conceito de um “objeto absoluto” não é uma espécie de ferro de madeira? Nem o universo biológico nem o universo físico podem negar realmente a relatividade ao estar-aí, que lhes é própria. A física e a biologia têm, por conseqüência, o mesmo horizonte ontológico que, na sua qualidada [456] de ciências, não podem passar por cima. Conhecem o que é, e, como Kant mostrou, isso significa que o conhecem, tal como está dado no espaço e no tempo e como é objeto da experiência. Isso define justamente o progresso de conhecimento que se busca na ciência. Tampouco o mundo da física pode querer ser o todo do ente. Mesmo uma equação universal que transcrevesse tudo quanto é, de maneira que também o observador do sistema aparecesse nas equações do mesmo, continuaria pressupondo o físico que, enquanto calculador, não seria o calculado. Uma física que se calculasse a si mesma e fosse o seu próprio calcular seria uma contradição em si mesma. E o mesmo se pode dizer da biologia, que investiga os mundos vitais e os modos de comportamento do homem. O que é reconhecido, nesse caso, vale certamente também para os homens. O que nela se conhece abrange, é claro, também o ser do investigador, pois também ele é um ser vivo e um homem. Não obstante, disso não se deduz, de modo algum, que a biologia seja apenas um modo de comportamento do homem, e que somente interessa como tal. Ela é também conhecimento (ou erro). A biologia investiga, tal como a física, o que é, e ela não é, por sua vez, o que investiga. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Convém não desatender esse aspecto, quando se pretende afirmar que a origem da ciência é grega. Já devia ter passado definitivamente o tempo em que se tomava como padrão o método científico moderno e se interpretava Platão por referência a Kant, e a idéia por referência à lei da natureza (neokantismo), ou se alardeava que em Demócrito já aparecia o começo esperançoso do verdadeiro conhecimento “mecânico” da natureza. Já uma simples reflexão sobre a superação fundamental hegeliana do ponto de vista da compreensão, sob o fio condutor da idéia da vida, pode mostrar os limites de semelhante consideração. Creio que Heidegger alcança mais tarde, no Ser e tempo, o ponto de vista, sob o qual se pode pensar tanto a diferença, quanto a vinculação entre a ciência grega e a moderna. Quando mostra o conceito do ser simplesmente dado (Vorhandenheit) como um modo deficiente do ser, e quando, o reconhece como pano de fundo da metafísica clássica e de sua sobrevivência no conceito moderno da subjetividade, persegue de fato um nexo ontológico correto entre a teoria grega e a ciência moderna. No horizonte de sua interpretação temporal do ser, a metafísica clássica lhe parece, em seu conjunto, como uma ontologia do simplesmente dado, e a ciência moderna lhe parece, sem dar-se conta disso, sua herdeira. Na própria teoria grega havia, no entanto, algo mais que isso. Theoria abarca não tanto o simplesmente dado, mas também a própria coisa (Sache), que ainda tem a dignidade da “coisa” (“Ding”). O próprio Heidegger destacará mais tarde, que a experiência da coisa tem pouco a ver com a pura constatabilidade do mero ser simplesmente dado, como com a experiência das chamadas ciências empíricas. Por conseqüência, [460] temos de manter tanto a dignidade da coisa como a objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, livres do preconceito contra a ontologia do simplesmente dado e portanto do conceito da objetividade (Objetivität). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
O modo de ser especulativo da linguagem mostra assim seu significado ontológico universal. O que vem à fala é, naturalmente, algo diferente da própria palavra falada. Mas a palavra só é palavra em virtude do que nela vem à fala. Somente está aí em seu próprio ser sensível para subsumir-se no que é dito. Inversamente, também o que vem à fala não é algo dado com anterioridade e desprovido de fala, mas recebe na palavra sua própria determinação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
A partir do centro da linguagem, o procedimento objetivador do conhecimento da natureza e o conceito do ser em si, que corresponde à intenção de todo conhecimento, se nos mostraram como o resultado de uma abstração. Esta, arrancada reflexivamente da relação original com o mundo, relação que está dada na constituição lingüística de nossa experiência de mundo, procura certificar-se do ente, organizando seu [480] conhecimento metodologicamente. Anatemiza, conseqüentemente, toda forma de saber que não garante essa certeza e que, por conseguinte, não seja capaz de servir à crescente dominação da natureza. Face a isso, procuramos libertar do preconceito ontológico o modo de ser próprio da arte e da história, assim como a experiência correspondente a ambas, preconceito que está implicado no ideal de objetividade que a ciência coloca; e frente à experiência da arte e da história vimo-nos conduzidos a uma hermenêutica universal que atinge a relação geral do homem com o mundo. E se já formulamos essa hermenêutica universal, a partir do conceito da