Essa exigência não podia ser satisfeita com uma mera volta a Kant, que era o caminho que se oferecia por si só, face às divagações da filosofia da natureza. Kant leva à sua conclusão os esforços em torno ao problema do conhecimento, colocados pela aparição da nova ciência do século XVII. A construção matemático-natural-científica, de que se servia a nova ciência, encontrou nele a justificação de seu valor cognitivo, da qual se encontrava necessitada, porque seus conceitos não traziam outra pretensão de ser que a de entia rationis. A velha teoria da copia já não bastava, evidentemente, para sua legitimação . A incomensurabilidade do pensamento e ser havia colocado o problema do conhecimento de uma maneira completamente nova. Dilthey percebe isso e em sua correspondência com o conde Yorck fala-se já do pano de fundo nominalista dos questionamentos epistemológicos do século XVII, brilhantemente constatados pela nova investigação desde Duhem. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Desse modo, com a dissolução nominalista da lógica clássica da essência, o problema da língua entra num novo estágio. De imediato, adquire um significado positivo o fato de que se podem articular as coisas em formas diferentes (ainda que não arbitrárias), segundo suas coincidências ou diferenças. Se a relação de gênero e espécie não pode ser legitimada somente a partir da natureza das coisas — segundo o modelo dos gêneros “autênticos ” na autoconstrução da natureza viva — , mas também de um modo diferente por relação com o homem e sua soberania denominadora, então as línguas nascidas na história, a história de seus significados, como de sua gramática e sintaxe, podem fazer-se valer como formas variantes de uma lógica da experiência, de uma experiência natural, ou seja, histórica (que, por sua vez, encerra também a experiência sobrenatural). A própria coisa está clara desde sempre. A articulação de palavras e coisas, que cada língua empreende à sua maneira, representa em todos os momentos uma primeira conceitualização natural, muito distante do sistema da conceitualização científica. Guia-se de modo absoluto pelo aspecto humano das coisas, segundo o sistema de suas necessidades e interesses. O que para uma comunidade linguística é essencial em certa coisa, pode reuni-la com outras coisas, no mais talvez completamente distintas, sob a unidade de uma denominação, desde que todas elas possuam esse mesmo aspecto essencial. A denominação (impositio nominis) não corresponde, de modo algum, aos conceitos essenciais da ciência e ao seu sistema classificatório de gênero e espécies. Ao contrário, medidos sob esse padrão, eles são, frequentemente, meros acidentes, dos quais deriva-se o significado geral de uma palavra. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Essa teoria da linguagem pressupõe que tampouco as coisas (forma), a que se atribuem os nomes, pertencem a uma ordenação previamente dada de imagens originárias a que o conhecimento humano se aproximaria cada vez mais, mas que essa ordenação se forma na realidade a partir do que está dado nas coisas e por meio de distinções e reuniões. Nesse sentido, introduz-se no pensamento de Nicolau de Cusa uma mudança de rumo nominalista. Se os gêneros e espécies (genera et species) são, por sua vez, seres inteligíveis (entia rationes), então se pode compreender que as palavras possam concordar com a contemplação pautada na coisa a que dão expressão, ainda (442) que em línguas distintas se empreguem palavras distintas. Em tal caso não se trata somente de variações da expressão, mas de variações da contemplação pautada na coisa e da conceituação subsequente, e consequentemente de uma imprecisão essencial que não exclui que em todas elas esteja um reflexo da própria coisa (forma). Essa imprecisão essencial somente pode ser superada, evidentemente, se o espírito se eleva ao infinito. No infinito já não há, então, mais que uma única coisa (forma) e uma única palavra (vocabulum), a palavra indizível de Deus (verbum Dei), que se reflete em tudo (relucet). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Mas será isso tudo? Se a linguagem também fixa preconceitos, significará que neles só não-verdade aparece? A linguagem não é somente isto. É a interpretação prévia pluriabrangente do mundo e por isso insubstituível. Antes de todo pensar crítico, filosófico-interventivo, o mundo já sempre se nos apresenta numa interpretação feita pela linguagem. O mundo se articula para nós no aprendizado de uma língua, na assimilação de nossa língua materna. Isso é muito mais uma primeira abertura do que um engano. Inclui, por certo, que o processo da formação conceptual, iniciado no âmbito dessa interpretação feita pela linguagem, nunca é um primeiro começo. Não equivale a forjar uma nova ferramenta a partir de um material apropriado, uma vez que se trata de um continuar a pensar na língua que falamos e na interpretação do mundo nele contida. Nunca se trata de um começar do zero. Sem dúvida, também a linguagem, pela qual se apresenta a interpretação do mundo, é um produto e resultado da experiência. “Experiência”, porém, não tem (80) aqui aquele sentido dogmático do dado imediato, cujo caráter de preconceito ontológico-metafísico foi exposto suficientemente pelo movimento filosófico de nosso século e possivelmente pelas suas duas estâncias, tanto no âmbito fenomenológico-hermenêutico quanto naquele de tradição nominalista. Experiência não é primeiramente sensação. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.
