Mas o que não pôde satisfazer a Dilthey foi a mera remodelação dessa construção e sua transposição ao terreno do conhecimento histórico , empreendida pelo neokantismo por exemplo, sob a forma da filosofia dos valores. O próprio criticismo neokantiano lhe parecia dogmático, e nisso ele tinha razão, como quando chamou o empirismo inglês de dogmático. Pois o que sustenta a construção do mundo histórico não são fatos extraídos da experiência e em seguida incluídos numa referência valorativa, mas o fato de que a sua base é, antes, a historicidade interna, própria da mesma experiência. Este é um processo vital e histórico, e não tem seu caso-modelo na (226) constatação de fatos, mas na peculiar fusão de recordação e expectativa num todo que chamamos experiência e que se adquire na medida em que se faz experiência. O que prefigura o modo de conhecimento das ciências históricas e, em particular, o sofrimento e a lição que resulta da dolorosa experiência da realidade para aquele que amadurece rumo à compreensão. As ciências históricas tão-somente continuam o pensamento começado na experiência da vida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
O aspecto crítico dessa ideia não era, certamente, totalmente novo. Sob a forma de uma crítica ao idealismo, esse aspecto já havia sido pensado pelos neo-hegelianos, e, nesse sentido, não é por acaso que tanto os demais críticos do idealismo neokantiano como o próprio Heidegger acolham nesse momento um Kierkegaard procedente da crise espiritual do hegelianismo. Porém, de outra parte, essa crítica ao idealismo, tanto naquele tempo como agora, vê-se confrontada com a ampla pretensão do questionamento transcendental. Na medida em que a reflexão transcendental não queria deixar impensado nenhum dos possíveis motivos do pensamento no desenvolvimento do conteúdo do espírito — e desde Hegel, essa foi a pretensão da filosofia transcendental — esta já inclui sempre toda objeção possível na reflexão total do espírito. E isso vale igualmente para o questionamento transcendental, sob o qual Husserl colocou a tarefa universal da fenomenologia: a constituição de toda validez ôntica. É evidente que essa tarefa tem de incluir em si também a facticidade a que Heidegger deu validade. Husserl pode, assim, reconhecer o ser-no-mundo como um problema da intencionalidade de horizonte da consciência transcendental, e a historicidade absoluta da subjetividade transcendental teria de poder mostrar também o sentido da facticidade. Por isso Husserl pôde, em seguida, objetar contra Heidegger, mantendo-se consequente na sua ideia central do eu-originário, que o próprio sentido da facticidade é um eidos e pertence, portanto, essencialmente à esfera eidética das generalidades essenciais. Se examinarmos nesse rumo os esboços contidos nos últimos trabalhos de Husserl, sobretudo os trabalhos a respeito da “Crise”, no VII tomo, neles encontraremos realmente numerosas análises da “historicidade absoluta”, continuando a desenvolver de modo consequente a problemática das “Ideias”, as quais correspondem ao novo, revolucionário e polêmico ponto de partida de Heidegger. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Decerto, precisamos aprender a ler Dilthey contra sua própria (30) concepção de método. Aparentemente, os trabalhos de Dilthey partilhavam o mesmo ponto de partida que questionamento epistemológico neokantiano. Também ele procurou ajudar as ciências do espírito a encontrar uma fundamentação autônoma, filosófica, demonstrando seus princípios próprios. Concebeu a base de todas as ciências do espírito numa psicologia descritiva e analítica. Num trabalho clássico de 1892, intitulado Ideias para uma psicologia descritiva e analítica, Dilthey supera a metodologia das ciências naturais, no âmbito da psicologia, fornecendo assim às ciências do espírito sua própria consciência metodológica. Desta forma, ele também parece estar dominado pelo questionamento epistemológico, que pergunta pela possibilidade da ciência, e não pelo que é a história. Na verdade, porém, Dilthey não se restringe a refletir a respeito de nosso saber sobre a história, como acontece na ciência da história, mas pensa sobre o ser humano, que determina pelo seu próprio saber sobre sua história. Ele caracteriza o caráter fundamental da existência humana como “vida”. Esta é para ele a realidade originária “nuclear”, na qual também radica todo conhecimento histórico. Tudo que há de objetivo na vida humana repousa no trabalho da vida, formador de pensamento, e não num sujeito epistemológico. Arte, Estado, sociedade, religião, todos os valores, bens e normas incondicionais, que encontram sua consistência nesta esfera, provêm em última instância do trabalho da vida, formador de pensamento. Se estas realidades objetivas reivindicam uma validade incondicional, isso só pode ser esclarecido pela “limitação do horizonte do tempo”, isto quer dizer, pela falta de um horizonte histórico. Aquele que conhece história sabe, por exemplo, que o homicídio não é incondicionalmente um delito maior do que o roubo. Ele sabe que o antigo direito germânico punia o roubo de modo mais severo do que o homicídio, por ser, aquele, covarde e pouco viril. Somente quem não sabe disto é que pode acreditar numa hierarquia absoluta das coisas. O Iluminismo histórico leva à ideia da condicionalidade do incondicional, à ideia da relatividade histórica. Nem por isso, Dilthey torna-se o representante de um relativismo histórico, pois o seu pensamento não se ocupa da relatividade, mas da realidade “nuclear” da vida, que serve de fundamento para toda relatividade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.
