Gadamer (VM): Nietzsche

Aliás, a gente não consegue apreender corretamente a essência da própria memória, caso nela não vejamos nada mais do que uma disposição ou uma capacidade genérica. Reter, esquecer e voltar a lembrar pertencem à constituição histórica do homem e formam mesmo uma parte de sua história e de sua formação. Quem exercita sua memória como uma mera capacidade — e toda a técnica da memória é tal exercício — não a terá ainda como o que é o seu mais próprio. A memória tem de ser formada. Pois a memória não é memória como tal e para tudo. Para algumas coisas temos memória, para outras não, e algumas coisas queremos guardar na memória, outras banir. Estaria na hora de libertar o fenômeno da memória de seu nivelamento capacitivo que a psicologia lhe impôs e de reconhecê-lo como um traço essencial do ser limitado-histórico do homem. À postura de reter e de lembrar pertence — de um modo que por muito tempo não foi suficientemente levado em consideração — o esquecimento e que é não somente uma perda e uma carência, mas, como acentua sobretudo F. Nietzsche, uma condição de vida do espírito. Somente através do esquecimento é que o espírito recebe a possibilidade de uma total renovação, a capacidade de ver tudo com os olhos recém-abertos, de maneira que o que é velho e familiar se funde com as novidades que se vêem em uma unidade de várias estratificações. “Reter” é, pois, ambíguo. Contém, como memória (mneme) a conexão com a lembrança (anamnesis). O mesmo vale também para o conceito do “tato”, que Helmholtz utiliza. Sob tato, entendemos uma determinada sensibilidade e capacidade sensível para situações e postar-se nelas, para as quais não possuímos nenhum saber baseado em princípios universais. Por isso, a não-expressividade e a incapacidade de expressar pertencem essencialmente ao tato. A gente pode dizer alguma coisa com tato. Mas isso sempre irá significar que, com tato, contornamos algo e não o dizemos, e que não temos tato para exprimir o que só se consegue contornar. No entanto, não quer dizer: desviar a vista, mas manter ao alcance da vista, de forma que não se esbarre, mas passe ao largo. Por essa razão é que o tato ajuda a manter distância. Evita o impacto, a proximidade demasiada e o ferimento da esfera íntima da pessoa. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

O apelo de Schleiermacher ao sentimento vivo contra o frio racionalismo do Aufklärung, a proclamação de Schiller a favor da liberdade estética contra o mecanismo da sociedade, a oposição de Hegel da vida (mais tarde: do espírito) contra a “positividade”, foram o tom antecipador de um protesto contra a moderna sociedade industrial que, no início do nosso século, fizeram ascender as palavras de ordem vivência e vivenciar a um tom quase religioso. O levante do movimento da juventude contra a formação burguesa e suas formas de vida encontrava-se sob esse signo. A influência de Friedrich Nietzsche e de Henri Bergson atuou nessa direção. Mas também um “movimento espiritual” como o que envolveu Stefan George e, não por último, a fineza sismográfica, com a qual o filosofar de Georg Simmel reagiu a esses processos, testemunham a mesma coisa. E assim que a filosofia de vida dos nossos dias se vincula aos seus antecessores românticos. A rejeição à mecanização da vida na existência de massa da atualidade acentua a palavra ainda hoje com uma tal auto-evidência que mantém totalmente encobertas suas implicações conceituais. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Vê-se assim que, em Dilthey, como em Husserl, na filosofia da vida, tal como na fenomenologia, o conceito da vivência se mostra, de início, como um conceito puramente epistemológico. Em ambos ele é reivindicado com a sua significação teleológica, mas não é determinado conceitualmente. Que é a vida que se manifesta na vivência, significa apenas que é a última coisa a que tornamos a voltar. Para essa cunhagem conceitual, do ponto de vista do desempenho, a história da palavra forneceu uma certa legitimação. Pois vimos que uma significação condensadora e intensiva faz parte da formação da palavra vivência. Quando algo é denominado ou avaliado como uma vivência, isso ocorre através de sua significação associada à unidade de sentido total. O que vale como vivência é realçado tanto por outras vivências — nas quais se experimenta algo diferente — bem como pelo restante do decurso da vida — no qual “nada” é experimentado. O que vale como uma vivência não é mais meramente uma fugaz torrente passageira na torrente da vida consciente — é vista como unidade e ganha, através disso, uma nova maneira de ser una. Nesse sentido é muito compreensível que a palavra apareça na literatura biográfica e que se origine, ao final das contas, do uso autobiográfico. O que se pode denominar vivência constitui-se na lembrança. Aludimos com isso ao conteúdo significante que, para quem teve a vivência, fica como uma posse duradoura. É isso o que ainda legitima o discurso da vivência intencional e da estrutura teleológica, que o consciente possui. Por outro lado, porém, há no conceito da vivência também a contraposição da vida para com o conceito. A vivência possui uma acentuada imediaticidade, que se subtrai a todas as opiniões sobre o seu significado. Tudo o que foi vivenciado é auto-vivência e colabora para perfazer seu significado o fato de que este pertence à unidade do “auto”, contendo assim uma correlação insubstituível e imprescindível com o todo dessa vida. Nesse sentido e de acordo com a natureza da coisa, não desabrocha nele o que se pode obter por intermédio dele e se pode fixar como seu significado. A reflexão autobiográfica ou biográfica, em que se determina seu conteúdo significante, fica fundida no todo do movimento da vida e continua acompanhando-a ininterruptamente. Ser assim tão determinada, a ponto de a gente não conseguir dar conta dela, é, por assim dizer, a maneira de ser da vivência. Nietzsche diz: “Nos homens profundos as vivências duram longo tempo”. Com isso ele quer dizer o seguinte: elas não são esquecidas rapidamente, sua elaboração é um longo processo e justamente nisso reside seu ser específico e seu significado e não somente no conteúdo, como tal, experimentado originariamente. O que denominamos enfaticamente de vivência significa pois algo inesquecível e insubstituível, que é basicamente inesgotável para uma determinação compreensível de seu significado. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Reside na natureza das coisas que, tendo em vista a tarefa que se nos propõe, o idealismo especulativo oferece melhores possibilidades do que Schleiermacher e a hermenêutica que a ele se vincula. É que no idealismo especulativo o conceito do dado, da positividade, tinha sido submetido a uma profunda crítica — e justamente a ela é que Dilthey havia atentado apelar para a sua filosofía da vida. Ele escreve: “Através de que designa Fichte o início de algo novo? Pelo fato de que parte da contemplação intelectual do eu, porém concebendo-o não (247) como uma substância, um ser, um dado, mas exatamente através dessa contemplação, isto é, desse difícil aprofundamento do eu em si próprio, o concebe como vida, atividade, energia, e por consequência, mostra nele a realização de conceitos energéticos como oposição etc”. Da mesma forma, Dilthey acabou reconhecendo no conceito hegeliano do espírito a vitalidade de um genuíno conceito histórico. Nessa mesma direção atuam alguns de seus contemporâneos, como já destacamos na análise do conceito da vivência: Nietzsche, Bergson, este já um tardio seguidor da crítica romântica contra a forma de pensar da mecânica, e Georg Simmel. Mas foi somente Heidegger que tornou consciente, de uma maneira geral, a radical exigência que se coloca ao pensamento em virtude da inadequação do conceito de substância para o ser e o conhecimento histórico. Somente através dele é que se liberou a intenção filosófica de Dilthey. Para o seu trabalho, Heidegger se engatou na investigação da intencionalidade da Fenomenologia de Husserl, que representa a ruptura mais decidida, na medida em que não é o platonismo extremo, como o via Dilthey. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Essa é a razão pela qual o verdadeiro precursor da posição heideggeriana na indagação pelo ser e no seu remar contra a corrente dos questionamentos metafísicos ocidentais não podiam ser nem Dilthey nem Husserl, mas Nietzsche. Pode ser que o próprio Heidegger só o tenha compreendido mais tarde. Mas, retrospectivamente, pode-se dizer: elevar a crítica radical de Nietzsche ao “platonismo” até a altura da tradição criticada por ele, confrontar-se com a metafísica ocidental à sua própria altura e reconhecer e superar o questionamento transcendental como uma consequência do subjetivismo moderno são tarefas que estão, segundo o enfoque, já esboçadas em Ser e tempo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Não passa de um mal-entendido ver na estrutura da temporalidade da cura (Sorge) um determinado ideal existencial, a que se pudesse opor humores mais agradáveis (Bollnow), como, por exemplo, o ideal da despreocupação (Sorglosigkeit) ou, no sentido de Nietzsche, a inocência natural dos animais e das crianças. Não obstante, não se pode negar que também este é um ideal existencial. Com isso, porém, ter-se-á de dizer que a sua estrutura é existencial, tal como mostrou Heidegger. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Todo presente finito tem seus limites. Nós determinamos o conceito da situação justamente pelo fato de que representa uma posição que limita as possibilidades de ver. Ao conceito da situação pertence essencialmente, então, o conceito do horizonte. Horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. Aplicando-se à consciência pensante falamos então da estreitez do horizonte, da possibilidade de ampliar o horizonte, da abertura de novos horizontes etc. A linguagem filosófica empregou essa palavra, sobretudo desde Nietzsche e Husserl, para caracterizar a vinculação do pensamento à sua determinidade finita e para caracterizar, com isso, a lei do progresso de ampliação do âmbito visual. Aquele que não tem um horizonte é um homem que não vê suficientemente longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que lhe está mais próximo. Pelo contrário, ter horizontes significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas poder ver para além disso. Aquele que tem horizontes sabe valorizar corretamente o significado de todas as coisas que caem dentro deles, segundo os padrões de próximo e (308) distante, de grande e pequeno. A elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam frente à tradição. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Surge então a indagação de se saber se esta descrição alcança realmente o fenômeno hermenêutico. Existem realmente, aqui, dois horizontes diferentes, aquele no qual vive o que compreende e o horizonte histórico a que este pretende se deslocar? Trata-se de uma descrição correta e suficiente da arte da compreensão histórica, a de que é necessário aprender a deslocar-se a horizontes alheios? Pode-se dizer, nesse sentido, que existem horizontes fechados? Convém lembrar a objeção que Nietzsche fez ao historicismo, de romper o horizonte circunscrito pelo mito, único lugar onde uma cultura pode viver. Pode-se dizer que o horizonte do próprio presente é algo tão fechado? É sequer pensável uma situação histórica limitada por um tal horizonte fechado? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Esse deslocar-se não é nem empatia de uma individualidade na outra, nem submissão do outro sob os próprios padrões, mas significa sempre uma ascensão a uma universalidade superior, que rebaixa tanto a particularidade própria como a do outro. O conceito de horizonte se torna aqui interessante, porque expressa essa visão superior mais ampla, que aquele que compreende deve ter. Ganhar um horizonte quer dizer sempre aprender a ver mais além do próximo e do muito próximo, não para apartá-lo da vista, senão que precisamente para vê-lo melhor, integrando-o em um todo maior e em padrões mais corretos. Quando se fala, com Nietzsche, dos muitos horizontes mutáveis, aos quais a consciência histórica ensina a se deslocar, não se trata de uma autêntica descrição da mesma. Aquele que aparta o olhar de si mesmo priva-se justamente do horizonte histórico, e a demonstração de Nietzsche das desvantagens da ciência histórica para a vida não diz respeito, na verdade, à consciência histórica como tal, mas à auto-alienação de que é vítima quando entende a metodologia da moderna ciência da história como sua própria essência. Já acentuamos que uma consciência verdadeiramente histórica sempre tem em vista também seu próprio presente, e o faz vendo tanto a si mesma como ao historicamente outro nas suas verdadeiras relações. É evidente que para ganhar para si um horizonte histórico requer um esforço pessoal. Najá sempre estamos tomados pelas esperanças e temores do que nos é mais próximo e saímos ao encontro dos testemunhos do passado a partir dessa pré-determinação. Por isso, deve ser uma tarefa constante impedir uma assimilação precipitada do passado com as próprias expectativas de sentido. Só então se chega a ouvir a tradição tal como ela pode fazer-se ouvir em seu sentido próprio e diferente. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