linguagem, o fizemos não somente para evitar o falso metodologismo que é responsável pela estranheza do conceito da objetividade nas ciências do espírito — devia-se evitar também o espiritualismo idealista de uma metafísica da infinitude, ao modo de Hegel. A experiência hermenêutica fundamental não se articulava somente na tensão entre estranheza e familiaridade, compreensão e mal-entendido, que era o que dominava o projeto de Schleiermacher. Ao contrário, ao final vimos que, com sua teoria da perfeição adivinhatória da compreensão, Schleiermacher se apresenta em imediata proximidade a Hegel. Se nós partimos da lingüisticidade da compreensão, sublinhamos, pelo contrário, a finitude do acontecer lingüístico em que se concretiza em cada caso a compreensão. A linguagem que as coisas exercem, sejam elas quais e como forem, não é logos ousias e não alcança a sua plena realização na autocontemplação de um intelecto infinito — é a linguagem que toma nossa essência histórica finita, quando aprendemos a falar. Isso vale não menos para a linguagem dos textos da tradição, e por isso coloca a si mesma a tarefa de uma hermenêutica verdadeiramente histórica. Isso vale também para a experiência tanto da arte como da história, e mais ainda, os conceitos de “arte” e “história” são, por sua vez, formas de acepção, que somente se desdobram do modo de ser universal do ser hermenêutico, como formas da experiência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Nessa função anagógica do belo, que Platão descreve de forma inolvidável torna-se visível um momento ontológico da estrutura do belo e também uma estrutura universal do próprio ser. Evidentemente que o que caracteriza o belo, face ao bom, é que se mostra por si mesmo, que se torna transparente diretamente em seu próprio ser. Com isso ele assume a função ontológica mais importante que pode haver, a da mediação entre a idéia e o fenômeno. Ela é a cruz metafísica do platonismo, que se cristaliza no conceito da participação (methexis) e é concernente tanto à relação do fenômeno com a idéia como à das idéias entre si. Como o Fedro mostra, não é casual que Platão goste de ilustrar essa problemática relação da “participação” com o exemplo do belo. A idéia do belo encontra-se verdadeiramente presente naquilo que é belo, indiviso e inteiro. Por isso, o exemplo do belo permite tornar patente a “parusia” do eidos a que se refere Platão, mostrando a evidência da coisa, face às dificuldades lógicas da participação do “devir” no “ser”. “A presença” pertence ao ser do próprio belo, de maneira plenamente convincente. Por mais que a beleza se experimente como reflexo de algo supraterreno, ela está no visível. É no modo de seu aparecer, que ela mostra como algo realmente diferente, uma essência de outra ordem. Aparece de repente, e igualmente de repente e sem transições, sem mediações, já se foi. Se se tem de falar, com Platão, de um hiato (chorismos) entre o sensível e o ideal, aqui está ele, e aqui já está também encerrado. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Na engenhosa interpretação agostiniana do “Gênesis” reconhecemos um prenúncio daquela interpretação especulativa da linguagem que desenvolvemos na análise estrutural da experiência hermenêutica do mundo, segundo a qual a multiplicidade do que é pensado surge somente a partir da unidade da palavra. Ao mesmo tempo podemos reconhecer que a [488] metafísica da luz faz valer um aspecto do conceito antigo do belo, que pode afirmar seu direito inclusive à margem de sua relação com a metafísica da substância e da referência metafísica do espírito divino infinito. O resultado da nossa análise da posição do belo na filosofia grega clássica é, pois, que, também para nós, esse aspecto da metafísica pode, todavia, adquirir um significado produtivo. O fato de que o ser seja um representar-se, e de que todo compreender seja um acontecer, essa primeira e essa última perspectiva superam o horizonte da metafísica da substância do mesmo modo que o experimentou o conceito da substância ao converter-se nos conceitos da subjetividade e da objetividade científicas. Desse modo, a metafísica do belo não carece de conseqüências para o nosso próprio questionamento. Já não se trata, como se mostrou na tarefa da discussão do século XIX, de justificar pela teoria da ciência a pretensão de verdade da arte e do artístico — ou também a da história e a da metodologia das ciências do espírito. A tarefa que nos é colocada agora é muito mais geral: consiste em fazer valer o pano de fundo ontológico da experiência hermenêutica do mundo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Nesse ponto, parece-me que a hermenêutica tradicional não superou ainda, totalmente, as conseqüências do psicologismo. Na leitura e compreensão de um escrito está em questão um processo, pelo qual aquilo que está fixado no texto deve elevar-se a uma nova expressão e deve concretizar-se de novo. Ora, a essência do falar concreto consiste em que aquilo que se tem em mente sempre ultrapassa o que é dito. Por isso, creio que se trata de um mal-entendido ontológico imperceptível hipostasiar