Gadamer (VM): números

Se a partir desse pano de fundo nos aproximamos agora da disputa “sobre a correctura dos nomes”, tal como se desenvolve no Crátilo, as teorias que entram em debate nele geram, de imediato, um interesse que vai muito mais além de Platão ou de sua própria intenção. Pois as duas teorias que o Sócrates platônico reduz ao fracasso não aparecem sopesadas com todo o peso de sua verdade. A teoria convencionalista reconduz a “correctura” das palavras a um dar nome, que é como batizar as coisas com um nome. Para essa teoria o nome não traz a menor intenção de conhecimento objetivo. Mas Sócrates chama a depor o defensor dessa sóbria perspectiva, na medida em que, partindo da diferença entre logos verdadeiro e logos falso, lhe faz admitir que também os componentes de logos, as palavras (onomata), são verdadeiros ou falsos, e que, portanto, também o nomear, como uma parte do falar, se refere à revelação do ser (ousia) que se produz no falar. Essa é uma (413) afirmação incompatível com a tese convencionalista que já não é difícil deduzir, a partir daqui e inversamente, uma “natureza” que servisse de padrão, tanto para os nomes verdadeiros como para o correto dar nome. O próprio Sócrates reconhecerá que essa compreensão da correção dos nomes conduz a uma embriaguez etimológica e às consequências mais absurdas. Não é menos peculiar o tratamento de que se faz objeto a tese contrária, a de que as palavras são por natureza (physei). Se esperássemos que essa contrateoria fosse refutada, por sua vez, pelo descobrimento da incoerência da conclusão sobre a verdade das palavras a partir da do discurso, da qual derivava essa posição (no “Sofista” aparece uma correção desse defeito), sentir-nos-íamos decepcionados. Ao contrário, todo o desenvolvimento se mantém dentro dos pressupostos de princípio da teoria “natural, isto é, no princípio da similitude, e somente o resolve através de uma restrição progressiva: se a “correctura” dos nomes deve repousar no fato de se encontrarem os nomes corretos e adequados às coisas, e estágios de correção, propriamente ali, como ocorre também como qualquer adaptação dessa natureza. E se só o um pouco correto consegue ainda reproduzir em si os contornos (tupos) da coisa, isso pode bastar para que seja utilizável. Tem que ser, todavia, um pouco mais generoso: uma palavra pode ser entendida por hábito ou convenção, ainda que contenha sons que não possuem a menor similitude com a coisa, com o que, todo o princípio da similitude começa a balançar e acaba se refutando com exemplos como o das palavras que designam números. Nessas, não pode ter lugar a menor similitude, porque os números não pertencem ao mundo sensível e móvel, de maneira que para eles só seria plausível o princípio da convenção. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Portanto, o signo é algo que imponha um conteúdo próprio. Nem sequer necessita ter algum conteúdo parecido com o que indica. Se o tivesse teria de ser puramente esquemático. Mas isso quer dizer que todo o seu conteúdo próprio visível está reduzido ao mínimo que pode requerer sua função indicadora. Quanto mais unívoca for a designação através de uma coisa-signo, o signo será tanto mais signo puro, isto é, ele se esgota na subordinação como tal. Assim, os signos escritos, por exemplo, são subordinados a determinadas identidades fônicas, os signos numéricos, a determinados números, e são os signos mais espirituais, porque sua subordinação é total no sentido de que esgota-os por inteiro. Um sinal, um distintivo, um aviso, uma indicação etc. somente têm espiritualidade na medida em que são tomados como signos, isto é, na medida em que se abstrai sua função de referencialidade. A existência do signo, aqui, consiste somente em algo diferente que, na qualidade de coisa-signo, é ao mesmo tempo algo por si mesmo e tem seu próprio significado, um significado diferente do que tem como signo. Nesse caso afirma-se que o significado do signo só convém ao signo em sua relação com um sujeito receptor do signo: “não tem seu significado absoluto em si mesmo, isto é, nele a natureza somente está de forma suspensa”. Continua sendo um ente imediato (continua tendo sua consistência na sua pertença ao conjunto dos outros entes, e inclusive os signos escritos podem ter, por exemplo, um valor decorativo num conjunto ornamental), e somente em virtude de seu ser imediato pode ser ao mesmo tempo referente, ideal. A diferença entre o seu ser e seu significado é absoluta. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