E assim, surge a questão de se saber até que ponto a superioridade dialética da filosofia da reflexão corresponde a uma verdade pautada na coisa ou até que ponto gera tão-somente uma aparência formal. Pois a argumentação da filosofia da reflexão não pode acabar ocultando que a crítica contra o pensamento especulativo, que é exercida do ponto de vista da limitada consciência humana, contém algo de verdade. Isso se mostra muito particularmente nas formas epigônicas do idealismo, por exemplo, na crítica neokantiana da filosofia da vida e da filosofia existencial. Em 1920, Heinrich Rickert, argumentando fundamentalmente a “filosofia da vida”, não conseguiu alcançar o efeito de Nietzsche e de Dilthey, que então começava a exercer sua grande influência. Mesmo que se mostre claramente a contraditoriedade interna de qualquer relativismo, as coisas não deixam de ser como as descreve Heidegger: todas essas argumentações triunfais têm sempre algo de uma tentativa de ataque de surpresa. Por mais convincentes que pareçam, passam ao largo face ao verdadeiro núcleo das coisas. Servindo-se delas se tem razão, e, no entanto, não expressam nenhuma evidência superior, que fosse fecunda. É uma argumentação irrefutável que a tese do ceticismo ou do relativismo pretende ser verdade e, por conseguinte, se auto-suprime. Mas, o que se consegue com isso? O argumento da reflexão, que alcança esse fácil triunfo, ricocheteia contra aquele que o emprega, na medida em que torna suspeito o valor de verdade da reflexão. O que se alcança através dessa argumentação não é a realidade do ceticismo ou de um relativismo capaz de dissolver qualquer verdade, mas a pretensão de verdade do argumentar formal em geral. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A experiência do tu, que assim se adquire, é objetivamente mais adequada que o conhecimento das pessoas, que só procura calcular sobre eles. É uma pura ilusão ver no outro um instrumento completamente dominável e manejável. Inclusive no servo há uma vontade de poder que se volta contra o senhor, como acertadamente o expressou Nietzsche. Todavia, esta dialética da reciprocidade que domina toda a relação-eu-tu permanece necessariamente oculta para a consciência do indivíduo. O servo que tiraniza o senhor com a sua própria servidão não crê, de modo algum, que nisto se busca a si mesmo. E mais, a própria autoconsciência consiste justamente em subtrair-se (366) à dialética desta reciprocidade, retirar-se reflexivamente desta relação com o outro e tornar-se assim inacessível para ele. Quando se compreende o outro e se pretende conhecê-lo, se lhe subtrai, na realidade, toda a legitimação de suas próprias pretensões. Em particular isto é válido para a dialética da assistência social, na medida em que penetra todas as relações inter-humanas como uma forma reflexiva de impulso para o domínio. A pretensão de compreender o outro, antecipando-se-lhe, cumpre a função de manter, na realidade, a distância a pretensão do outro. Isto é bem conhecido, por exemplo, na relação educadora, uma forma autoritária da assistência social. A dialética da relação-eu-tu se torna mais aguda nessas formas reflexivas. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Se a filosofia grega se obstina em não perceber essa relação ente palavra e coisa, entre falar e pensar, o motivo é que o pensamento tinha que defender-se da estreita relação entre palavra e coisa em meio à qual vive o homem falante. O domínio dessa língua, “a mais falável de todas” (Nietzsche), sobre o pensamento era tão intenso que a filosofia teve de dedicar seu (422) mais entranhado empenho à tarefa de libertar-se dele. Por isso, os filósofos gregos combateram, desde o princípio, o desvio e extravio do pensamento no “onoma” e se mantiveram, frente a isso, na idealidade que a própria linguagem realiza continuamente. Isso vale para Parmênides, que pensava a verdade da coisa partindo do logos, e vale plenamente a partir da mudança de rumo platônica na direção dos “discursos”, seguindo também pela orientação aristotélica das formas do ser nas formas da enunciação (schemata tes kategorias). Porque aqui, o logos era considerado determinado por sua orientação para o eidos, o ser próprio da linguagem só podia ser pensado como extravio, e o pensamento tinha que se esforçar em conjurá-lo e dominá-lo. A crítica da correctura dos nomes, realizada no Crátilo, representa o primeiro passo numa direção que desembocaria na moderna teoria instrumentalista da linguagem e no ideal de um sistema de signos da razão. Comprimido entre a imagem e o signo, o ser da linguagem só poderia acabar sendo nivelado em um puro ser-signo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Precisamente o que caracteriza a relação do homem com o mundo, por oposição à de todos os demais seres vivos, é a sua liberdade face ao mundo circundante. Essa liberdade inclui a constituição linguística do mundo. Um faz parte do outro. Elevar-se acima das coerções do que vem ao nosso encontro a partir do mundo significa ter linguagem e ter mundo. Sob essa forma, a nova antropologia filosófica elaborou, em confrontação com Nietzsche, a oposição peculiar do homem e mostrou que a constituição linguística do mundo está muito longe de significar que o comportamento humano com relação ao mundo fique constringido a um ambiente esquematizado linguisticamente. Ao contrário, a elevação, ou o estar elevado acima das coerções do mundo é algo que não se dá apenas onde há linguagem e onde há homens; essa liberdade face ao mundo circundante é também liberdade face aos nomes que damos às coisas, como expressa também essa profunda narração do Gênesis, segundo a qual Adão recebeu de Deus o pleno poder de pôr nomes. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Por isso, não consigo ver claramente por que alguns dos melhores críticos recentes da hermenêutica, como Heiner Anz, Manfred Frank ou Thomas Seebohm, consideram que o fato de eu continuar empregando conceitos tradicionais da filosofia seria uma inconsistência de meu projeto de pensamento. Este argumento foi empregado de maneira semelhante por Derrida contra Heidegger. Heidegger teria malogrado na superação da metafísica levada a efeito, na verdade, por Nietzsche. Na sequência lógica dessa argumentação, a recente recepção francesa de Nietzsche acaba desembocando na dissolução da questão do ser e da questão do sentido como tais. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Se quisermos caracterizar o modo de ser próprio da filosofia alemã dos últimos decênios, encontraremos no seu posicionamento histórico o seu traço mais importante. Por algumas vezes, observadores anglo-saxões caracterizaram esse posicionamento como sufocante e perguntaram o porquê de a filosofia alemã ocupar-se preponderantemente com a história da filosofia. De fato, esse interesse da filosofia pela sua própria história não é de modo algum evidente, contendo um conjunto próprio de questões. Se na filosofia, como em todo conhecimento, está em jogo a busca da verdade, por que precisamos perceber os caminhos e desvios que nos levam a ela? Além do mais, a crítica que Friedrich Nietzsche fez à história, na famosa segunda Consideração intempestiva, ainda está ressoando em nossos ouvidos, de homens de hoje. O sentido histórico será realmente aquela ampliação majestosa de nosso mundo que o século XIX percebeu nele? Não será ele, antes, um sinal de que o homem moderno já não tem mais um mundo próprio, desde que aprendeu a olhar para o mundo com cem olhos simultâneos? O sentido de verdade não se dissolve quando as perspectivas vacilantes, onde se manifesta a verdade, se tornam conscientes? VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

