Gadamer (VM): número

Essa subordinação, que é logos, é pois, muito mais que a mera correspondência de palavras e coisas, tal como, em última análise, estaria correspondendo à teoria eleática do ser e como se pressupõe na teoria da cópia. Precisamente porque a verdade que o logos contém não é a da mera recepção (noein), não é um mero deixar aparecer o ser, mas coloca o ser sempre numa determinada perspectiva, reconhecendo e atribuindo-lhe algo, o portador da verdade, e, consequentemente também de seu contrário, não é a palavra (onoma), mas o logos. Daí segue-se também necessariamente que, a essa estrutura de relações, na qual o logos articula a coisa e precisamente com isso interpreta, lhe é inteiramente secundário seu caráter enunciativo, e, por conseguinte, sua vinculação à linguagem. Compreende-se que o verdadeiro paradigma do noético não é a palavra, mas o número, cuja designação é obviamente pura convenção e cuja “exatidão” consiste em que cada número se define por sua posição na série e é, por consequência, uma pura construção da inteligibilidade, um ens rationes, não no sentido de uma validez ôntica apequenada, mas no de sua perfeita racionalidade. Esse é o verdadeiro resultado a que faz referência o Crátilo, e cujas consequências são tão amplas que determinam, na realidade, todo o pensamento ulterior sobre a linguagem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Se o âmbito do logos representa o do noético, na pluralidade de suas subordinações, a palavra se converte, tal como o número, em mero signo de um ser bem definido e, por consequência, conhecido de antemão. Com isso, o questionamento se inverte a partir de seu princípio. Agora já não se pergunta pelo ser ou pelo caráter medial das palavras partindo da coisa, mas sim, partindo do médio da palavra, pergunta-se pelo que e como medeia àquele que a usa. A essência do signo é que tem seu ser na função de seu emprego, e isto de tal modo que sua (417) aptidão consiste unicamente em ser um indicador. Por isso, nessa sua função, tem de se destacar do contexto em que se encontra e em que terá de ser tomado como signo, e justo com isso suspender o seu ser-coisa e embutir-se (desaparecer) no seu significado: é a abstração do próprio indicar. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Talvez aqui seja o lugar para se fazer algumas observações às ampliações e apresentações autônomas do problema hermenêutico, do modo como foram apresentadas de um lado por Hans-Robert Jauss e Manfred Frank e, por outro, por Jacques Derrida. É sem dúvida incontestável que a estética da recepção, desenvolvida por Jauss, enfocou sob uma nova luz toda uma dimensão da pesquisa literária. No entanto, será justo seu posicionamento contra o que tenho em mente com minha hermenêutica filosófica? Parece-me que a ilustração da historicidade da compreensão, que apresentei no exemplo do conceito do clássico, é mal-entendida, toda vez que atribuímos a palavra aqui ao classicismo e ao conceito vulgar de platonismo. Dá-se exatamente o contrário. O exemplo do clássico, em Verdade e método I, quer ilustrar o quanto a mobilidade histórica está incluída na atemporalidade daquilo que se chama de clássico (e que contém, todavia, um componente normativo, mas nenhuma caracterização de estilo), de tal forma que a compreensão se transforma e se renova constantemente. O exemplo do clássico, portanto, nada tem a ver com o ideal de estilo clássico e nem com o conceito vulgar de platonismo, que (14) considero uma deformação das reais intenções de Platão. Neste ponto, Oskar Becker viu melhor do que Jauss, quando me acusou, em sua crítica, de estar sendo tomado pela história, e arrolou contra mim o pitagorismo do número, do som e do sonho. Não me senti atingido, neste particular. Mas não vamos tratar disso aqui. A estética da recepção de Jauss seria, ela própria, truncada, segundo me parece, se quisesse dissolver a obra que subjaz em cada configuração receptiva em meras facetas. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Um processo enigmático e profundamente oculto. É uma grande ilusão pensar que a criança fala uma palavra, a primeira palavra. Foi uma insensatez querer descobrir a linguagem originária da humanidade, isolando crianças e deixando-as crescer totalmente incomunicáveis com todos os sons humanos para depois, partindo do primeiro som articulado, querer atribuir a uma linguagem humana concreta o privilégio de ser a linguagem originária da criação. A ilusão dessas ideias consiste em buscar suspender, de modo artificial, nossa inserção real no mundo de linguagem em que vivemos. Na verdade já estamos tão habituados e inseridos na linguagem como estamos no mundo. Penso que é novamente em Aristóteles que se encontra a mais sábia descrição do processo de aprendizagem da fala. A descrição aristotélica, no entanto, não se refere ao aprendizado da fala, mas ao pensar, isto é, à aquisição de conceitos comuns. Como é possível dar-se uma permanência na fugacidade dos fenômenos, no fluxo constante de impressões cambiantes? É certamente a capacidade de retenção, portanto a memória, que nos capacita reconhecer algo como o mesmo, e isso é resultado de uma grande abstração. Aqui e ali, a partir da fuga dos fenômenos cambiantes, começamos a perceber algo de comum e assim, aos poucos, pelos reconhecimentos que vão se acumulando e que chamamos de experiências, forma-se a unidade da experiência. Pela experiência dispomos expressamente daquilo que experimentamos, nos moldes de um conhecimento do comum. Aristóteles pergunta então: como pode realmente dar-se esse conhecimento do comum? Com certeza não é no transcurso dos fenômenos, um após o outro, que de repente o conhecimento do comum se estabelece num determinado elemento singular que reaparece e é reconhecido como o mesmo. Não é esse elemento singular, como tal, que se distingue de todos os outros pela força misteriosa de expressar o comum. Esse elemento não é diferente de todos os outros. E, no entanto, não deixa de ser verdade que em algum momento se estabelece o conhecimento do comum. Onde começou? Aristóteles apresenta uma imagem ideal para isso: Como chega a deter-se um exército em fuga? Onde começa a deter-se? Não é, com certeza, pelo fato de o primeiro soldado ter parado, ou o segundo ou o terceiro. Não podemos afirmar que o exército se detém quando um determinado número de soldados fugitivos parou de correr, nem tampouco quando o último soldado tiver parado. Não é com ele que o exército começa a deter-se, uma vez que já começou a deter-se bem antes. Ninguém pode saber, ninguém pode controlar por um plano nem pode afirmar que conhece como começa, como prossegue e como, por fim, se detém o exército, ou seja, como volta a obedecer à unidade de comando. E no entanto não há dúvida que isso ocorreu. O mesmo ocorre com o conhecimento do comum, pois na verdade trata-se do mesmo fenômeno, o surgimento da linguagem. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 11.