É claro que a analogia entre os dois modos de ser criador tem seus limites, que correspondem às diferenças, antes acentuadas, entre palavra divina e humana. A palavra divina cria o mundo, mas não o faz numa sequência temporal de pensamentos criadores e de dias da criação. O espírito humano, pelo contrário, somente possui a totalidade de seus pensamentos na sequencialidade temporal. É verdade que não se trata de uma relação puramente temporal, como já vimos a propósito de Tomás de Aquino. Nicolau de Cusa também ressalta essa medida. E como a série dos números: sua geração não é na realidade um acontecer temporal, mas um movimento da razão. Nicolau de Cusa considera que é esse mesmo movimento da razão que opera, quando se extrai do sensorial a formação dos gêneros e espécies, tal como ocorrem nas palavras, e se desprendem em conceitos e palavras individuais. Também eles são entia rationes (439). Por mais platônico-neoplatônico que soe esse discurso sobre o “desenvolvimento”, Nicolau de Cusa supera, na realidade, o esquematismo emanantista da doutrina neoplatônica da explicatio em pontos decisivos; pois, contra ela, desenvolve a doutrina cristã do verbo. A palavra não é, para ele, um ser distinto do espírito, nem uma manifestação minorada ou debilitada do mesmo. Para o filósofo cristão é o conhecimento disso o que constitui sua superioridade sobre os platônicos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Assim, na filosofia platônica encontra-se uma relação bastante estreita, e em certas ocasiões uma verdadeira troca, entre a ideia do bem e a ideia do belo. Ambas encontram-se além do que é condicionado e múltiplo: O belo em si encontra-se finalmente com a alma amante, ao cabo de um caminho que passa por múltiplas belezas, como o uno, o que somente possui uma forma, o supremo (Banquete), tal como a ideia do bem, que se encontra acima do que está condicionado e do múltiplo que somente é bom num determinado sentido (República). O belo em si, tal como o bom em si (epekeina), está acima de todo ente. A ordenação do ente, que consiste em sua referência ao bem uno, coincide assim com a ordenação do belo. O caminho do amor que Diotima ensina, conduz dos corpos belos às almas belas, e destas às instituições, costumes e leis belas, e finalmente às ciências (por exemplo, as belas relações numéricas que a teoria dos números conhece), a esse “amplo mas dos belos discursos”, e inclusive mais além de tudo isso. Poderíamos nos perguntar se a superação da esfera do que se vê com os sentidos, e o acesso à esfera do “inteligível”, significa realmente uma diferenciação e elevação da beleza do belo e não meramente do ente que é belo. Todavia, é inteiramente claro que para Platão a ordenação teleológica do ser é também uma ordenação de beleza, que a beleza se manifesta no âmbito inteligível de maneira mais pura e mais clara que no sensível, onde pode aparecer distorcida pela imperfeição e pela desmedida. De um modo parecido, a filosofia medieval vincula estreitamente o conceito do belo com” o do bom, bonum, tão estreitamente que uma passagem clássica de Aristóteles sobre o kalon ficou incompreendida na Idade Média porque o termo grego tinha sido traduzido diretamente por bonum. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