No âmbito da filosofia moral, certamente não há nada parecido. Isto porque a partir de Rousseau e Kant não foi mais possível admitir uma perfectibilidade moral do gênero humano. No entanto, a crítica fenomenológica ao neokantianismo encontrou também aqui o seu êmulo, sobretudo no formalismo da filosofia moral de Kant. O ponto de partida assumido por Kant no fenômeno do dever e sua demonstração na incondicionalidade do imperativo categórico pareciam banir da filosofia moral todo conteúdo daquilo que ordena a lei moral. Por mais fraca que seja em seu aspecto negativo, a crítica de Max Scheler ao formalismo da ética kantiana demonstrou sua própria fecundidade pelo projeto de uma ética material dos valores. A crítica fenomenológica de Scheler ao conceito neokantiano de produção representou também um importante (70) estímulo, que levou especialmente Nicolai Hartmann a desviar-se do neokantianismo e dirigir-se à concepção de sua “metafísica do conhecimento”. O fato de o conhecimento não proporcionar nenhuma modificação no conhecido — e muito menos sua geração — , o fato de que tudo que é seja, independentemente de ser conhecido ou não, pareceu-lhe um argumento contra toda forma de idealismo transcendental e também contra a investigação husserliana da constituição. Positivamente, Nicolai Hartmann acreditava que no reconhecimento do ser-em-si do ente e em sua independência frente a toda subjetividade humana poderia traçar o caminho para uma nova ontologia. Dessa forma, chegou bem próximo do novo “realismo”, que começava a se impor com toda força na Inglaterra. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
O que o romantismo, com a descoberta do mistério indecifrável da individualidade, objetou contra a generalidade abstrata do conceito foi retomado no início do século XX pela crítica à filosofia acadêmica do século XIX e à fé liberal no progresso. Não foi por acaso que um discípulo do romantismo alemão, o escritor dinamarquês Sören Kierkegaard, dotado de grande maestria literária, tenha travado uma batalha nos anos quarenta do século XIX contra o predomínio acadêmico do idealismo hegeliano. No século XX, com a tradução de suas obras para o alemão, Kierkegaard passou a exercer grande influência na Europa. Foi sobretudo aqui em Heidelberg (mas também em muitos outros locais da Alemanha) que o pensamento começou a contrapor a experiência de um tu e da (211) palavra que une um eu e um tu ao idealismo neokantiano. O renascimento de Kierkegaard em Heidelberg, promovido sobretudo por Jaspers, teve forte expressão na revista Die Kreatur (A criatura). Homens como Franz Rosenzweig e Martin Buber, Friedrich Gogarten e Ferdinand Ebner, para citar alguns pensadores judeus, protestantes e católicos, de diversas procedências, e também um psiquiatra do quilate de Viktor von Waizsäcker, uniram-se na convicção de que o caminho da verdade passa pelo diálogo. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 16.