Importante é também o número do Continuum, no qual confronta-se a teoria crítica de Frankfurt com a hermenêutica. Uma boa visão panorâmica sobre a situação geral do problema para as ciências históricas é dada pela conferência que Karl-Friedrich Gründer proferiu no Congresso de Historiadores em 1970 (Saeculum). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

O aspecto hermenêutico porém parece-me indispensável também para a discussão estética de nossos dias. Precisamente depois que a “antiarte” tornou-se lema social, depois que o pop art, o Happening e algumas condutas tradicionais buscaram formas de arte contrárias às representações tradicionais da obra e sua unidade, esforçando-se por zombar de toda univocidade e compreensibilidade, a reflexão hermenêutica tem a tarefa de questionar o que está havendo com tais pretensões. A resposta a isso deverá indicar que o conceito hermenêutico de obra conservará sua plenitude, na medida em que nessa produção estejam incluídos identificabilidade, repetição e que essa repetição valha a pena. Na medida em que uma tal produção, enquanto é o que pretende ser, obedece à (477) relação hermenêutica fundamental de compreender algo como algo, a forma de concepção jamais será algo radicalmente novo para ela. Essa “arte” não se distingue em nada, na verdade, de certas formas de arte de caráter transitório, conhecidas desde antigamente, como, por exemplo, a arte da dança. Seu status e pretensão de qualidade são tais que, mesmo a improvisação, que jamais se repete, quer ser “boa”, o que significa, idealiter repetível e confirmando-se como arte na repetição. Aqui há uma fronteira bem precisa que distingue essa arte do mero truque ou do número do prestidigitador. Também nesse caso há algo a ser compreendido. Pode ser concebido, pode ser imitado, requer inclusive domínio de sua arte e requer ser bom. Mas, usando as palavras de Hegel, a sua repetição será “vã como um número de prestidigitação do qual já se saiba o truque”. As fronteiras existentes entre a obra de arte e o “número” podem até parecer difusas e fluentes e os contemporâneos podem até não saber se a atração de uma produção é efeito da surpresa ou um enriquecimento artístico. Não poucas vezes, os meios artísticos dão-se também como instrumentos em contextos de simples ações, como, por exemplo, em cartazes ou em outras formas de propaganda social ou política. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

A segunda parte do trabalho Platos Staat der Erziehung (O Estado como educador em Platão) foi também uma espécie de pretexto. Foi durante a guerra. Um professor da Escola Técnica Superior de Hannover, apelidado Osenberg, havia convencido a Hitler do papel decisivo que desempenha a ciência na guerra, influenciando assim na promoção das ciências naturais e sobretudo na ajuda às novas gerações de investigadores. O que acabou sendo chamado de “ação Osenberg” salvou a vida de muitos jovens investigadores. Isso incitou a inveja dos que se dedicavam às ciências do espírito, até que um membro astuto do partido nazista chegou à feliz ideia de uma “ação paralela” digna do engenho de Musil. Foi a “entrada das ciências do espírito na guerra”. Foi na realidade o início da guerra para as ciências do espírito e nada mais que isso. Para evitar a colaboração no setor filosófico, onde apareciam temas tão belos como Os judeus e a filosofia ou O alemão na filosofia, passei ao setor de filologia clássica. Ali imperava a polidez, e sob a proteção de Helmut Berve surgiu uma interessante obra coletiva, Das Erbe der Antike (0 legado da Antiguidade), que alcançou uma segunda edição, sem modificação alguma, após a guerra. Meu trabalho Platos Staat der Erziehung prolongou o estudo sobre Plato und Dichter e indicou a direção de meus estudos posteriores em suas últimas palavras “o número e o ser”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.