(33) Será que existe realmente essa liberdade da compreensão? Será que nele se revela o nexo infinito do acontecimento como a essência da história? Será que não perguntamos exatamente pela essência da história quando perguntamos pelos limites da autoconsciência histórica? Nietzsche nos precedeu nesse questionamento. Na segunda Consideração intempestiva, ele se pergunta pela utilidade e desvantagem da história para a vida. Esboça aqui uma imagem aterradora da doença histórica que se abateu sobre sua época. Mostra como todos os instintos promotores da vida estão profundamente deteriorados por camsa dessa doença; como todos os padrões e valores vinculantes se perderam, pelo fato de aprendermos a medir com padrões estranhos e arbitrários, pautando-nos sempre em novas tábuas de valores. Mas a crítica de Nietzsche tem também seu lado positivo. Proclama um padrão de medida da vida, que mede o quanto de história uma cultura pode suportar sem sofrer danos. A autoconsciência histórica pode apresentar-se de diversos modos: conservadora, modelar ou pressentindo a decadência. A força plástica, a única capaz de dar vida a uma cultura, deve ser obtida no justo equilíbrio entre estes diversos modos de se fazer história. Ela necessita de um horizonte cercado de mitos, necessita pois de uma delimitação frente ao Iluminismo histórico. Haverá porém um voltar atrás? Ou talvez isso não seja necessário? Será que a fé na infinitude da compreensão da razão histórica é uma ilusão, uma auto-interpretação falsa de nosso ser e de nossa consciência históricos? Esta é a pergunta decisiva. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

2. Mas será que as ciências do espírito realmente satisfazem aquilo que as torna tão significativas para nós, a saber, a ânsia de verdade do coração humano? É verdade que, à medida que perpassam os amplos espaços da história, pela investigação e compreensão, elas ampliam o horizonte espiritual da humanidade em relação ao conjunto do seu passado. Mas, com isso, elas não só não satisfazem à busca de verdade presente à nossa atualidade, como a tornam digna de ser pensada. O sentido histórico formado pelas ciências do espírito implica um habituar-se a parâmetros oscilantes, os quais acabam levando à insegurança no uso de uma medida própria. Nietzsche, em sua segunda Consideração intempestiva, falou não só da utilidade, mas também da desvantagem da ciência histórica para a vida. O historicismo, que vê em toda parte um condicionamento histórico, destruiu o sentido pragmático dos estudos históricos. Sua arte refinada de compreensão enfraquece a força do valor incondicional, onde repousa a realidade ética da vida. Seu ápice epistemológico é o relativismo, sua consequência, o niilismo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.

(45) Acostumamo-nos a ouvir, porém, essa palavra de Pilatos também num outro tom, como por exemplo, aquele em que Nietzsche ouviu esta palavra, ao afirmar que é a única palavra do Novo Testamento que possui valor. Nesse sentido, a palavra de Pilatos estaria expressando uma repulsa cética frente aos “fanáticos”. Não é por acaso que Nietzsche afirmou isto; sua própria crítica ao cristianismo de seu tempo é a crítica de um psicólogo a um fanático. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

Nietzsche aguçou de tal modo esse ceticismo a ponto de torná-lo um ceticismo contra a ciência. Na verdade, a ciência tem algo em comum com o fanático: porque ela constantemente exige e dá demonstrações, acaba sendo tão intolerante quanto ele. Ninguém é mais intolerante do que aquele que quer comprovar que aquilo que ele diz deve ser a verdade. Segundo Nietzsche, a ciência é intolerante porque consiste num sintoma de fraqueza, num produto tardio da vida, num alexandrinismo, herança daquela decadência que Sócrates, o inventor da dialética, introduziu num mundo em que ainda não havia nenhuma “indecência da demonstração”, mas onde uma nobre autocerteza assinalava e dizia sem precisar demonstrar. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

Esse ceticismo psicológico contra a afirmação da verdade não atinge, por certo, a própria ciência. Nesse aspecto, ninguém está disposto a seguir Nietzsche. Mas há de fato uma dúvida também quanto à ciência como tal, dúvida que se nos abre como um terceiro nível, por trás da afirmação “o que é verdade?” Será a ciência, como ela própria reivindica para si, a última instância e a única portadora da verdade? VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

O novo impulso filosófico de Heidegger não fez sentir seus efeitos positivos apenas na teologia, mas rompeu sobretudo com a rigidez relativista e tipológica reinantes na escola de Dilthey. Deve-se a G. Misch ter liberado novamente os impulsos filosóficos de Dilthey confrontando-o com Husserl e Heidegger. Não obstante a sua construção do princípio filosófico que rege a filosofia da vida de Dilthey estabeleça uma oposição com relação a Heidegger, o retorno de Dilthey à perspectiva da “vida”, ultrapassando a “consciência transcendental”, representou um importante apoio para a elaboração filosófica de Heidegger. A publicação de diversos tratados dispersos de Dilthey, realizada por G. Misch e outros, nos volumes V-VIII, (103) assim como as instrutivas introduções de Misch, trouxeram a público pela primeira vez, nos anos 20, a obra filosófica de Dilthey, que havia sido encoberta por seus trabalhos históricos. O problema hermenêutico alcançou sua radicalização filosófica quando as ideias de Dilthey (e Kierkegaard) passaram a fundamentar a filosofia existencial. Foi quanto Heidegger formulou o conceito de uma “hermenêutica da facticidade”, impondo — em contraposição à ontologia fenomenológica da essência, de Husserl — a tarefa paradoxal de interpretar a dimensão “imemorial” (Schelling) da “existência” e inclusive a própria existência como “compreensão” e “interpretação”, ou seja, como um projetar-se para possibilidades de si próprio. Nesse momento, alcançou-se um ponto no qual o caráter instrumentalista do método, presente no fenômeno hermenêutico, teve de reverter-se à dimensão ontológica. “Compreender” não significa mais um comportamento do pensamento humano dentre outros que se pode disciplinar metodologicamente, conformando assim a um procedimento científico, mas perfaz a mobilidade de fundo da existência humana. A caracterização e ênfase que Heidegger atribui à compreensão como a mobilidade de fundo da existência culmina no conceito de interpretação, desenvolvido em sua significação teórica sobretudo por Nietzsche. Esse desenvolvimento está fundamentado na dúvida frente aos enunciados da autoconsciência, dos quais se deve duvidar melhor do que o fez Descartes, como diz expressamente Nietzsche. Em Nietzsche, o resultado dessa dúvida é uma modificação do sentido de verdade em geral. Com isso, o processo de interpretação transforma-se numa forma de vontade de poder, adquirindo assim uma significação ontológica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

O problema hermenêutico adquiriu uma nova ênfase na esfera da lógica das ciências sociais. Certamente, dever-se-á reconhecer que a dimensão hermenêutica encontra-se à base de toda experiência de mundo, desempenhando por isso uma função também no trabalho das ciências naturais, como ficou demonstrado sobretudo por Thomas Kuhn. E isso vale ainda com mais decisão para as ciências sociais, pois, à medida que a sociedade possui sempre uma existência compreendida no âmbito da linguagem, o próprio campo de objetos das ciências sociais (e não apenas sua formação teórica) é presidido pela dimensão hermenêutica. Em certo sentido, a crítica hermenêutica ao objetivismo ingênuo das ciências do espírito tem sua contrapartida na crítica da ideologia, inspirada em Marx (Habermas; cf. também a forte polêmica de Hans Albert contra essa corrente). Também a cura pelo diálogo representa um fenômeno hermenêutico eminente, cujas bases teóricas foram rediscutidas por J. Lacan e P. Ricoeur. O alcance da analogia entre doenças mentais e doenças sociais parece-me profundamente questionável. A situação do cientista social frente à sociedade não é a mesma que a do psicanalista frente a seu paciente. Uma crítica da ideologia que pensa estar isenta de toda preocupação ideológica não é menos dogmática que uma ciência social “positivista” que se compreende como técnica social. Frente a essas tentativas de mediação, parece-me compreensível a oposição defendida por Derrida entre a teoria da desconstrução e a hermenêutica. A experiência hermenêutica, no entanto, defende seu próprio direito contra uma tal teoria da desconstrução do “sentido”. Apesar de Nietzsche, buscar “sentido” na écriture nada tem a ver com metafísica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