Isso tornou-se muito claro nos seguidores de Dilthey: As tipologias pedagógico-antropológicas, psicológicas, sociológicas, de teoria da arte e históricas, que se difundiam na época, demonstraram, ad óculos, que sua fecundidade dependia sempre da dogmática nelas oculta e latente. Todas as tipologias de Max Weber, Spranger, Litt, Pinder, Kretschmer, Jaensch, Lersch, e outros, mostraram ter um valor de verdade limitado, que ainda assim chegaram a perder quando tentaram abarcar a totalidade dos fenômenos, ou seja, quando quiseram ser completas. Essa “ampliação” de uma tipologia em sentido de uma oniabrangência significa, por motivos intrínsecos, sua própria dissolução, isto é, a perda de seu núcleo dogmático de verdade. Mesmo Psychologie der Weltanschauungen (A psicologia das concepções de mundo), de Jasper, ainda não estava tão livre da problematicidade característica de toda tipologia inspirada em Max Weber e Dilthey, como pretendeu (e conseguiu) mais tarde sua Filosofia. O recurso conceitual à tipologia só pode ser legitimado, na verdade, de um ponto de vista extremamente nominalista. Mesmo a radicalidade nominalista do auto-ascetismo de Max Weber tinha seus limites e complementava-se pelo reconhecimento totalmente irracional e voluntarista de que cada um precisa escolher “seu Deus”, aquele ao qual quer seguir. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
A consequência dessa ideia fundamental é que tudo que se experimenta no fluir da história com o passar ou com o devir depende de postulados pelos quais articula-se e diferencia-se essa, por assim dizer, liga de acontecimentos que transcorre. O que relativiza todas as fronteiras dentro do acontecer, todas as caracterizações significativas do acontecer como ocaso ou como surgimento, como devir ou como passar é, na verdade, uma postura de extremo nominalismo. Os seccionamentos da história são seccionamentos de nossa consciência que atingem nossas decisões de sentido. Sendo no fundo arbitrárias, elas não possuem nenhuma realidade verdadeiramente histórica. Devemos deixar de lado a crítica dessa ideia da história, que se fundamenta em pressupostos da ontologia grega, e ter presente um fenômeno fundamental que denuncia o falso princípio nominalista desse modo de consideração. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.
Vale a pena recordarmos aqui que o monumental volume deixado por Max Weber e editado pela primeira vez em 1921, sob o título Wirtschaft und Gesellschaft, já havia sido planejado por ele próprio como um “esboço da sociologia compreensiva”. As partes (389) mais desenvolvidas dessa sociologia, preparada para o esboço de economia social, tratam particularmente de sociologia da religião, de sociologia do direito e de música, enquanto que, por exemplo, a sociologia do Estado recebeu um desenvolvimento apenas fragmentario. Aqui interessa sobretudo a parte introdutória, composta em 1918-20 e hoje intitulada como “Sociologische Kategorienlehre” (Doutrina sociológica das categorias). Trata-se de um imponente catálogo de conceitos, composto em uma base nominalista extrema, que de resto — diferente do conhecido artigo logos, de 1913 — evita o conceito de valor (evitando com isso uma base de apoio última no neokantismo vindo do sudoeste da Alemanha). Max Weber chama essa sociologia de “compreensiva”, porque toma como objeto o sentido a que se refere a ação social. O certo é que o sentido “da intenção subjetiva”, no âmbito da vida sociológico-histórica, não pode ser somente o sentido que cada indivíduo atuante tem em mente de fato. Desse modo aparece o tipo puro, enquanto conceito substitutivo hermenêutico-metodológico, como construção conceitual (a “construção ideal-típica”). Sobre essa base, que Max Weber chama de “racionalista”, ergue-se todo o edifício — idealmente “livre de valores” e neutro — , um monumental baluarte-limite da ciência “objetiva”, que defende sua univocidade metodológica através da sistemática classificatória. Nas partes de conteúdo mais desenvolvido, essa ciência conduz a uma grandiosa panorâmica sistemática sobre o mundo da experiência histórica. O verdadeiro envolvimento na problemática do historicismo é evitado aqui através de uma ascese metodológica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
No entanto, no caso de textos eminentes, entra em jogo também outro fator que exige reflexão hermenêutica. O “desaparecimento” da relação imediata com a realidade — para a qual o pensamento nominalista inglês, estruturado pela reflexão e pela linguagem, cunhou a significativa expressão “ficção” — não representa na verdade um fenômeno de carência, nem uma diminuição da imediaticidade da ação da linguagem. Representa, ao contrário, a sua “eminente” realização. Em toda literatura, esse fenômeno vale (476) também para o “destinatário” nela implícito, que não se refere ao receptor de uma comunicação, mas ao caráter de receptividade tanto de hoje como de amanhã. Embora tenham sido compostas para uma cena fixa e festiva e falem à sua própria atualidade social, as próprias tragédias clássicas não representavam certos acessórios teatrais destinados a uma única aplicação ou a permanecer guardados em um depósito para aplicações posteriores. O fato de poderem ser aplicadas novamente e logo serem lidas também como textos não se deve, certamente, a interesses históricos. Devia-se, antes, ao fato de serem obras que continuavam a falar. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.