o que quem fala tem em mente como o padrão de medida da compreensão. Como se fosse possível primeiro criá-lo num tipo de comportamento reprodutivo para depois aplicá-lo como padrão de medida às palavras. Como vimos, a leitura não é uma reprodução que permite comparação com o original. É o mesmo que ocorre com a doutrina epistemológica, superada pala investigação fenomenológica, segundo a qual temos na consciência uma imagem da suposta realidade, a que se chama de “representação”. Toda leitura ultrapassa os vestígios enrijecidos da palavra em direção ao sentido do que é propriamente dito; não se trata, portanto, de um retroceder ao processo originário de produção, que devesse ser compreendido como uma realização da alma ou como um fenômeno expressivo. E além disso o que conhece do que se tem em mente são apenas os vestígios da palavra. Isso inclui que quando alguém compreende o que um outro diz, este algo não é apenas o que o outro tinha em mente, mas algo partilhado, comum. Quem traz à fala um texto pela leitura, mesmo que seja sem qualquer articulação sonora, estaráconstruindo seu sentido, na direção semântica que tem o texto, dentro do universo de sentido a que ele próprio está aberto. É neste ponto que, em última instância, se justifica o ponto de vista romântico que segui, segundo o qual todo compreender já é interpretar. Schleiermacher afirmou-o de modo expresso: “A interpretação distingue-se da compreensão apenas como o falar em voz alta distingue-se do falar interior”. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Mesmo que a leitura não seja reprodução, todo texto que lemos só se realiza na compreensão. Também o texto que está sendo lido experimenta um crescimento ontológico, e é só através deste que a obra recebe sua atualidade plena. Creio que isso se dá, mesmo quando não se trata de reprodução no palco ou no púlpito. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
O que Heidegger diz aqui não é de imediato uma exigência da praxis da compreensão. Ele descreve a forma de realização da própria interpretação compreensiva.». O ponto culminante da reflexão hermenêutica de Heidegger não se encontra na demonstração de que há um círculo, mas antes no fato de esse círculo possuir um sentido ontológico positivo. A descrição como tal torna-se evidente para todo intérprete que saiba o que faz. Toda interpretação correta deve guardar-se da arbitrariedade dos “chutes” e do caráter limitado de hábitos mentais inadvertidos, de maneira a voltar-se “para as coisas elas mesmas” (que para os filólogos são textos com sentido, que por seu turno tratam novamente de coisas). VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.
Dessa forma, também a herança cristã da metafísica grega, a escolástica medieval, concebe a palavra a partir da species, como sua perfeição, sem compreender o mistério de sua encarnação. A experiência de mundo que se dá na linguagem e que orientou originariamente o pensamento metafísico acaba tornando-se algo secundário e contingente. Através de convenções próprias da linguagem, ela esquematiza o olhar pensante que se dirige às coisas, fechando-lhe o acesso à experiência originária do ser. Na verdade, porém, é ao caráter de linguagem da experiência de mundo que se esconde por trás da aparência de prioridade das coisas frente à sua manifestação na linguagem. É sobretudo a suposta possibilidade de objetivação universal de tudo e de todos que se apoia na idéia da universalidade da linguagem, e que através dessa suposição se coloca na penumbra. À medida que a linguagem — pelo menos na família das línguas indo-germânicas — dispõe da possibilidade de estender a função nominativa geral a qualquer parte da oração e transformar tudo em sujeito para outras sentenças possíveis, ela erige a aparência universal de coisificação, que acaba degradando a própria linguagem a um mero meio de entendimento. Por mais que procure descobrir os desvios verbais pela elaboração de sistemas de signos artificiais, nem mesmo a moderna analítica da linguagem é capaz de questionar o pressuposto fundamental desta objetivação. Ensina, ao contrário, e apenas pela sua [74] autolimitação, que enquanto todos esses sistemas pressuporem a linguagem natural, nenhuma liberação real pode se realizar, a partir do âmbito da linguagem, mediante a introdução de sistemas de signos artificiais. Assim como a clássica filosofia da linguagem constatou que a questão da origem da linguagem é uma questão insustentável, também a reflexão sobre a idéia de uma linguagem artificial levou à auto-suspensão dessa idéia e com isso à legitimação das linguagens naturais. Mas, via de regra, o que isso implica permanece impensado. Sabe-se, por certo, que as línguas têm sua realidade, em geral, lá onde são faladas, isto é, onde as pessoas logram entender-se entre si. Mas que tipo de ser é este que convém à linguagem? Aquele de um meio de entendimento? Parece-me que, ao desvincular o conceito da syntheke do seu sentido ingênuo de “convenção”, Aristóteles já havia chamado a atenção para o verdadeiro caráter ontológico da linguagem. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