O modelo fundamental de todo consenso é o diálogo, a conversa. Sabe-se que uma conversa não é possível, se uma das partes crê absolutamente estar numa posição superior em relação à outra, algo como se afirmasse possuir um conhecimento prévio dos preconceitos a que o outro se atém. Com isso, ele ver-se-ia trancado em seus próprios preconceitos. Em princípio, um consenso dialogai torna-se impossível quando um dos interlocutores do diálogo não se libera realmente para a conversa. Um caso semelhante seria, por exemplo, se alguém num ambiente social quisesse desempenhar o papel de psicólogo ou psicanalista e na pretensão de compreender psicanaliticamente os enunciados do outro não leva a sério o seu sentido. Neste caso, o companheirismo, base da vida social, estaria destruído. Essa problemática foi discutida sistematicamente sobretudo por Paul Ricoeur, ao falar do “conflito de interpretações”. Nessa discussão, situa Marx, Nietzsche e Freud de um lado e a intencionalidade fenomenológica da compreensão de “símbolos” de outro, buscando uma mediação dialética. De um lado, a derivação genética, como arqueologia, e de outro, a orientação para um sentido intencional, como teleología. Segundo ele, esse passo é apenas uma distinção preparatória, que limpa o terreno para uma hermenêutica geral, à qual caberia esclarecer a função constitutiva da compreensão de símbolos e da autocompreensão por meio de símbolos. Uma tal teoria geral hermenêutica parece-me inconsistente. Os modos de compreensão de símbolos, (117) dispostos aqui em paralelo, visavam sentidos de símbolo distintos, e por isso não constituem um “sentido” cada vez diverso da mesma realidade. Na verdade, um modo de compreender exclui o outro, porque se refere a algo diverso. Um compreende o que o símbolo quer dizer, o outro o que ele quer esconder ou mascarar. Trata-se de um sentido de “compreender” totalmente distinto. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Gostaria, assim, de postular e defender com fundamentos a universalidade do compreender e do dizer. Tudo pode ser trazido à linguagem. Podemos buscar um entendimento recíproco acerca de qualquer assunto. É verdade que nos sentimos restringidos à finitude de nosso próprio poder e capacidade e que apenas um diálogo realmente infinito poderia satisfazer essa pretensão. Mas isso é algo muito evidente. A questão é, antes, se não há uma série de graves objeções que se opõem à universalidade de nossa experiência de mundo mediada pela linguagem? Esta é a tese da relatividade de toda imagem de mundo instaurada como linguagem, tese extraída da herança de Humboldt e assumida pelos americanos e ativada com novas investigações empíricas. Essa tese afirma que as línguas não passam de imagens e visões do mundo, sendo impossível liberar-se dessa respectiva imagem de mundo, em cujo esquematismo se encerra o indivíduo. Os aforismos de Nietzsche intitulados (202) “Vontade de poder” já observavam que o verdadeiro ato criativo de Deus consistiu em ter criado a gramática, isto é, de nos ter instalado na esquematização de nosso domínio do mundo para que não possamos ir além deles. Mas não será que essa dependência do pensamento em relação às possibilidades de nosso dizer e aos usos de linguagem não denota um caráter coativo? E o que significa para o nosso destino o fato de ver-nos num mundo em vias de formar uma única cultura intercontinental, que vai equiparando tudo em nível global, a ponto de já não podermos mais falar com a mesma obviedade de antes sobre a exclusividade da filosofia ocidental? E a ideia de que toda nossa linguagem conceitual filosófica, assumida e transformada pelas ciências, não representa mais do que uma dessas perspectivas de mundo, e em última instância aquela de origem grega, não nos deixa pesarosos e pensativos? Trata-se da linguagem da metafísica, cujas categorias conhecemos pela gramática, como sujeito e predicado, Notnen e Verbum, substantivo e verbo. Com a consciência que começa a despertar hoje em nível planetário, pode-se pressentir que conceitos como o verbo soam como uma pré-equematização de toda nossa cultura europeia. Isso esconde a inquietante pergunta se em todo nosso pensamento, e mesmo na dissolução crítica de todos os conceitos metafísicos como substancia e acidentes, sujeito e seus atributos etc., incluindo toda nossa lógica predicativa, nosso pensamento não ficou restrito ao que se formou como estrutura de linguagem e comportamento no mundo, milénios antes de toda tradição escrita, na família dos povos indo-germânicos. É uma pergunta que nos colocamos justamente hoje, quando nos vemos quem sabe no final dessa nossa cultura de e pela linguagem, final anunciado pela civilização técnica e sua simbologia matemática. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 15.

A segunda forma de experiência de alienação é o que chamamos de consciência histórica, essa esplêndida arte, que vai se formando lentamente, da autocrítica na recepção dos testemunhos da vida passada. A famosa formulação de Ranke sobre a anulação da individualidade expressa numa fórmula popular o que representa o ethos do pensamento histórico: A consciência histórica propõe-se a tarefa de compreender todos os testemunhos de uma época a partir do espírito dessa época, desvinculando-os das realidades atuais que nos prendem à vida presente. Busca ainda conhecer o passado sem preciosismo e superioridade moral, como um passado humano igual ao nosso. O célebre escrito de Nietzsche “Sobre as vantagens e desvantagens da história para a vida” deu forma à contradição existente entre um tal distanciamento histórico e uma vontade de formação imediata, sempre presente na atualidade. Mostrou também algumas consequências dessa debilitada vontade formativa da vida, que ele chamou de alexandrina, que se apresenta como a ciência histórica moderna. Lembro que Nietzsche acusa o espírito moderno de ter sido tomado por uma debilidade axiológica, porque se acostumou de tal modo a trilhar cada vez novas perspectivas que acabou cego, incapaz de avaliar por si e de tomar posição frente ao que se lhe apresenta; a cegueira axiológica do objetivismo histórico remete aqui para o conflito entre o mundo histórico alienado e as forças vitais da atualidade. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

Nietzsche é certamente um testemunho extático, mas a experiência histórica que fizemos nos últimos cem anos com essa consciência histórica nos ensinou de modo impressionante que essa consciência, com sua pretensão a uma objetividade histórica, é acometida de dificuldades bem características. Um dos pontos mais (222) óbvios de nossa experiência científica é o fato de, com certeza inabalável, podermos subordinar as magistrais obras da investigação histórica — nas quais Ranke parece ter elevado a pretensão de auto-anulação da individualidade a uma espécie de perfeição — às tendências políticas de sua própria época. Quando lemos a história romana de Mommsen, sabemos quem pode tê-la escrito, isto é, qual a situação política de sua época que levou o historiador a compilar as vozes do passado numa formulação racional. Podemos comprovar isso também em Treitschke ou em Sybel, para citar apenas alguns exemplos marcantes da historiografia prussiana. Isso significa de imediato que a autoconcepção do método histórico não revela toda a realidade da experiência histórica. Poder controlar os preconceitos da própria atualidade para que não prejudiquem a compreensão dos testemunhos do passado é incontestavelmente um objetivo justificado. Mas o que assim se realiza não esgota toda a tarefa da compreensão do passado e sua tradição. Poderia ser, também — e o rastreamento dessa questão é na realidade uma das primeiras tarefas a serem feitas pela ciência histórica no exame crítico de sua autoconcepção — , que o que permite à investigação histórica aproximar-se desse ideal de uma total anulação da individualidade não passe de matéria irrelevante, enquanto que os resultados da investigação realmente grandes e produtivos conservariam sempre algo da magia de um espelhamento imediato do presente no passado e do passado no presente. Também essa segunda experiência, que representa o ponto de partida de minha investigação, a ciência histórica, só revela uma parte do que é a verdadeira experiência, isto é, do que significa para nós o encontro com a tradição histórica, limitando-se a conhecer, assim, apenas numa configuração alienada. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