O leigo responderá que a filosofia científica deve reivindicar o uso de conceitos unívocos em contraposição às construções vagas e difusas da cosmovisão e da ideologia. É um antigo desejo do leigo, esperar que o filósofo defina bem todos os seus conceitos. Mesmo que seja legítimo aspirar a uma tal definição, ainda se deve questionar se aquilo que é indubitavelmente legítimo no âmbito da (79) ciência é adequado à reivindicação e à tarefa da filosofia. A pressuposição de que o importante é a univocidade dos conceitos implica uma outra pressuposição, a saber, que os conceitos são instrumentos por nós elaborados para nos acercar dos objetos e submetê-los ao nosso conhecimento. Dentre os conceitos que conhecemos, aqueles melhor definidos e a forma mais exata de conceito encontram seu ambiente ideal onde o todo de um universo de objetos é gerado pelo próprio pensamento: na matemática. Aqui não há sequer a colaboração da experiência. A razão está ocupada consigo mesma na busca de esclarecer os grandes enigmas dos números, das figuras geométricas ou qualquer outro de seus objetos. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.

As leis naturais imutáveis acabaram substituindo os grandes conteúdos da sabedoria grega de inspiração matemática, a ciência pitagórica dos números e dos astros. Está claro que sob esse modelo as coisas humanas dão pouca margem à capacidade de saber. A moral e a política, assim como as leis ditadas pelos homens, os valores que regem sua vida, as instituições que criam os usos que seguimos, tudo isso carece de imutabilidade e portanto não pode reivindicar uma real capacidade de saber, isto é, caráter de saber. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

Mas Platão continuou sendo o centro de meus estudos. Meu primeiro livro sobre ele, Platos dialektische Ethik (Ética dialética platônica), que surgiu a partir de meu trabalho de habilitação, foi na verdade um livro abortado sobre Aristóteles. Meu ponto de partida foram os dois trabalhos aristotélicos sobre o “prazer”. Sendo insolúvel do ponto de vista genético, o problema deveria ser abordado pela via fenomenológica, isto é, se não fosse possível “explicar” essa coexistência pela via histórico-genética, pelo menos deveria ser possível justificá-la. Isso não podia ser feito sem relacionar ambas as passagens com o Filebo de Platão. E, com essa intenção, fiz uma interpretação fenomenológica desse diálogo. Na época, eu ainda não estava em condições de avaliar o que o Filebo significava para a teoria platônica dos números e, sobretudo, para o problema das relações entre ideia e “realidade”. Tinha dois objetivos, ambos sob o mesmo signo metodológico: esclarecer a função da dialética platônica a partir da fenomenologia do diálogo e a doutrina do prazer e suas formas de manifestação mediante uma análise fenomenológica dos dados da vida real. A arte da descrição fenomenológica, que tentara aprender com Husserl (em Friburgo, 1923) e com Heidegger, deveria ser capaz e idônea para uma interpretação dos textos antigos, buscando as “coisas, elas mesmas”. Isso alcançou sucesso tolerável e foi reconhecido, mas não pelo simples historiador, que persiste sempre na ilusão de que compreender o que se encontra ali, o que está presente, seja algo muito trivial. Segundo este, o que vale a pena é investigar o que há por trás. Foi assim que Hans Leisegang, em seu relato sobre a investigação de Platão na atualidade (Archiv für Geschichte der Philosophie = Arquivo sobre história da filosofia, 1923), pôde relegar meu trabalho com desdém, citando essas palavras de meu prólogo: “Sua relação com a crítica histórica já será positiva se essa — na suposição de que não contribua para nada — considerar isso que ela afirma como sendo algo óbvio e evidente”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

O certo é que a partida estava dada. Como professor de filosofia aprendia cada semestre algo novo, nas precárias condições de um bolsista ou de um auxiliar de cátedra, e meu ensino se adaptava perfeitamente aos meus planos de investigação. Assim continuei aprofundando-me em Platão graças sobretudo à colaboração de J. (489) Klein no campo da matemática e da teoria dos números. A obra clássica de Klein Die griechische Logistik und die Entstehung der Algebra (A logística grega e o surgimento da álgebra, 1936) apareceu naquele período. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.