A função que a busca de linguagem desempenha na filosofia é primordial. É o que se pode perceber pela função desempenhada aqui pela terminologia: em si, em sua configuração no âmbito da linguagem o conceito apresenta-se como termo, isto é, como uma palavra bem circunscrita e univocamente delimitada em sua significação. Todo mundo sabe, porém, que não é possível um falar terminológico, nos moldes da exatidão do cálculo com símbolos matemáticos. É verdade que o falar lança mão de termos. Mas isso significa que esses termos se incorporam constantemente no processo de entendimento, exercendo sua função própria de linguagem no seio desse processo. Em contraposição à possibilidade de criar termos fixos que exerçam funções de conhecimento determinadas, como acontece nas ciências e de modo exemplar na matemática, o uso filosófico da linguagem, como vimos, não possui outra credencial a não ser que se dá na linguagem. O que ali se exige é certamente uma credencial específica, enquanto a primeira tarefa apresentada para a correlação de palavra e conceito, de linguagem falada e pensamentos que se articulam em palavras conceptuais. Trata-se de esclarecer o encobrimento da origem conceitual das palavras filosóficas, se quisermos demonstrar a legitimidade de nossas perguntas. Um exemplo clássico que vivenciamos nesse século é a descoberta do pano de fundo histórico-conceitual, oculto no conceito de “sujeito” e suas implicações ontológicas. “Sujeito”, em grego, é hypokeimenon, o subjacente, palavra introduzida por Aristóteles para designar, diante da mudança de diversas formas fenoménicas do ente, aquilo que não muda, e subjaz a essas qualidades mutáveis. Mas será que quando se usa a palavra sujeito ainda se ouve esse hypokeimenon, subiectum, que subjaz a tudo o mais, uma vez que estamos, todos nós, inseridos na tradição cartesiana, pensando o conceito de sujeito como a auto-reflexão, o ter consciência de si? Quem ouve ainda que “sujeito” é originalmente “o que subjaz no fundo”? Mas pergunto também quem não o ouve ali? Quem não pressupõe que aquilo que se determina pela auto-reflexão está ali como um ente que se conserva na mudança de suas qualidades como o que subjaz no fundo, como o suporte? O encobrimento (Unaufgedeckheit) dessa genealogia histórico-conceitual fez com que se pensasse o sujeito como algo caracterizado pela sua autoconsciência, só consigo mesmo e colocado diante da incômoda questão de como poderá sair dessa sua splendid isolation. Foi assim que surgiu a pergunta pela realidade do mundo exterior. Foi a crítica de nosso século que reconheceu que a pergunta sobre como nosso pensamento, nossa consciência poderia alcançar o mundo externo, estava falsamente colocada, uma vez que consciência não é outra coisa do que consciência de algo. A primazia da autoconsciência frente à consciência de mundo é um preconceito ontológico que se enraíza, em última instância, na influência incontrolado do conceito de subiectum, no sentido de hypokeimenon, ou do correspondente conceito latino de substância. A autoconsciência determina a substância autoconsciente frente a todo outro ente. Mas como podem se encontrar a natureza extensa e a substância autoconsciente? Como essas substâncias tão distintas entre si podem se influenciar? Esse foi o célebre problema dos inícios da filosofia moderna, que é também a base do suposto dualismo metodológico entre ciências da natureza e ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.
Um outro exemplo muito simples é o conceito aristotélico de hylé, a matéria. Quando falamos de matéria já nos encontramos muito distantes da compreensão aristotélica do conceito de matéria. Isto porque Aristóteles compreendeu hylé, que originariamente significa madeira para construção, empregada para com ela se fazer algo, como um princípio ontológico. Expressa o espírito técnico dos gregos, que colocam essa palavra num lugar central na filosofia. Aquilo que é a forma, aparece como o resultado de um esforço e produção técnicos, que conformam algo que não tinha forma. Seria, no entanto, subestimar Aristóteles, acreditar que o conceito aristotélico de hylé equivaleria ao conceito tosco de um material que é por si e que depois o artesão espiritual toma e lhe imprime “forma”. Com esse conceito tosco tirado do universo do artesão, Aristóteles quis descrever sobretudo uma relação ontológica, um momento estrutural do ser que exerce sua função em todo pensamento e conhecimento dos entes, não apenas naquilo que nos rodeia como natureza, mas também no âmbito da matemática (noété hylé). Quis mostrar que, ao conhecermos e determinarmos algo como algo, esse é sempre pensado como algo ainda indeterminado, que só distinguimos de todo o resto por uma determinação adicional. É nesse sentido que afirma que a hylé exerce a função de gênero. A isso corresponde a teoria clássica da definição de Aristóteles, segundo a qual a definição contém o gênero próximo e a diferença específica. No pensamento aristotélico, portanto, a hylé assumiu função ontológica. . VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.
