Que conseqüências ontológicas isso tem? O que é que resulta, quando partimos dessa maneira do caráter lúdico do jogo, a fim de determinar mais acuradamente o modo de ser do ser estético? Uma coisa é clara: o espetáculo teatral e a obra de arte, entendida a partir dele, não são um mero sistema de regras e de prescrições comportamentais, no âmbito das quais o jogo (espetáculo) pode se realizar. O representar de um espetáculo não quer ser entendido como uma satisfação de uma necessidade lúdica, mas como um entrar-na-existência da própria poesia. Assim, a questão é saber o que é propriamente, de acordo com o seu ser, essa obra poética, que só se torna espetáculo quando é representada, na representação, e que no entanto é o seu ser próprio que nisso se torna representação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Heidegger somente entra na problemática da hermenêutica e das críticas históricas com a finalidade ontológica de desenvolver, a partir delas, a pré-estrutura da compreensão. Já nós, pelo contrário, perseguimos a questão de como, uma vez liberada das inibições ontológicas do conceito de objetividade da ciência, a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão. A autocompreensão tradicional da hermenêutica repousava sobre seu caráter de teoria da arte. Isso vale inclusive para a extensão diltheyana da hermenêutica como organon das ciências do espírito. Pode até parecer duvidoso que exista uma tal teoria da arte da compreensão; sobre isso voltaremos mais tarde. Em todo caso, cabe indagar pelas conseqüências que tem para a hermenêutica das ciências do espírito o fato de Heidegger derivar fundamentalmente a estrutura circular da compreensão a partir da temporalidade da pre-sença. Essas conseqüências não necessitam ser tais, como se aplicasse uma nova teoria à práxis e esta fosse exercida por fim, de uma maneira diferente, de acordo com sua arte. Poderiam também consistir em que a autocompreensão da compreensão exercida constantemente fosse corrigida e depurada de adaptações inadequadas; um processo que mormente se optimalizaria por meio da arte do compreender. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Portanto, não se trata, de modo algum, de assegurar-se a si mesmo contra a tradição que faz ouvir sua voz a partir do texto, mas, pelo contrário, de manter afastado tudo o que possa impedir alguém de compreendê-la a partir da própria coisa. São os preconceitos não percebidos os que, com seu domínio, nos tornam surdos para a coisa de que nos fala a tradição. A comprovação de Heidegger, segundo a qual no conceito de consciência de Descartes e no espírito de Hegel continua dominando a ontologia grega da substância, que interpreta o ser como ser atual e ser presente, vai, obviamente, mais além da autocompreensão da metafísica moderna, mas não arbitrária e aleatoriamente, senão que a partir de uma “posição” prévia que realmente permite compreender essa tradição, porque põe a descoberto as premissas ontológicas do conceito de subjetividade. E, inversamente a isso, Heidegger descobre na crítica kantiana à metafísica “dogmática” a idéia de uma metafísica da finitude, na qual seu próprio projeto ontológico deve ser validado. Desse modo, “assegura” o tema científico introduzindo-o e pondo-o em jogo na compreensão da tradição. E assim que se mostra a concreção da consciência histórica, da qual se trata no compreender. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Como se vê, essas determinações do belo são universais e ontológicas. Nelas a natureza e a arte não estão opostas. Naturalmente, isso significa que também em relação à beleza é indiscutível a primazia da natureza. A arte pode obviamente perceber, dentro do conjunto da forma da ordem natural, possibilidades minguadas de conformação artística, e, desse modo, aperfeiçoar a natureza bela da ordem do ser. Não obstante, isso não quer dizer, de modo algum, que na arte se encontre, antes de tudo e sobretudo, “a beleza”. E na medida em que se compreenda a ordem do ente como divina ou como criação de Deus — e isso continuará vigente até o início do século XVIII — , o caso especial da arte somente poderá ser entendido a partir do horizonte dessa ordem do ser. Já demonstramos acima como a problemática estética somente se localiza no ponto de vista da arte do século XIX. Agora vemos que isso se apoiava num processo metafísico. Essa mudança do ponto de vista da arte pressupõe ontologicamente uma massa ontológica pensada sem forma e regida por leis mecânicas. O espírito da arte humana, que constrói coisas úteis mecanicamente, acabará por compreender também todo o belo a partir do ponto de vista exclusivo da obra de seu próprio espírito. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Há muitos problemas, pelos quais a fé na ilimitação da razão histórica pode se tornar questionável. Refiro-me à questão das constantes naturais do espírito histórico, suas pressuposições biológicas, e à questão do começo da história. Será que a história só principia realmente onde a humanidade começa transmitir uma consciência de si própria? Será que as decisões que fazem história já de há muito não a precederam? Haverá um feito de maior significado do que a invenção do arado, que precede a qualquer tempo histórico? E o que é o mito, no qual os povos históricos se espelham, bem antes de adentrar seu destino histórico? Desde que a investigação filosófica deu alguns passos decisivos para além de Dilthey, o próprio problema a respeito da compreensão histórica se nos revela, hoje, a partir de uma nova luz. Martin Heidegger, em Ser e tempo, levou a historicidade da pre-sença (Dasein) humana a contextos fundamentais de questionamento. A problemática da história viu-se assim liberada das pressuposições ontológicas, sob as quais era vista também por Dilthey. Demonstrou que o ser não significa sempre e necessariamente objetividade (Gegenständlichkeit), mas que importa sobretudo “elaborar a diferença genérica entre o (34) ôntico e o histórico”. O ser da pre-sença humana é um ser histórico. Isso significa, porém, que não está dado como a existência dos objetos da ciência da natureza, mas de modo mais vulnerável e oscilante do que estes. A historicidade, isto é, a temporalidade é ser em sentido mais originário do que o ser simplesmente dado, que a ciência natural busca conhecer. Há uma razão histórica, somente porque a pre-sença humana tem caráter temporal e histórico. Há uma história do mundo somente porque esta pre-sença temporal do homem “tem um mundo”. Há uma cronologia somente porque a própria pre-sença histórica do homem é tempo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.