Nem mesmo Nicolau de Cusa se refere com sua palavra natural à de uma linguagem originária, anterior à confusão das línguas. Uma tal linguagem de Adão, no sentido de uma doutrina do estado originário, lhe é completamente alheia. Ao contrário, seu ponto de partida é a imprecisão fundamental de todo saber humano. Nisso consiste, reconhecidamente, sua teoria do conhecimento, na qual se cruzam motivos platônicos e nominalistas: todo conhecimento é pura conjectura e opinião (coniectura, opinio). É essa doutrina que ele aplica à linguagem. Isso lhe permite reconhecer a diversidade das línguas nacionais e a aparente arbitrariedade de seu vocabulário, sem ter que cair necessariamente numa teoria convencionalista e num conceito instrumental da linguagem. Assim como o conhecimento humano é essencialmente “impreciso”, isto é, admite um mais e um menos, o mesmo ocorre com a linguagem humana. O que, numa língua, possui sua expressão autêntica (própria vocabula) pode ter, noutra, uma expressão mais bárbara e distanciada (magis barbara et remotiora vocabula). E-xistem pois expressões mais autênticas ou menos autênticas (própria vocabula). Todas as denominações fácticas são, de um certo modo, arbitrárias, e, no entanto, têm uma relação necessária com a expressão natural (nomen naturale), que corresponde à própria coisa (forma). Toda expressão é congruente (congruum), mas nem todas são precisas (precisum). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Isso coincidiu com a guinada empreendida pela crítica anglo-saxã da linguagem, que partia de uma reflexão sobre o ideal de uma linguagem lógica artificial, plenamente unívoca. No lugar do (429) cálculo lógico degradado em simples disciplina técnica auxiliar e da axiomatização da linguagem, apareceu a análise da linguagem realmente falada (ordinary language). De princípio, a intenção da crítica à metafísica permaneceu intocada, mas vinha associada à expectativa positiva de que a nova orientação rumo à linguagem viva, falada, não apenas ensinava a desmascarar problemas aparentes, como a resolvê-los. Essa guinada teve ampla repercussão, sobretudo com a publicação da obra póstuma de Wittgenstein Investigações filosóficas (1953). Esse escrito continha uma crítica expressa aos próprios pressupostos nominalistas presentes em seu Tractatus (1921) e à orientação da Escola de Viena, sobretudo de Carnap. A ideia de uma normatização da linguagem presidida pelo ideal da univocidade foi substituída pela teoria dos jogos de linguagem. Cada jogo de linguagem é uma unidade funcional que representa como tal uma forma de vida. A filosofia continua sendo crítica da metafísica e da linguagem, mas sob a base de um acontecimento hermenêutico levado a cabo por uma historicidade interna interior. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.
E inevitável que a linguagem da filosofia não se mova em sistemas de enunciados cuja formalização lógica e exame crítico, baseados na dedução lógica e na univocidade, poderiam aprofundar o conhecimento filosófico. Essa linguagem jamais encontra seu objeto dado de antemão, mas ela própria deve construí-lo. Esse fato não provocará nenhuma “revolução”, nem sequer a revolução proclamada pela análise do ordinary language. Vamos ilustrar esse fato com um exemplo. Analisar com recursos lógicos as argumentações que figuram num diálogo platônico, mostrar suas incoerências, preencher suas lacunas, detectar conclusões falsas etc. pode conter um caráter esclarecedor. Mas será que desse modo aprendemos a ler Platão? Aprendemos a apropriar-nos de suas perguntas? Será que conseguimos aprender dele, em vez de confirmar nossa superioridade sobre ele? O que é dito sobre Platão é aplicável mutatis mutandis a qualquer filosofia. Parece-me que Platão definiu isso, de uma vez por todas, na Sétima Carta: os recursos do filosofar não são o próprio filosofar. O rigor lógico ainda não é tudo. Não significa que a lógica não possui sua validez evidente. Mas limitar-se ao aspecto lógico reduz o horizonte do questionamento a uma verificabilidade formal, eliminando assim a abertura ao mundo, que se produz em nossa experiência de mundo interpretada na linguagem. Essa é uma constatação hermenêutica pela qual creio coincidir de algum modo com o último Wittgenstein. Ele reanalisou os preconceitos nominalistas de seu Tractatus a fim de reconduzir toda a linguagem aos contextos da práxis de vida. De certo, o resultado dessa redução foi para ele amplamente negativo. Consistiu na exclusão de todas as perguntas indemonstráveis da metafísica e não na sua recuperação, por mais indemonstráveis que sejam, escutando-as desde a constituição de nosso ser-no-mundo que se dá na linguagem. Para esse fim, da palavra dos poetas podemos aprender muito mais do que do próprio Wittgenstein. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.