Parece-me que no século XX atribui-se ao conceito da historicidade um sentido ontológico semelhante, tanto no primeiro Heidegger quanto em Jasper. A historicidade não representa mais uma delimitação restritiva da razão e de seu postulado de verdade, sendo, antes, uma condição positiva para o conhecimento da verdade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
Mesmo a brilhante dialética com que E. Betti procurou justificar o legado da hermenêutica romântica conjugando o subjetivo e o objetivo mostrou-se insuficiente depois que Ser e tempo demonstrou o caráter ontológico prévio do conceito de sujeito e sobretudo quando o Heidegger tardio fez ruir o âmbito da reflexão filosófico-transcendental com a idéia da “virada” (Kehre). O “acontecimento” da verdade que forma o espaço de jogo do desocultar e ocultar conferiu um novo caráter ontológico a todo desocultar, mesmo àquele das ciências da compreensão. Isso possibilitou a formulação de uma série de novas perguntas à hermenêutica tradicional. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
Heidegger, porém, não ficou preso ao esquema transcendental, que ainda determinava o conceito de autocompreensão em Ser e tempo. Já em Ser e tempo a verdadeira questão não era de que maneira se pode compreender o “ser”, mas de que maneira a compreensão é “ser”. A compreensão de ser constitui a caracterização existencial da pre-sença humana. Já aqui não se compreende ser como o resultado de uma produção objetivadora da consciência, como ainda era o caso na fenomenologia de Husserl. Quando a pergunta pelo ser visa o ser da pre-sença que compreende a si própria, assume-se uma dimensão inteiramente diversa. Nessa pergunta, o esquema transcendental acaba fracassando. Assume-se no questionamento ontológico a contraposição infinita do ego transcendental. Nesse sentido, já em Ser e tempo se começa a superar aquele esquecimento do ser que Heidegger caracterizou mais tarde como a essência da metafísica. O que ele chama de “virada” (die Kehre) nada mais é que o reconhecimento da impossibilidade de superar o esquecimento do ser na reflexão transcendental. Nesse sentido, todos os conceitos posteriores, o “acontecer do ser”, o “pré” como a “clareira” do ser etc. são conseqüências implícitas no primeiro enfoque de Ser e tempo. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.
Essa palavra, de há muito usada em sentido comum, foi cunhada [135] como conceito pelo Conde Yorck de Wartenburg, o amigo filósofo de Wilhelm Dilthey. Dilthey, por sua vez, colocou-a em circulação, até alcançar seu sentido mais acurado na filosofia de nosso século, com Heidegger e Jaspers. A novidade desse conceito de historicidade foi a inclusão de um enunciado ontológico. Já Yorck falava da “distinção genérica entre o ôntico e o histórico”. O conceito de historicidade não enuncia algo sobre um nexo do acontecer que se deu realmente, mas sobre o modo de ser do homem que está na história e que somente pode ser compreendido a fundo em seu ser pelo conceito de historicidade. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.
Há, certamente, uma resistência em aplicar o conceito moderno de teoria à filosofia prática, que já pretende ser prática por sua própria autodeterminação. Por isso, estabelecer condições especiais de cientificidade, que sejam válidas para essas esferas, sobretudo quando Aristóteles as caracterizava com a vaga indicação de que são ciências menos exatas, é um problema extremamente árduo. No caso da filosofia prática, a situação é muito mais complexa e exigiu de Aristóteles uma certa reflexão metodológica. A filosofia prática necessita de uma legitimação de caráter próprio. O problema decisivo é, evidentemente, que essa ciência prática está relacionada com o problema global do bem na vida humana, que não se restringe, como as technai, a uma esfera determinada. Apesar disso, a expressão “filosofia prática” significa que para os problemas práticos não convém fazer-se um uso determinado de argumentos de tipo cosmológico, ontológico e metafísico. Se aqui for preciso limitar-se ao que for relevante para o ser humano, ao bem prático, o método que aborda essas questões do fazer prático é sem dúvida radicalmente diferente da razão prática. Já no aparente pleonasmo de uma “filosofia teórica” e principalmente na autodesignação “filosofia prática”, podemos encontrar algo que acompanha, até hoje, a reflexão dos filósofos: o fato de que a filosofia não pode renunciar completamente à pretensão de não somente saber, mas também de ter influência prática, isto é, à pretensão de promover, enquanto “ciência do bem no âmbito da vida humana”, esse mesmo bem. Para nós, isso é algo óbvio também nas ciências poiéticas, as chamadas technai. Essas “artes”, nas quais o uso é o decisivo. No caso da ética política, a coisa é diferente e, sem dúvida, é quase impossível renunciar a essa pretensão prática. É por isso que se manteve definitivamente até nossos dias. A ética não se limita a descrever as normas vigentes, mas busca fundamentar sua validez e ou introduzir normas mais justas. Esse passou a ser um verdadeiro problema, ao menos desde a crítica de Rousseau ao orgulho racional do Iluminismo. Como a “ciência filosófica das coisas morais” pode legitimar seu direito à existência se a incorruptibilidade da consciência moral natural pode na verdade conhecer e escolher o bem e o dever com uma precisão insuperável e com a mais apurada sensibilidade? Aqui certamente não é o lugar para analisar mais amplamente como, frente a esse desafio de Rousseau, Kant fundamentou a tarefa da filosofia moral. Tampouco é possível explicar como Aristóteles [305] coloca e resolve o mesmo problema sublinhando as condições especiais que encontra o aprendiz capaz de receber de modo razoável uma instrução teórica sobre o “bem prático”. A filosofia prática é aqui somente um exemplo de uma tradição desse saber que não se ajusta ao conceito moderno de método. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.