A função que a busca de linguagem desempenha na filosofia é primordial. É o que se pode perceber pela função desempenhada aqui pela terminologia: em si, em sua configuração no âmbito da linguagem o conceito apresenta-se como termo, isto é, como uma palavra bem circunscrita e univocamente delimitada em sua significação. Todo mundo sabe, porém, que não é possível um falar terminológico, nos moldes da exatidão do cálculo com símbolos matemáticos. É verdade que o falar lança mão de termos. Mas isso significa que esses termos se incorporam constantemente no processo de entendimento, exercendo sua função própria de linguagem no seio desse processo. Em contraposição à possibilidade de criar termos fixos que exerçam funções de conhecimento determinadas, como acontece nas ciências e de modo exemplar na matemática, o uso filosófico da linguagem, como vimos, não possui outra credencial a não ser que se dá na linguagem. O que ali se exige é certamente uma credencial específica, enquanto a primeira tarefa apresentada para a correlação de palavra e conceito, de linguagem falada e pensamentos que se articulam em palavras conceptuais. Trata-se de esclarecer o encobrimento da origem conceitual das palavras filosóficas, se quisermos demonstrar a legitimidade de nossas perguntas. Um exemplo clássico que vivenciamos nesse século é a descoberta do pano de fundo histórico-conceitual, oculto no conceito de “sujeito” e suas implicações ontológicas. “Sujeito”, em grego, é hypokeimenon, o subjacente, palavra introduzida por Aristóteles para designar, diante da mudança de diversas formas fenoménicas do ente, aquilo que não muda, e subjaz a essas qualidades mutáveis. Mas será que quando se usa a palavra sujeito ainda se ouve esse hypokeimenon, subiectum, que subjaz a tudo o mais, uma vez que estamos, todos nós, inseridos na tradição cartesiana, pensando o conceito de sujeito como a auto-reflexão, o ter consciência de si? Quem ouve ainda que “sujeito” é originalmente “o que subjaz no fundo”? Mas pergunto também quem não o ouve ali? Quem não pressupõe que aquilo que se determina pela auto-reflexão está ali como um ente que se conserva na mudança de suas qualidades como o que subjaz no fundo, como o suporte? O encobrimento (Unaufgedeckheit) dessa genealogia histórico-conceitual fez com que se pensasse o sujeito como algo caracterizado pela sua autoconsciência, só consigo mesmo e colocado diante da incômoda questão de como poderá sair dessa sua splendid isolation. Foi assim que surgiu a pergunta pela realidade do mundo exterior. Foi a crítica de nosso século que reconheceu que a pergunta sobre como nosso pensamento, nossa consciência poderia alcançar o mundo externo, estava falsamente colocada, uma vez que consciência não é outra coisa do que consciência de algo. A primazia da autoconsciência frente à consciência de mundo é um preconceito ontológico que se enraíza, em última instância, na influência incontrolado do conceito de subiectum, no sentido de hypokeimenon, ou do correspondente conceito latino de substância. A autoconsciência determina a substância autoconsciente frente a todo outro ente. Mas como podem se encontrar a natureza extensa e a substância autoconsciente? Como essas substâncias tão distintas entre si podem se influenciar? Esse foi o célebre problema dos inícios da filosofia moderna, que é também a base do suposto dualismo metodológico entre ciências da natureza e ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.