Nesse sentido, o encontro com o cenário francês significa um verdadeiro desafio para mim. Derrida assevera que o Heidegger tardio não rompeu realmente com o logocentrismo da metafísica. Ao perguntar pela essência da verdade ou pelo sentido do ser, Heidegger segue falando, segundo Derrida, a linguagem da metafísica, que considera o sentido como algo que está à mão e que é preciso encontrar. Nessa questão, Nietzsche teria sido mais radical. Seu conceito de interpretação não significa a busca de um sentido simplesmente dado, mas a posição de sentido a serviço da “vontade de poder”. Somente assim rompe-se com o logocentrismo da metafísica. Essa continuação das ideias de Heidegger por obra sobretudo de Derrida, e que se apresenta como a radicalização dessas ideias, deverá repudiar logicamente a exposição e crítica de Nietzsche feita por Heidegger. Segundo Derrida, Nietzsche não representa o ponto extremo do esquecimento do ser, que culmina nos conceitos de valor e de ação. Ele constitui a verdadeira superação da metafísica, na qual Heidegger fica prisioneiro quando pergunta pelo ser, pelo sentido do ser como um logos a ser buscado. Não resta dúvidas de que, para fugir da linguagem da metafísica, o Heidegger tardio elaborou ele próprio sua linguagem semipoética. De ensaio em ensaio aparece uma nova linguagem, que impõe ao leitor a tarefa (334) de constante tradução dessa linguagem para seu próprio uso. A questão é saber até que ponto alguém consegue encontrar a linguagem para expressar essa tradução. A tarefa, porém, está proposta. É a tarefa de “compreender”. Sobretudo ao defrontar-me com os seguidores franceses, tenho plena consciência de que minhas próprias tentativas de “traduzir” Heidegger denunciam meus limites, e mostrando sobretudo até que ponto eu mesmo estou preso à tradição romântica das ciências do espírito e do legado humanista. Mas é exatamente frente a essa tradição do “historicismo” na qual estou imerso que adotei uma postura crítica. Numa carta pessoal já publicada, Leo Strauss já me chamara a atenção de que se Nietzsche constituía o ponto de orientação crítica para Heidegger, Dilthey o era para mim. Talvez a característica determinante da radicalidade de Heidegger tenha sido o fato de que sua própria crítica ao neokantismo fenomenológico de cunho husserliano acabou levando-o a considerar Nietzsche como o ponto extremo do que ele chama história do esquecimento do ser. Mas essa é uma afirmação eminentemente crítica que não se detém aquém de Nietzsche, mas ultrapassa-o. Na corrente nietzschiana francesa, sinto falta de um esclarecimento do que significa a dimensão sedutora do pensamento nietzschiano. Creio que é por causa dessa falta que chegam a pensar que a experiência do ser que Heidegger buscou descobrir por trás da metafísica é superada pela radicalidade do extremismo nietzschiano. Na verdade, a imagem de Nietzsche apresentada por Heidegger mostra melhor a profunda ambiguidade que se apresenta em seu pensamento quando se alcança segui-lo até seu ponto extremo e de ver em ação, justamente ali, o absurdo da metafísica, uma vez que a criação e transmutação de todos os valores acabam convertendo o próprio ser num conceito axiológico a serviço da “vontade de poder”. A tentativa de Heidegger de pensar o ser supera essa conversão da metafísica em pensamento axiológico, ou melhor, retrocede para além da própria metafísica, sem conformar-se com o extremismo de sua autodissolução, como acontece em Nietzsche. Esse perguntar retrospectivo não suspende o conceito de logos e suas implicações metafísicas, mas descobre sua unilateralidade e, por fim, sua “superficialidade”. Nesse sentido, o fato de o ser não se esgotar em sua automanifestação, mas, com a mesma originariedade com que se mostra, também se retraia e subtraia, isso reveste-se de uma importância decisiva. Essa é uma intuição autêntica defendida primeiramente por Schelling contra o idealismo lógico de Hegel. Heidegger retoma esta questão, reforçando-a com uma riqueza conceitual da qual Schelling carecia. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