Logo que Heidegger se deu conta disso, assumiu os riscos do pensamento radical de Nietzsche. Não encontrou outros caminhos a não ser os Holzwege (Sendas perdidas), que depois da curva do caminho esbarravam no intransitável. Mas terá só a linguagem da metafísica o que sustentou esse feitiço paralisante do idealismo transcendental? Heidegger extraiu as últimas conseqüências de sua crítica ao vazio ontológico da consciência e à autoconsciência abandonando a idéia da fundamentação metafísica. Essa virada e esse abandono, não obstante, continuaram sendo uma luta permanente com a metafísica. Para preparar sua superação era preciso não só pôr em evidência o subjetivismo moderno destruindo seus conceitos indemonstrados, mas resgatar à luz do conceito, como elemento positivo, a experiência primordial grega do ser, por trás do auge e do domínio da metafísica ocidental. O retorno de Heidegger à experiência do ser nos inícios pré-socráticos, partindo do conceito aristotélico de physis, foi na realidade um extravio aventureiro. De certo, Heidegger sempre teve presente o objetivo último, embora ainda muito vago: repensar o início, o inicial. Aproximar-se do início significa sempre dar-se conta de outras possibilidades abertas no percurso de retorno do caminho percorrido. Aquele que se situa no começo deve escolher o caminho, e aquele que retorna ao começo percebe que desde o ponto de partida poderia ter escolhido outros caminhos — assim como o pensamento oriental percorreu outros caminhos. Quem sabe se esse último ocorreu à margem da livre escolha, como é o caso da opção ocidental. Deve-se, antes, às circunstâncias que fizeram com que a ausência de uma construção gramatical de sujeito e objeto não levasse o pensamento oriental a desembocar numa metafísica de substância e acidente. Por isso, não surpreende que, em seu regresso ao começo, o próprio Heidegger tenha experimentado certo fascínio pelo pensamento oriental, buscando em vão nele aprofundar-se com a ajuda de visitantes japoneses e chineses. Não é fácil sondar as línguas, sobretudo a base comum de todas as línguas do próprio círculo cultural. Na verdade, mesmo na história das próprias origens é impossível encontrar realmente o começo. O começo retrocede sempre ao incerto, como ocorre ao viajante costeiro na célebre descrição da regressão no tempo, feita por Thomas Mann no início de sua A montanha mágica: por detrás do último relevo aparece sempre outro novo, num processo interminável. Correspondentemente, Heidegger acreditou encontrar a experiência inicial do ser em Anaximandro, em Heráclito, em Parmênides e por fim de novo em Heráclito, sucessivamente, testemunhos da [364] mútua pertença entre desvelamento (Entborgenheit) e velamento (Verbergung). Em Anaximandro acredita encontrar a presença mesma e a permanência de seu ser, em Parmênides o coração sem palpitações da aletheia, em Heráclito a physis que ama esconder-se. Mas tudo isso acaba sendo válido como indicação das palavras que assinalam para o intemporal, mas não para o discurso, quer dizer, para a auto-exposição do pensamento que encontramos nos textos primitivos. Heidegger pôde reconhecer sua própria visão do ser sempre apenas no nome, na força nominativa das palavras e em seus labirintos intransitáveis como artérias de ouro: esse “ser” não deveria ser o ser do ente. Os próprios textos mostraram sempre de novo não serem o último relevo no caminho que abria a visão para a clareira do ser. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Mas no idealismo alemão não foi tanto a reformulação de palavras e o forçar significados literais o que contribuiu para dissolver a figura tradicional dos conceitos metafísicos. Isso se deu principalmente pela tentativa de levar os princípios a sua contraposição e contradição. Desde a Antigüidade a dialética consiste em levar os antagonismos imanentes a seu extremo contraditório. E quando a defesa de dois enunciados contrapostos não tem um sentido meramente negativo, mas aponta à unificação do contraditório, alcança-se então em certa medida a possibilidade extrema que capacita o pensamento metafísico, isto é, o pensamento que se orienta por conceitos originariamente gregos, para o conhecimento do absoluto. A vida, porém, é liberdade e espírito. A conseqüência íntima dessa dialética, em que Hegel viu o ideal da demonstração filosófica, permite-lhe superar a subjetividade do sujeito e conceber o espírito também como espírito objetivo, como foi indicado acima. Mas em seu resultado ontológico esse movimento acaba de novo na presença absoluta do espírito ante si mesmo, como atesta a conclusão da Enciclopédia hegeliana. É por isso que Heidegger manteve um debate permanente e tenso com a sedução da dialética que, em lugar da destruição dos conceitos gregos, acabou transformando-os em conceitos dialéticos aplicados ao espírito e à liberdade, domesticando de certo modo o próprio pensamento. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Não podemos analisar aqui como foi que, partindo de sua intenção fundamental, Heidegger manteve e subsumiu em seu pensamento tardio a obra de destruição de seus inícios. O estilo sibilino de seus últimos escritos atesta isso muito claramente. Ele estava plenamente consciente de sua carência de linguagem assim como da nossa. Ao lado de suas próprias tentativas de abandonar “a linguagem da metafísica” com a ajuda da linguagem poética de Hölderlin, parece-me que só houve dois caminhos transitáveis para indicar esse caminho que leva ao aberto, frente à autodomesticação ontológica própria da dialética. Esses dois caminhos foram [368] efetivamente transitados. Um deles é o regresso da dialética ao diálogo e desse à conversação. Eu mesmo procurei seguir esse caminho em minha hermenêutica filosófica. O outro caminho é o da desconstrução, estudado por Derrida. Não se trata aqui de resgatar o sentido que desaparecera da vivacidade da conversação. No pano de fundo da trama das relações de sentido que sustentam todo falar, num conceito ontológico de écriture, portanto — em lugar do falatório ou da conversação — deve-se dissolver a unicidade de sentido, levando a cabo, assim, a verdadeira ruptura da metafísica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Talvez a crítica que Derrida dirige à interpretação heideggeriana de Nietzsche — interpretação que a mim me convenceu — possa servir de ilustração para a problemática que levantamos e que nos tem ocupado. Temos de um lado a desconcertante riqueza de aspectos e o incessante jogo de disfarces, no qual a audácia mental de Nietzsche parece dispersar-se numa variedade inapreensível. De outro, a pergunta a ele dirigida: o que significa o jogo dessa audácia. Não que o próprio Nietzsche tivesse presente a unidade na dispersão, nem que tivesse traduzido em conceitos o nexo interno entre o princípio básico da vontade de poder e a mensagem meridiana do eterno retorno do mesmo. Se eu compreendo Heidegger, é precisamente isso o que Nietzsche não fez, de modo que as metáforas de suas últimas visões aparecem como facetas reflexivas, detrás das quais não há uma realidade unívoca. Essa seria, segundo Heidegger, a posição final de Nietzsche, onde se esquece e se perde a pergunta pelo ser. Assim, a era tecnológica na qual o niilismo alcança sua perfeição, significaria de fato, segundo o próprio Heidegger, o eterno retorno do mesmo. Pensar isso, assimilar a Nietzsche pelo pensamento, não me parece ser nenhuma recaída na metafísica e em seu esquema ontológico, que culmina no conceito de essência. Nesse caso, os caminhos de Heidegger, que estão a caminho de uma “essência” de estrutura radicalmente distinta, temporal, não se perderiam sempre de novo no intransitável. O diálogo que continuamos em nosso próprio pensamento e que talvez se enriquece em nosso tempo com novos e grandes interlocutores, numa humanidade de dimensões planetárias, deveria buscar sempre seu interlocutor… especialmente se esse interlocutor é radicalmente distinto. Aquele que me leva a valorizar muito a desconstrução, e insiste na diferença, se encontra no começo de um diálogo, e não no final. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Na segunda metade do século XVIII, a subjetivação do conceito de expressão já se encontra bem adiantada. Quando polemiza, por exemplo, com o jovem Riccoboni, que considera que a arte do ator está na representação e não na sensação, Sulzer já supõe que a autenticidade do sentir é obrigatória na representação estética. Desse modo complementa também a expressio da música através de uma cimentação psicológica do sentir do compositor. Encontramo-nos aqui no ponto de passagem da tradição retórica para a psicologia da vivência. Nesse sentido, o aprofundamento na essência da expressão e em especial da expressão estética, mantém, em última instância, uma referência sempre nova com o contexto metafísico de cunho neoplatônico. Isso porque a expressão nunca é um mero signo que nos remete a um outro, a algo interior; na expressão, ao contrário, está presente aquilo mesmo que é expresso, por exemplo, a raiva está no semblante raivoso. O moderno diagnóstico expressivo sabe disto muito bem, mas o próprio Aristóteles já sabia disso. Faz parte, evidentemente, do modo de ser do vivente, que um esteja presente no outro. Isso foi reconhecido de modo especial também pelo uso que a filosofia faz da linguagem, quando Spinoza reconhece um conceito ontológico fundamental nos termos exprimere e expressio, e quando, apoiando-se nele, Hegel vê a realidade própria do espírito no sentido objetivo da expressão como representação, exteriorização. Hegel apoia sua crítica ao subjetivismo da reflexão sobre esse fato. De modo semelhante pensam também Hölderlin e seu amigo Sinclair, em quem o conceito de expressão ocupa uma posição central. A linguagem como produto da reflexão criadora, que confere seu ser à poesia, é “expressão de um todo vivo, porém específico”. O significado dessa teoria da expressão foi evidentemente deslocado pela subjetivação e psicologização do século XIX. Na verdade, tanto em Hölderlin como em Hegel a tradição retórica é muito mais determinante. No século XVIII, expressão (Ausdruck) assume o lugar de cunhagem (Ausdrückung), e refere-se àquela forma que permanece quando se estampa um selo ou algo do gênero. O contexto dessa imagem fica claro a partir da citação de uma passagem de Géllert , que diz: “nossa língua não é capaz de exprimir certas belezas, assemelhando-se a uma cera quebradiça, que muitas vezes estala e se quebra quando se quer imprimir-lhe as imagens do espírito”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO VI