Essas poucas regras gerais da hermenêutica, apresentadas preliminarmente nessas “hermenêuticas”, apoiadas na antiga retórica, por certo não justificam um interesse filosófico por esses escritos. Não obstante a profunda problemática filosófica, que viria a aflorar plenamente só em nosso século, já se reflete na história inicial da hermenêutica protestante. É certo que o princípio luterano da sacra scriptura sui ipsius interpres contém uma clara recusa da tradição dogmática da Igreja Romana. Mas, uma vez que essa frase não quer defender uma teoria ingênua da inspiração e sobretudo que a teologia de Wittenberg, seguindo a tradução da Bíblia do grande intelectual Lutero, lançava mão de um rico aparato filológico e exegético para justificar o próprio trabalho, a problemática de toda interpretação teve de assumir também o mote da sui ipsius interpres. O paradoxo desse princípio era por demais evidente e não houve como evitar que os defensores da tradição magisterial da Igreja católica, o Concílio de Trento e a literatura contra-reformista descobrissem a debilidade teórica do mesmo. Não havia como negar que também a exegese bíblica protestante não trabalhava sem diretrizes dogmáticas, em parte resumidas sistematicamente nos “artigos de fé” e, em parte, sugeridas na escolha dos hei praecipui. A crítica de Richard Simon a Flacius é para nós hoje um documento decisivo para conhecer a problemática hermenêutica da “compreensão prévia”, o que torna patente a existência de implicações ontológicas que só foram explicitadas pela filosofia de nosso século. Por fim e ainda no contexto da recusa à doutrina de inspiração verbal, também a hermenêutica teológica dos primórdios do Iluminismo busca estabelecer regras gerais para a compreensão. Especialmente a crítica histórica da Bíblia encontra então sua primeira legitimação. O tratado teológico-político de Espinosa foi o acontecimento principal. A sua crítica ao conceito de milagre, por exemplo, legitimava-se no postulado da razão de se reconhecer somente o que é racional, isto é, o que é possível. Não era só (97) crítica, continha também uma virada positiva, à medida que exigia uma explicação natural das passagens da Escritura contrárias à razão. Isso acarretou uma virada em direção ao que é histórico, ou seja, uma virada da presumida (e incompreensível) história dos milagres em direção à fé (compreensível) nos milagres. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
A hermenêutica filosófica permite ver que o sujeito conhecente está indissoluvelmente unido ao que se lhe abre e se mostra como dotado de sentido. Além de fazer a crítica ao objetivismo da história e ao ideal do conhecimento positivista do fisicalismo, que a unity of science pretende fundamentar com o método unitário da física, a hermenêutica critica também a tradição da metafísica. Uma das teses básicas da metafísica, a saber, o ser e o verdadeiro, em princípio, são o mesmo, torna-se insustentável. Ser e verdadeiro são o mesmo para o intelecto infinito da divindade, cuja omnipresença a metafísica concebe como a atualidade de tudo o que é. Esse sujeito absoluto não é nem sequer um ideal aproximativo para o modo de ser finito e histórico do ser humano e de suas possibilidades de conhecimento. Isso porque não identificar-se com o presente é uma das características ontológicas do sujeito conhecente. Ele tampouco se identifica com o futuro e com o passado que o determina. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.
Esse retorno à tradição da filosofia prática pode ajudar-nos na proteção frente à obviedade e naturalidade técnica do conceito moderno de ciência. Mas isso não esgota a minha intenção filosófica. (456) No diálogo hermenêutico em que nos encontramos, sinto que essa intenção filosófica não foi suficientemente levada em consideração. O conceito de jogo, que já há décadas eu deslocara da esfera subjetiva do “instinto de jogo” (Schiller), utilizando-o na crítica da “distinção estética”, implica um problema ontológico. Isso porque nesse conceito conjugam-se tanto o jogo recíproco de acontecer e compreender quanto os jogos de linguagem de nossa experiência de mundo em geral, tal como foram tematizados por Wittgenstein na intenção de criticar a metafísica. Mas o questionamento que eu faço só poderá apresentar-se como uma “ontologização” da linguagem aos olhos de quem deixar de questionar os pressupostos da instrumentalização da linguagem em geral. O que a experiência hermenêutica nos propõe é, na verdade, um problema filosófico, a saber, descobrir as implicações ontológicas inerentes ao conceito “técnico” de ciência e fomentar o reconhecimento teórico da experiência hermenêutica. Nesse sentido, o diálogo filosófico deve vir primeiro, não para renovar um platonismo, mas para renovar um diálogo com Platão, cujo questionamento ultrapasse os conceitos fixos da metafísica e sua inadvertida sobrevivência. Como reconhece muito bem Wiehl, as Fussnoten zu Plato (notas de pé de página a Platão) de Whitehead poderiam ser importantes para essa tarefa (cf. sua introdução à edição alemã do Adventures ofldeas, de Whitehead). Em todo caso, era minha intenção conjugar a dimensão da hermenêutica filosófica com a dialética platônica, e não com a hegeliana. O III volume de meus Kleine Schriften mostra, já no título, qual o tema do livro: Idee und Sprache (Idéia e linguagem). Toda honra seja dada à investigação moderna da linguagem. No entanto, a auto-evidência técnica da ciência moderna está privando-a da dimensão hermenêutica e da tarefa filosófica nela implicada. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.