De minha parte, procurei não esquecer o limite implícito em toda experiência hermenêutica do sentido. Ao escrever que “o ser que pode ser compreendido é linguagem”, essa frase dava a entender que o que é nunca pode ser inteiramente compreendido. Isso porque o que serve de orientação a uma linguagem sempre ultrapassa aquilo que nela se enuncia. O que vem à linguagem permanece como aquilo que deve ser compreendido, mas sem dúvida é sempre tomado e percebido como algo. Essa é a dimensão hermenêutica na qual o ser “se mostra”. A “hermenêutica da facticidade” (335) significa uma transformação do sentido da hermenêutica. Na tentativa que empreendi buscando descrever os problemas, deixei-me guiar pela experiência de sentido que podemos fazer com a linguagem para demonstrar o limite que lhe é imposto. O “ser para o texto”, que me serviu de orientação, não pode competir em radicalidade de experiência de limite com o “ser para a morte”, e a pergunta inesgotável pelo sentido da obra de arte ou pelo sentido da história que nos acontece, tampouco significa um fenômeno tão originário como a questão da finitude imposta à pre-sença humana. Nesse sentido, posso compreender por que o Heidegger tardio (e sobre isso talvez Derrida estivesse de acordo com ele) disse que eu não havia abandonado realmente a esfera da imanência fenomenológica presente em Husserl e em minha primeira formação neokantiana. Também consigo compreender que alguém creia ver esta “imanência” metodológica na insistência no círculo hermenêutico. De fato, querer romper este círculo parece-me uma exigência irrealizável, e até verdadeiramente contraditória. Como ocorre em Schleiermacher e em seu sucessor Dilthey, essa imanência nada mais é que a descrição do que é a compreensão. Desde Herder, entendemos por “compreender” algo mais que um procedimento metodológico para descobrir um sentido determinado. Ante a amplitude da compreensão, a circularidade que medeia entre o sujeito que compreende e aquilo que ele compreende deve reclamar para si uma verdadeira universalidade, e justamente aqui está o ponto no qual eu creio haver seguido a crítica de Heidegger ao conceito fenomenológico de imanência implícito na última fundamentação transcendental de Husserl. O caráter dialogai da linguagem, que eu busquei elaborar, ultrapassa o ponto de partida da subjetividade do sujeito, inclusive o do falante em sua referência ao sentido. O que se manifesta na linguagem não é a mera fixação de um sentido pretendido, mas um intento em constante mudança ou, mais precisamente, uma tentativa reiterada de deixar-se tomar por algo e com alguém. Mas isto significa expor-se. A linguagem está longe de ser uma mera explicitação e credenciamento de nossos preconceitos. Ela os coloca, antes, em jogo, os expõe à própria dúvida e à contraposição do outro. Quem já não fez a experiência — sobretudo frente ao outro, a quem queremos convencer — da facilidade com que alguém expressa suas razões, sobretudo as razões contrárias ao outro? A mera presença do outro, mesmo que ele nada diga, ajuda a revelar e desfazer a própria clausura e estreitamento. A (336) experiência dialogai produzida aqui não se limita à esfera das razões de uma e outra parte, cujo intercâmbio e coincidência podem definir o sentido de todo debate. Há algo mais, como mostram as experiências descritas; um potencial de alteridade, por assim dizer, que está além de todo consenso comum. Esse é o limite que Hegel não ultrapassou. É verdade que ele se deu conta do princípio especulativo que rege o logos, demonstrando-o até com certa figura de dramaticidade. Hegel desenvolveu a estrutura da autoconsciência e do “conhecimento de si mesmo na alteridade” como a dialética do reconhecimento, elevando essa dialética ao extremo da luta pela sobrevivência. Também Nietzsche, com sua aguda visão psicológica, revelou o substrato de “vontade de poder” presente até na submissão e no sacrifício: “também no escravo há vontade de poder”. Mas o fato de esta tensão entre a auto-renúncia e a auto-relação invadir a esfera das razões de uma e outra parte, a esfera portanto do debate temático, e de certo modo instalar-se nela, constitui o ponto onde Heidegger permanece para mim decisivo, justamente porque detecta aí o “logocentrismo” da ontologia grega. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Temos assim, de um lado, a semiótica e a linguística, que criaram novos conhecimentos sobre o modo funcional e a estrutura dos sistemas de linguagem e dos sistemas de signos. E, de outro, a teoria do conhecimento, segundo a qual a linguagem fornece a todos o acesso ao mundo. Ambas as correntes atuam conjuntamente para fazer-nos ver desde uma nova ótica os pontos de partida de uma justificação filosófica de acesso científico ao mundo. Seu pressuposto era de que o sujeito domina a realidade empírica com uma autocerteza metodológica, graças aos recursos da construção racional matemática, expressando-a em forma de enunciados de juízo. Desse modo, realizou sua autêntica tarefa cognitiva, realização que culmina no simbolismo matemático, que serve para conferir uma validez geral à formulação da ciência natural. O mundo intermediário da linguagem fica idealmente em suspenso. Quando a linguagem se torna consciente como tal, então apresenta-se como a mediação primeira para o acesso ao mundo. Assim, se esclarece o caráter insuperável do esquema de mundo formulado na linguagem. O mito da autocerteza, que em sua forma apodíctica passou a ser a origem e a justificação de toda validez, e o ideal de fundamentação última, disputado pelo apriorismo e o empirismo, perdem sua credibilidade ante a prioridade e ineludibilidade do sistema da linguagem que articula toda consciência e todo saber. Nietzsche nos ensinou a duvidar da fundamentação da verdade na autocerteza da própria consciência. Freud nos fez conhecer as admiráveis descobertas científicas que levaram a sério esta dúvida. E, da (339) crítica radical de Heidegger ao conceito de consciência, aprendemos a ver os pressupostos conceituais que procedem da filosofia grega do logos e que na guinada moderna elevaram o conceito de sujeito ao primeiro plano. Tudo isso confere a primazia à “estrutura da linguagem” própria de nossa experiência de mundo. Frente às ilusões da autoconsciência e frente à ingenuidade de um conceito positivista dos fatos, o mundo intermediário da linguagem aparece como a verdadeira dimensão do real, do dado. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Compreende-se assim a importância que foi ganhando o conceito de interpretação. Essa palavra expressava originalmente a relação mediadora, a função do intérprete entre pessoas que falavam idiomas diferentes, a função de tradutor. Daí, ela passou a exercer a função de deciframento de textos de difícil compreensão. No momento em que o mundo intermediário da linguagem se apresenta à consciência filosófica em sua significação predeterminante, a interpretação foi obrigada a ocupar também na filosofia uma espécie de posição-chave. A ascensão triunfal dessa palavra começou com Nietzsche e passou de certo modo a representar um desafio para qualquer tipo de positivismo. Existirá uma realidade que permita buscar com segurança o conhecimento do universal, da lei, da regra, e que encontre aí sua realização? Não é a própria realidade o resultado de uma interpretação? A interpretação é o que oferece a mediação nunca acabada e pronta entre homem e mundo, e nesse sentido a única imediatez verdadeira e o único dado real é o fato de compreendermos algo como algo. A crença nas proposições protocolares como fundamento de todo conhecimento não durou muito inclusive no Círculo de Viena. Mesmo no âmbito das ciências naturais, a fundamentação do conhecimento não pode evitar a consequência hermenêutica de que a realidade “dada” é inseparável da interpretação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Será que essa ideia significa que interpretar é impor um (340) sentido e não encontrar um sentido? Tal é a pergunta formulada por Nietzsche, que decide sobre o nível e o alcance da hermenêutica e das objeções de seu adversário. Em todo caso, é preciso assinalar que o conceito de texto só se constitui num conceito central na estrutura da linguagem a partir do conceito de interpretação; o que caracteriza o conceito de texto é que somente se apresenta à compreensão no contexto da interpretação e aparece como uma realidade dada à luz da interpretação. Isso vale também para o entendimento que se dá no diálogo, uma vez que podemos pedir para repetir os enunciados não muito claros ou controversos, buscando assim alcançar uma formulação vinculante, um processo que culmina depois na fixação protocolar. De modo semelhante, o intérprete de um texto pergunta pelo que há propriamente nele. Essa pergunta poderá ter uma resposta não isenta de pressuposições e preconceitos, uma vez que aquele que pergunta busca uma confirmação direta de suas próprias suposições. Nesse apelo, porém, ao que há nele, o texto aparece como um ponto de referência fixo frente à problematicidade, arbitrariedade ou no mínimo a pluralidade de possibilidades interpretativas que apontam para o texto. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Logo que Heidegger se deu conta disso, assumiu os riscos do pensamento radical de Nietzsche. Não encontrou outros caminhos a não ser os Holzwege (Sendas perdidas), que depois da curva do caminho esbarravam no intransitável. Mas terá só a linguagem da metafísica o que sustentou esse feitiço paralisante do idealismo transcendental? Heidegger extraiu as últimas consequências de sua crítica ao vazio ontológico da consciência e à autoconsciência abandonando a ideia da fundamentação metafísica. Essa virada e esse abandono, não obstante, continuaram sendo uma luta permanente com a metafísica. Para preparar sua superação era preciso não só pôr em evidência o subjetivismo moderno destruindo seus conceitos indemonstrados, mas resgatar à luz do conceito, como elemento positivo, a experiência primordial grega do ser, por trás do auge e do domínio da metafísica ocidental. O retorno de Heidegger à experiência do ser nos inícios pré-socráticos, partindo do conceito aristotélico de physis, foi na realidade um extravio aventureiro. De certo, Heidegger sempre teve presente o objetivo último, embora ainda muito vago: repensar o início, o inicial. Aproximar-se do início significa sempre dar-se conta de outras possibilidades abertas no percurso de retorno do caminho percorrido. Aquele que se situa no começo deve escolher o caminho, e aquele que retorna ao começo percebe que desde o ponto de partida poderia ter escolhido outros caminhos — assim como o pensamento oriental percorreu outros caminhos. Quem sabe se esse último ocorreu à margem da livre escolha, como é o caso da opção ocidental. Deve-se, antes, às circunstâncias que fizeram com que a ausência de uma construção gramatical de sujeito e objeto não levasse o pensamento oriental a desembocar numa metafísica de substância e acidente. Por isso, não surpreende que, em seu regresso ao começo, o próprio Heidegger tenha experimentado certo fascínio pelo pensamento oriental, buscando em vão nele aprofundar-se com a ajuda de visitantes japoneses e chineses. Não é fácil sondar as línguas, sobretudo a base comum de todas as línguas do próprio círculo cultural. Na verdade, mesmo na história das próprias origens é impossível encontrar realmente o começo. O começo retrocede sempre ao incerto, como ocorre ao viajante costeiro na célebre descrição da regressão no tempo, feita por Thomas Mann no início de sua A montanha mágica: por detrás do último relevo aparece sempre outro novo, num processo interminável. Correspondentemente, Heidegger acreditou encontrar a experiência inicial do ser em Anaximandro, em Heráclito, em Parmênides e por fim de novo em Heráclito, sucessivamente, testemunhos da (364) mútua pertença entre desvelamento (Entborgenheit) e velamento (Verbergung). Em Anaximandro acredita encontrar a presença mesma e a permanência de seu ser, em Parmênides o coração sem palpitações da aletheia, em Heráclito a physis que ama esconder-se. Mas tudo isso acaba sendo válido como indicação das palavras que assinalam para o intemporal, mas não para o discurso, quer dizer, para a auto-exposição do pensamento que encontramos nos textos primitivos. Heidegger pôde reconhecer sua própria visão do ser sempre apenas no nome, na força nominativa das palavras e em seus labirintos intransitáveis como artérias de ouro: esse “ser” não deveria ser o ser do ente. Os próprios textos mostraram sempre de novo não serem o último relevo no caminho que abria a visão para a clareira do ser. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Estava predeterminado — digamos assim — que Heidegger, pelo caminho de suas prospecções na rocha primitiva das palavras, tropeçaria com a figura final de Nietzsche, cujo extremismo havia ousado o caminho da autodestruição de toda metafísica, de toda verdade e de todo conhecimento da verdade. De certo, a arte conceitual de Nietzsche não podia satisfazê-lo, embora aplaudisse seu desencantamento da dialética — “de Hegel e dos outros Schleiermachers” — e mesmo que a visão da filosofia na época trágica dos gregos pudesse confirmá-lo pela ideia de ver na filosofia algo mais do que essa metafísica de um mundo verdadeiro por trás do mundo aparente. Tudo isso fez com que por um breve espaço de tempo Nietzsche se tornasse o companheiro de viagem de Heidegger. “Tantos séculos… e nenhum novo deus…” foi o lema de abertura de seu Nietzsche. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