Isto, e não um puro irracionalismo, é a contribuição feita pela filosofia da existência, a saber, reconhecer a decisão, a escolha ou como se queira chamar esse momento de todo juízo, como uma modalidade de razão. Jaspers formulou o caráter racional desse saber com a idéia de uma elucidação da existência enxertada nas [428] situações-limite, nas quais a ciência como saber apodíctico deixa o homem sozinho. Para descrever esse fenômeno seguiu-se utilizando o conceito de saber próprio da ciência, e nesse sentido Heidegger foi mais radical quando tomou o conceito de situação-limite como ponto de partida de uma guinada ontológica. Heidegger contrapôs-se ao conceito ontológico do ente simplesmente dado (Vorhanden), que forma a base da ciência. Partindo do conceito do “estar à mão” (zuhanden) e do ser-compreendido-em-função-de (Sich-auf-etwas-Verstehens), próprios do domínio prático-técnico do mundo, ele definiu a estrutura ontológica da “pre-sença” humana como “compreensão do ser”, quer dizer, recorrendo à verdadeira ação clarificadora da razão. Desse modo, o conceito de hermenêutica adotado por Dilthey, ou seja, a arte de compreender estruturas de sentido, se converteu no paradoxo de uma “hermenêutica da facticidade”. Essa hermenêutica continha uma crítica ontológica aos conceitos tradicionais de norma, especialmente ao conceito de valor (Rickert, Scheler) e ao conceito “platônico” de significado unívoco e ideal (Husserl). O ser em si, liberto da interpretação psicológica para poder ser atribuído à esfera do normativo na lógica e na ética, do ponto de vista puramente ontológico não passava de “ser simplesmente dado”, carente de todo fundamento. Esse ser em si só não se encontrava carente de fundamento na medida em que o jovem Scheler pressupunha uma fundamentação baseada na teologia da criação que poderia servir de base ao conceito de valor, de bem e para o conceito de uma ordem de valores e de bens. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.
Foi assim que Heidegger transferiu para o centro da própria filosofia a hermenêutica que antes se incluía na problemática dos fundamentos das chamadas ciências do espírito. Do ponto de vista ontológico, o paradoxo de uma hermenêutica da facticidade implicava a crítica aos conceitos de consciência, de objeto, de fato e de essência, de juízo e de valor. Foi a radicalidade desse enfoque que deu um impulso revolucionário à obra Ser e tempo. Mas a forma de reflexão transcendental adotada por Heidegger então, limitando-se a aprofundar os fundamentos transcendentais da filosofia, não se ajustava a sua verdadeira intenção nem pôde cumprir a tarefa de tomar a finitude e historicidade da “pre-sença” (em lugar da infinitude do que é perene) como fio condutor para elucidar a pergunta pelo sentido do ser. Nessa época e à luz dessa problemática pôde-se entrever pela primeira vez o lugar central que ocupa a questão da linguagem no pensamento de Heidegger. O que ocorre no fenômeno da linguagem ultrapassa a reflexão da filosofia transcendental e supera radicalmente o conceito de uma subjetividade transcendental como base de toda demonstração última (cf. Heidegger). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.
Esse retorno à tradição da filosofia prática pode ajudar-nos na proteção frente à obviedade e naturalidade técnica do conceito moderno de ciência. Mas isso não esgota a minha intenção filosófica. [456] No diálogo hermenêutico em que nos encontramos, sinto que essa intenção filosófica não foi suficientemente levada em consideração. O conceito de jogo, que já há décadas eu deslocara da esfera subjetiva do “instinto de jogo” (Schiller), utilizando-o na crítica da “distinção estética”, implica um problema ontológico. Isso porque nesse conceito conjugam-se tanto o jogo recíproco de acontecer e compreender quanto os jogos de linguagem de nossa experiência de mundo em geral, tal como foram tematizados por Wittgenstein na intenção de criticar a metafísica. Mas o questionamento que eu faço só poderá apresentar-se como uma “ontologização” da linguagem aos olhos de quem deixar de questionar os pressupostos da instrumentalização da linguagem em geral. O que a experiência hermenêutica nos propõe é, na verdade, um problema filosófico, a saber, descobrir as implicações ontológicas inerentes ao conceito “técnico” de ciência e fomentar o reconhecimento teórico da experiência hermenêutica. Nesse sentido, o diálogo filosófico deve vir primeiro, não para renovar um platonismo, mas para renovar um diálogo com Platão, cujo questionamento ultrapasse os conceitos fixos da metafísica e sua inadvertida sobrevivência. Como reconhece muito bem Wiehl, as Fussnoten zu Plato (notas de pé de página a Platão) de Whitehead poderiam ser importantes para essa tarefa (cf. sua introdução à edição alemã do Adventures ofldeas, de Whitehead). Em todo caso, era minha intenção conjugar a dimensão da hermenêutica filosófica com a dialética platônica, e não com a hegeliana. O III volume de meus Kleine Schriften mostra, já no título, qual o tema do livro: Idee und Sprache (Idéia e linguagem). Toda honra seja dada à investigação moderna da linguagem. No entanto, a auto-evidência técnica da ciência moderna está privando-a da dimensão hermenêutica e da tarefa filosófica nela implicada. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.