Em seu esforço para construir uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito, Dilthey encontrou uma forte oposição da escola epistemológica, que naquele momento também buscava fundamentar as mesmas ciências, partindo do ponto de vista neokantiano, ou seja, da filosofia dos valores desenvolvida por Windelband und Rickert O sujeito epistemológico pareceu-lhe ser uma abstração anêmica. Por mais que ele próprio estivesse entusiasmado pela busca de objetividade nas ciências do espírito, não poderia abstrair do fato de o sujeito conhecente, o historiador que compreende, não estar simplesmente postado frente ao seu objeto, a vida histórica, mas ser sustentado, ele próprio, pelo mesmo movimento da vida histórica. Sobretudo em seus últimos anos, Dilthey buscou cada vez mais fazer justiça à filosofia idealista da identidade, uma vez que no conceito idealístico do espírito estava pensada a mesma generalidade substancial entre sujeito e objeto, entre eu e tu, como ocorria em seu próprio conceito de vida. Aquilo que Georg Misch defendeu de modo tão agudo como ponto de vista da filosofia da vida contra Husserl e Heidegger partilhou com a fenomenologia tanto a crítica a um objetivismo histórico ingênuo quanto a sua justificação epistemológica através da filosofia dos valores vinda do sudoeste da Alemanha. Por mais evidente que tenha sido, a constituição do fato histórico, através da referência aos valores, não fez justiça às implicações do conhecimento histórico no acontecer histórico. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Também na escola de Marburgo, abriu caminho esse novo sentimento da época. Era impressionante ver o entusiasmo sensível com que o astuto metodólogo da escola de Marburgo, Paul Natorp, se lançou em idade avançada para a inefabilidade mística do inconcreto e, além de Platão e Dostoievski, conjurou a Beethoven e a Rabindranath Tagore, à tradição mística de Plotino e do Mestre Eckhart — até os Quakers. Não menos impressionante era a energia selvagem com que Max Scheler — como conferencista convidado para Marburgo — demonstrou seu penetrante talento fenomenológico em campos sempre novos e inesperados. A isso acrescenta-se a fria nitidez com que Nicolai Hartmann tentou apagar seu próprio passado idealista com uma argumentação crítica; um pensador e mestre de uma tenacidade impressionante. Quando eu escrevi (483) minha dissertação sobre Platão e me doutorei em 1922, muito jovem ainda, estava sob a influência dominante de Nicolai Hartmann, que enfrentou o sistematismo idealista de Natorp. O que havia de vivo em nós era a esperança de uma reorientação filosófica ligada sobretudo à obscura palavra mágica “fenomenologia”. Mas depois que o próprio Husserl, que com todo seu gênio analítico e sua inegável paciência descritiva buscava sempre uma evidência última, não encontrou um melhor apoio filosófico do que o do idealismo transcendental de cunho neokantiano, donde poderia surgir algum amparo intelectual? Foi Heidegger quem o trouxe. Alguns aprenderam dele o que foi Marx, outros o que foi Freud, e todos nós, definitivamente, o que foi Nietzsche. O que me interessou em Heidegger foi que podíamos “repetir” a filosofia dos gregos, uma vez que a história da filosofia escrita por Hegel e reescrita pela “historia dos problemas” do neokantismo havia perdido seu fundamentum inconcussum: a autoconsciência. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.
Para situar grosso modo meu próprio ensaio de pensamento, posso afirmar com efeito que busque reabilitar o direito da “má infinitude”. Mas, a meu ver, com uma modificação importante. Porque o diálogo inesgotável da alma consigo mesma, característico do pensamento, não consiste em determinar com precisão cada vez maior o mundo de objetos que se deve conhecer, nem no sentido neokantiano da tarefa inesgotável, nem no sentido dialético de ultrapassar qualquer limite mediante o pensamento. Parece-me que (506) nesse contexto Heidegger abriu um novo caminho, ao converter a crítica à tradição metafísica em uma preparação para recolocar a pergunta pelo ser de um novo modo. Com isso, encontrou-se “a caminho para a linguagem”. É o caminho de uma linguagem que não se reduz ao juízo enunciativo nem a sua presumida validez objetiva, mas que aponta sempre para a totalidade do ser. A totalidade não é uma objetividade definível. Nesse sentido, creio que a crítica de Kant às antinomias da razão pura pode ser aplicada também a Hegel. A totalidade não é um objeto, mas o horizonte de mundo que nos rodeia e no qual vivemos. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.