No âmbito dessa tensão, produzem-se as mais peculiares mudanças de acento. Segundo a filosofia hermenêutica, a teoria de Heidegger sobre a superação da metafísica que desemboca do esquecimento total do ser durante a era tecnológica, passa ao largo da permanente resistência e tenacidade das unidades da vida, que continuam existindo nos pequenos e grandes grupos de coexistência inter-humana. Segundo o desconstrutivismo, ao contrário, quando Heidegger pergunta pelo sentido do ser falta-lhe radicalidade extrema. Com isso, ele se atém a um sentido interrogativo que, de certo modo, não pode obter nenhuma resposta razoável. À pergunta pelo sentido do ser, Derrida opõe a diferença primária. Ele considera Nietzsche como uma figura muito mais radical frente à pretensão metafisicamente mediana do pensamento heideggeriano. Heidegger estaria ainda situado na linha do logocentrismo, ao que ele contrapõe o lema do sentido que está em constante desconexão e deslocamento que desfaz toda reunião em unidade, e que ele chama de écriture. Fica claro que Nietzsche representa aqui o ponto crítico. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Para uma confrontação e exame das perspectivas que se abrem nos dois caminhos apresentados, que retrocedem a partir da dialética, podem-se debater, por exemplo, no caso de Nietzsche, as possibilidades que se oferecem a um pensamento que já não pode ser levado adiante pela metafísica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Quando chamo de dialética à situação inicial da qual Heidegger tenta percorrer seu caminho de volta, não o faço pela razão extrema segundo a qual Hegel fez sua síntese secular do legado da metafísica mediante uma dialética especulativa que pretendia recolher e assimilar toda a verdade do começo grego. Faço-o sobretudo porque Heidegger foi realmente aquele que não ficou preso às modificações e perpetuações do legado da metafísica realizadas pelo neokantismo de Marburgo e pela reformulação neokantiana da fenomenologia de Husserl. O que ele buscou como superação da metafísica não se esgotou no gesto de protesto, como é o caso da esquerda hegeliana e de figuras como Kierkegaard e Nietzsche. Ele empreendeu essa tarefa pelo árduo trabalho do conceito, (369) aprendido em Aristóteles. Dialética significa, pois, em meu contexto o amplo conjunto da tradição ocidental da metafísica, tanto o “lógico” em sentido hegeliano quanto o logos do pensamento grego, que marcou já os primeiros passos da filosofia ocidental. Nesse sentido, a tentativa de Heidegger de renovar a pergunta pelo ser, ou melhor, de formulá-la pela primeira vez em sentido não metafísico, portanto, o que ele chamou de “o passo para trás” foi um distanciamento da dialética. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Talvez a crítica que Derrida dirige à interpretação heideggeriana de Nietzsche — interpretação que a mim me convenceu — possa servir de ilustração para a problemática que levantamos e que nos tem ocupado. Temos de um lado a desconcertante riqueza de aspectos e o incessante jogo de disfarces, no qual a audácia mental de Nietzsche parece dispersar-se numa variedade inapreensível. De outro, a pergunta a ele dirigida: o que significa o jogo dessa audácia. Não que o próprio Nietzsche tivesse presente a unidade na dispersão, nem que tivesse traduzido em conceitos o nexo interno entre o princípio básico da vontade de poder e a mensagem meridiana do eterno retorno do mesmo. Se eu compreendo Heidegger, é precisamente isso o que Nietzsche não fez, de modo que as metáforas de suas últimas visões aparecem como facetas reflexivas, detrás das quais não há uma realidade unívoca. Essa seria, segundo Heidegger, a posição final de Nietzsche, onde se esquece e se perde a pergunta pelo ser. Assim, a era tecnológica na qual o niilismo alcança sua perfeição, significaria de fato, segundo o próprio Heidegger, o eterno retorno do mesmo. Pensar isso, assimilar a Nietzsche pelo pensamento, não me parece ser nenhuma recaída na metafísica e em seu esquema ontológico, que culmina no conceito de essência. Nesse caso, os caminhos de Heidegger, que estão a caminho de uma “essência” de estrutura radicalmente distinta, temporal, não se perderiam sempre de novo no intransitável. O diálogo que continuamos em nosso próprio pensamento e que talvez se enriquece em nosso tempo com novos e grandes interlocutores, numa humanidade de dimensões planetárias, deveria buscar sempre seu interlocutor… especialmente se esse interlocutor é radicalmente distinto. Aquele que me leva a valorizar muito a desconstrução, e insiste na diferença, se encontra no começo de um diálogo, e não no final. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Todo o conjunto da discussão de Löwith sobre a interpretação que Heidegger fez de Nietzsche, que aqui ou ali faz algumas observações justificadas, padece, sem perceber, do mesmo mal, a saber, propor o ideal nietzschiano da naturalidade frente ao princípio da formação ideal. Com isso, torna-se incompreensível o que pensa Heidegger ao colocar intencionalmente Nietzsche na mesma linha de Aristóteles — o que não significa que o coloque no mesmo ponto de Aristóteles. Ao contrário, por causa desse atropelo, o próprio Löwith vê-se enredado no absurdo de tratar a teoria nietzschiana do eterno retorno como uma espécie de Aristóteles redivivo. Para Aristóteles, na verdade, o eterno processo circular da natureza era o aspecto mais óbvio e evidente do ser. Para ele, a vida ética e histórica do homem permanece referida à ordem paradigmática do cosmos. Nada disso se encontra em Nietzsche. Este, ao contrário, pensa o círculo cósmico do ser inteiramente a partir da contradição que a existência humana representa para este círculo. O sentido do eterno retorno do mesmo está em ser uma doutrina para os homens, ou seja, ser uma tremenda provocação para a vontade humana, que aniquila todas as suas ilusões de futuro e progresso. Nietzsche pensa, portanto, a teoria do eterno retorno com o objetivo de atingir o homem na tensão de sua vontade. A natureza é pensada aqui a partir do homem, como aquilo que nada sabe sobre ele. Se quisermos compreender a unidade do pensamento de Nietzsche, não podemos agora, como numa nova inversão, querer colocar novamente em jogo a natureza contra a história. O próprio Löwith finca pé na afirmação da discrepância insolúvel de Nietzsche. Diante dessa afirmação, devemos colocar a seguinte pergunta: Como foi que Nietzsche acabou se enredando em um tal beco sem saída? Ou seja, por que para o próprio Nietzsche isso não representou uma amarra nem um fracasso, mas a grande descoberta e libertação? Para essa pergunta mais abrangente, o leitor não encontrará resposta alguma em Löwith. Mas é justamente isso que gostaríamos de compreender, isto é, tornar realizável pelo próprio pensamento. Foi isso o que fez Heidegger: construiu o sistema de referência a partir do qual as proposições de Nietzsche ganham uma ordenação recíproca. O fato desse sistema de referência não estar imediatamente expresso no próprio Nietzsche funda-se no sentido (382) metodológico desta mesma reconstrução. Löwith, ao contrário e de modo paradoxal, acaba reproduzindo o que ele próprio reconhecia como uma lacuna em Nietzsche: Reflete sobre a irreflexão; filosofa contra a filosofia, em nome da naturalidade, e apela para o sadio bom senso. Mas se este fosse um argumento filosófico, a filosofia já estaria morta há muito tempo e com isso também todo apelo a ela. Não há outra saída: Löwith só se libertará desse emaranhado ao reconhecer que o apelo à natureza e à naturalidade não é nem natureza e nem natural. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO III

Na perspectiva da história humana real, o único que se pode representar é o ceticismo histórico — o que por outro lado corresponde à ideia da Reforma cristã. Era essa a pretensão e a ideia que (414) estava por trás da descoberta de Löwith sobre as pressuposições teológicas, e especialmente escatológicas, da filosofia europeia da história, em “Weltgeschichte und Heilsgeschehen”. Pensar a unidade da história universal é, segundo Löwith, a falsa necessidade do espírito cristão modernista. Segundo Löwith, se levarmos realmente a sério a finitude do ser humano, não poderemos pensar nem no Deus eterno e nem no plano de salvação que este persegue junto com os homens. Deveríamos olhar para o eterno curso da natureza, para aprender nele a equanimidade, a única que é adequada à pequenez da existência humana no conjunto do universo. Como vemos, o “conceito natural do universo”, desenvolvido por Löwith tanto frente ao historicismo moderno, quanto à ciência moderna da natureza, tem um cunho estóico. Nenhum outro texto grego parece ilustrar tão bem as intenções de Löwith quanto o escrito pseudo-aristotélico (helenísticoestóico) “De mundo”. Não há do que se admirar. De certo, o autor moderno, tanto quando seu precursor helenista, só está interessado no processo da natureza enquanto representa o outro lado da desordem desesperadora das coisas humanas. Quem defende assim a naturalidade dessa imagem natural de mundo em hipótese alguma tomará o eterno retorno do mesmo como seu ponto de partida — como tampouco Nietzsche — , mas partirá sempre da pura e simples finitude da existência humana. Sua recusa da história espelha o fatalismo, isto é, o desespero frente ao sentido dessa existência. Não é uma negação do significado da história, mas a negação de que esta possa ser interpretada como tal. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

No mais, indiretamente, Strauss deu uma ampla e importante contribuição para a teoria hermenêutica através de sua investigação sobre um problema específico: saber até que ponto se deve levar em conta a tergiversação consciente da verdadeira opinião na compreensão de textos, quando se está sob a violência de ameaças de perseguição da autoridade ou da Igreja. Foram estudos sobre Maimônides, Halevy e Spinoza, sobretudo, que deram impulso e esse modo de consideração. Não quero pôr em dúvida as (421) interpretações de Strauss, pois parecem amplamente evidentes. Mesmo assim, gostaria de apresentar uma consideração oposta, cuja razão pode ser duvidosa nesses casos, mas que se justifica plenamente em outros casos, como em Platão. A dissimulação consciente, a tergiversação e o fato de esconder a própria opinião não são na verdade o caso extremo, raro de acontecer, de uma situação normal e corriqueira? Do mesmo modo, a perseguição (autoritária ou eclesial, inquisição etc.) não passa de um caso extremo, em comparação com a pressão, deliberada ou não, que a sociedade e a publicidade exercem sobre o pensamento humano. Quando tivermos plena consciência de que um e outro lado não se diferenciam a não ser por uma diferença de grau, então poderemos sentir a dificuldade hermenêutica do problema proposto por Strauss. E como poderemos chegar a uma constatação inequívoca da dissimulação? Desse modo, quando encontramos proposições contraditórias em um autor, não faz sentido tomar as proposições escondidas e ocasionais como expressão de sua verdadeira opinião, como pensa Strauss. Existe também um conformismo inconsciente no espírito humano que tende a tomar por realmente verdadeiro tudo que no geral se mostra como evidente. Existe, por outro lado, também uma tendência inconsciente de experimentar possibilidades extremas, mesmo que nem sempre se deixem conjugar com um todo coerente. O extremismo experimental de Nietzsche é um testemunho irrefutável. O caráter de contraditoriedade pode até ser um critério de verdade privilegiado, mas infelizmente não representa critério algum dentro da atividade hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Ali enfrentei logo novas experiências de estudo. Diferentemente das universidades das cidades grandes, as “pequenas” levavam (481) ainda uma verdadeira vida acadêmica, uma “vida de ideias” no sentido de Humboldt, e a faculdade de filosofia contava em cada matéria, em cada professor, com um “círculo” de estudos, de modo que nos sentíamos atraídos para múltiplos interesses. Foi quando, em Marburgo, começou a crítica à teologia histórica, empreendida pela chamada teologia dialética, seguindo o exemplo de Barth em seu comentário à Carta aos Romanos. Os jovens extremaram sua crítica ao metodologismo das escolas neokantianas, enquanto elogiavam a descrição fenomenológica de Husserl. Mas foi sobretudo a filosofia da vida, por trás da qual estava Friedrich Nietzsche, o “acontecimento” europeu que impregnou todo nosso sentimento cósmico, e em conexão com ele, ocupou os jovens espíritos com o problema do relativismo histórico debatido à luz de Wilhelm Dilthey e de Ernst Troeltsch. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

A isso acrescentava-se sobretudo a chegada ao mundo universitário do círculo formado em torno do poeta Stefan George. Foram sobretudo os livros de Friedrich Gundolf, fascinantes e de grande influência, os que criaram uma nova sensibilidade artística no tratamento científico da poesia. Em geral, tudo que nasceu desse círculo, os livros de Gundolf como o espírito de Ernst Bertram sobre Nietzsche, a retórica proletária de Wolters, a transparência cristalina de Salin e de modo especial o ataque enfático de Erich von Kahler ao célebre discurso de Max Weber sobre “a ciência como profissão”, tudo isso constituiu na verdade uma única grande provocação. Eram vozes de uma crítica decidida à cultura. Mas diferentemente de opiniões similares de outros setores, que encontravam uma certa audiência na típica insatisfação de principiantes universitários, entre os que me contava, sentíamos aqui que algo estava realmente acontecendo. Havia um poder por atrás das proclamações geralmente monótonas. Que um poeta como George, com a mágica ressonância de seus versos e a energia de sua pessoa, exercia tão forte influência formativa nas pessoas, dava o que pensar aos ânimos reflexivos e representava um corretivo para o jogo conceitual do estudo filosófico que jamais se conseguiria esquecer completamente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Há que se dizer que o fato de apelar à verdade da arte contra as dúvidas do relativismo histórico, que questionavam radicalmente a pretensão da filosofia de buscar a verdade pela via conceitual não representava nenhuma saída satisfatória. Por um lado, esse testemunho é muito forte. Porque ninguém pretende estender a fé no progresso, própria da ciência, aos cumes da arte e ver, por exemplo, em Shakespeare um progresso sobre Sófocles, ou em Miquelângelo um progresso sobre Fídias. Mas, por outro lado, o testemunho da arte é também muito frágil, uma vez que a obra de arte subtrai ao conceito a verdade que ela materializa. Em todo caso, a formação que proporcionava a consciência estética era tão insegura como a da consciência histórica e seu pensamento sobre as “concepções de mundo”. Mas isso não significa que a arte, assim como o confronto com as tradições do pensamento histórico, perdera seu fascínio. Ao contrário, a enunciação da arte como a enunciação dos grandes filósofos denotava ainda mais uma aspiração à verdade, confusa e inevitável, que não se podia neutralizar com nenhuma “história do problema” nem se deixava submeter às leis da rígida cientificidade e do progresso metodológico. Esse sentimento foi caracterizado então na Alemanha como “existencial”, sob a influência de uma reapropriação de Kierkegaard. Interessava uma verdade que não fosse devida tanto a alguns enunciados ou conhecimentos gerais, mas à imediatez das próprias vivências e à intransferibilidade da própria existência. Pensávamos que Dostoievski podia nos ensinar muito sobre isso. Os volumes de suas novelas, encadernados em vermelho, na edição de Piper, brilhavam em todas as escrivaninhas. As cartas de Van Gogh e Ou isto ou aquilo de Kierkegaard, que ele contrapunha a Hegel, nos fascinavam e por trás de todas as audácias e os riscos de nosso compromisso existencial aparecia — como uma ameaça ainda apenas visível ao tradicionalismo romântico de nossa cultura educativa — a figura gigante de Friedrich Nietzsche com sua crítica extática a tudo, também a todas as ilusões da autoconsciência. Onde estava o pensador cuja força filosófica poderia fazer frente a esses desafios? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Também na escola de Marburgo, abriu caminho esse novo sentimento da época. Era impressionante ver o entusiasmo sensível com que o astuto metodólogo da escola de Marburgo, Paul Natorp, se lançou em idade avançada para a inefabilidade mística do inconcreto e, além de Platão e Dostoievski, conjurou a Beethoven e a Rabindranath Tagore, à tradição mística de Plotino e do Mestre Eckhart — até os Quakers. Não menos impressionante era a energia selvagem com que Max Scheler — como conferencista convidado para Marburgo — demonstrou seu penetrante talento fenomenológico em campos sempre novos e inesperados. A isso acrescenta-se a fria nitidez com que Nicolai Hartmann tentou apagar seu próprio passado idealista com uma argumentação crítica; um pensador e mestre de uma tenacidade impressionante. Quando eu escrevi (483) minha dissertação sobre Platão e me doutorei em 1922, muito jovem ainda, estava sob a influência dominante de Nicolai Hartmann, que enfrentou o sistematismo idealista de Natorp. O que havia de vivo em nós era a esperança de uma reorientação filosófica ligada sobretudo à obscura palavra mágica “fenomenologia”. Mas depois que o próprio Husserl, que com todo seu gênio analítico e sua inegável paciência descritiva buscava sempre uma evidência última, não encontrou um melhor apoio filosófico do que o do idealismo transcendental de cunho neokantiano, donde poderia surgir algum amparo intelectual? Foi Heidegger quem o trouxe. Alguns aprenderam dele o que foi Marx, outros o que foi Freud, e todos nós, definitivamente, o que foi Nietzsche. O que me interessou em Heidegger foi que podíamos “repetir” a filosofia dos gregos, uma vez que a história da filosofia escrita por Hegel e reescrita pela “historia dos problemas” do neokantismo havia perdido seu fundamentum inconcussum: a autoconsciência. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

A partir do momento em que comecei a ser professor em Leipzig, sendo o único representante da matéria depois da jubilação de Theodor Litt, já não pude adaptar tão facilmente o ensino aos meus planos de investigação. Tinha que expor, além dos gregos e seu último e maior sucessor, Hegel, toda a tradição clássica desde Agostinho e Tomás de Aquino até Nietzsche, Husserl e Heidegger… sempre atento aos textos, em minha condição de semifilólogo. Em seminários, trabalhei também com textos poéticos difíceis, de Hölderlin, Goethe e Rilke sobretudo. Esse último, graças à sua linguagem refinada, era então o verdadeiro poeta da resistência universitária. Quem falasse como Rilke ou expusesse Hölderlin, como fazia Heidegger, era marginalizado e atraía os marginalizados para si. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Os diálogos platônicos marcaram-me, portanto, mais que os grandes pensadores do idealismo alemão, porque sempre me acompanharam. Meu relacionamento com eles foi singular. Se o caráter antecipador da conceptualidade grega, desde Aristóteles até Hegel e a lógica moderna, se nos apresenta, a nós, instruídos por Nietzsche e Heidegger, como limite além do qual encontram-se nossas (501) próprias perguntas sem reposta e nossas intenções sem serem satisfeitas, então o certo é que a arte do diálogo platônico se antecipou a essa aparente superioridade que cremos possuir como herdeiros da tradição judeu-cristã. Com a doutrina das ideias, com a dialética das ideias, com a matematização da física e com a intelectualização do que chamaríamos de “ética”, Platão plantou as bases para os conceitos metafísicos de nossa tradição. Mas ao mesmo tempo limitou todos seus enunciados pela via mimética e, como Sócrates, soube desarmar seus interlocutores com sua costumeira ironia. Desse modo, também neutralizou a presumida superioridade do leitor com a arte de sua poesia dialogal. A tarefa é filosofar com Platão, e não criticar Platão. Criticar Platão talvez se torne tão simplório como acusar a Sófocles de não ser Shekespeare. Isso poderá parecer paradoxal, mas só para aquele que está cego frente à relevância filosófica da imaginação poética de Platão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.