Todo presente finito tem seus limites. Nós determinamos o conceito da situação justamente pelo fato de que representa uma posição que limita as possibilidades de ver. Ao conceito da situação pertence essencialmente, então, o conceito do horizonte. Horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. Aplicando-se à consciência pensante falamos então da estreitez do horizonte, da possibilidade de ampliar o horizonte, da abertura de novos horizontes etc. A linguagem filosófica empregou essa palavra, sobretudo desde Nietzsche e Husserl, para caracterizar a vinculação do pensamento à sua determinidade finita e para caracterizar, com isso, a lei do progresso de ampliação do âmbito visual. Aquele que não tem um horizonte é um homem que não vê suficientemente longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que lhe está mais próximo. Pelo contrário, ter horizontes significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas poder ver para além disso. Aquele que tem horizontes sabe valorizar corretamente o significado de todas as coisas que caem dentro deles, segundo os padrões de próximo e (308) distante, de grande e pequeno. A elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam frente à tradição.
É também interessante falar de horizontes no âmbito da compreensão histórica, sobretudo quando nos referimos à pretensão da consciência histórica de ver o passado em seu próprio ser, não a partir de nossos padrões e preconceitos contemporâneos, mas a partir de seu próprio horizonte histórico. A tarefa da compreensão histórica inclui a exigência de ganhar em cada caso o horizonte histórico, a fim de que se mostre, assim, o que queremos compreender em suas verdadeiras medidas. Quem omitir esse deslocar-se ao horizonte histórico a partir do qual fala a tradição, estará sujeito a mal-entendidos com respeito ao significado dos conteúdos daquela. Nesse sentido, parece ser uma exigência hermenêutica justificada o fato de termos de nos colocar no lugar do outro para poder entendê-lo. Só que teremos de indagar então se esse lema não se torna devedor precisamente da compreensão que nos é exigida. Ocorre como no diálogo que mantemos com alguém com o único propósito de chegar a conhecê-lo, isto é, de termos uma ideia de sua posição e horizonte. Esse não é um verdadeiro diálogo; não se procura o entendimento sobre um tema, já que os conteúdos objetivos do diálogo não são mais que um meio para conhecer o horizonte do outro. Pense-se, por exemplo, numa situação de exame ou em determinadas formas de consultas médicas. A consciência histórica opera de um modo análogo, quando se desloca para a situação do passado e supõe ter assim seu verdadeiro horizonte histórico. E tal como no diálogo, o outro se torna compreensível em suas opiniões, a partir do momento em que se tornou reconhecida sua posição e horizonte, sem que, no entanto, isso implique no fato de que chegamos a nos entender com ele, para quem pensa historicamente, a tradição se torna compreensível em seu sentido, sem que nos entendamos com ela e nela.
Em ambos os casos, aquele que procura compreender se coloca a si mesmo fora da situação do entendimento. Ele próprio não é atingível. Na medida em que se atende de antemão não somente ao que o outro procura lhe dizer, mas também à sua posição, coloca-se sua própria posição sob a imunidade do inacessível. Já vimos na gênese do pensamento histórico, que este assume efetivamente essa ambígua transição do meio para o fim, isto é, o que era só um meio, transforma-o em fim. O texto que se procura entender historicamente é privado formalmente de sua pretensão de dizer a verdade. Acredita-se compreender por que vê a tradição a partir do ponto de vista (309) histórico, isto é, porque nos deslocamos à situação histórica e procuramos reconstruir seu horizonte. De fato, renunciou-se definitivamente à pretensão de encontrar na tradição uma verdade compreensível que possa ser válida para nós mesmos. Este reconhecimento da alteridade do outro, que a converte em objeto de conhecimento objetivo, é, no fundo, uma suspensão de sua pretensão.
Surge então a indagação de se saber se esta descrição alcança realmente o fenômeno hermenêutico. Existem realmente, aqui, dois horizontes diferentes, aquele no qual vive o que compreende e o horizonte histórico a que este pretende se deslocar? Trata-se de uma descrição correta e suficiente da arte da compreensão histórica, a de que é necessário aprender a deslocar-se a horizontes alheios? Pode-se dizer, nesse sentido, que existem horizontes fechados? Convém lembrar a objeção que Nietzsche fez ao historicismo, de romper o horizonte circunscrito pelo mito, único lugar onde uma cultura pode viver. Pode-se dizer que o horizonte do próprio presente é algo tão fechado? É sequer pensável uma situação histórica limitada por um tal horizonte fechado?
Ou não será isso um novo reflexo romântico, uma espécie de robinsonada do Aufklärung histórico, a ficção de uma ilha inalcansável, tão artificial quanto o próprio Robinson, o presumível fenômeno originário do solus ipse? Tal como cada indivíduo não é nunca indivíduo solitário, pois está sempre entendendo-se com os outros, da mesma maneira o horizonte fechado que cercaria uma cultura é uma abstração. A mobilidade histórica da existência humana apoia-se precisamente em que não há uma vinculação absoluta a uma determinada posição, e nesse sentido tampouco existe um horizonte fechado. O horizonte é, antes, algo no qual trilhamos nosso caminho e que conosco faz o caminho. Os horizontes se deslocam ao passo de quem se move. Também o horizonte do passado, do qual vive toda vida humana e que está aí sob a forma da tradição, põe em movimento o horizonte abrangente. Na consciência histórica este movimento tão-somente se torna consciente de si mesmo.
Quando nossa consciência histórica se desloca rumo a horizontes históricos, isso não quer dizer que se translade a mundos estranhos, nos quais nada se vincula com o nosso; pelo contrário, todos eles juntos formam esse grande horizonte que se move a partir de dentro e que rodeia a profundidade histórica de nossa autoconsciência para além das fronteiras do presente. Na realidade, trata-se de um único horizonte, que rodeia tudo quanto contém em si mesma a consciência histórica. O passado próprio e estranho, ao qual se volta a consciência histórica (310), forma parte do horizonte móvel a partir do qual vive a vida humana e que a determina como sua origem e como sua tradição.
Nesse sentido, compreender uma tradição requer, sem dúvida, um horizonte histórico. Mas o que não é verdade é que se ganhe esse horizonte deslocando-nos a uma situação histórica. Pelo contrário, temos de ter sempre um horizonte para podermos nos deslocar a uma situação qualquer. Pois, o que significa deslocar-se? Evidentemente que não será algo tão simples como “apartar o olhar de si mesmo”. Evidentemente que também isso é necessário na medida em que se procura dirigir a vista realmente a uma situação diferente. Mas nós temos que levar a nós mesmos até essa outra situação. Somente assim se satisfaz o sentido de “deslocar-se”. Se nos deslocamos, por exemplo, à situação de um outro homem, então vamos compreendê-lo, isto é, tornar-nos-emos conscientes de sua alteridade, e até de sua individualidade irredutível, precisamente por nos deslocarmos à sua situação.
Esse deslocar-se não é nem empatia de uma individualidade na outra, nem submissão do outro sob os próprios padrões, mas significa sempre uma ascensão a uma universalidade superior, que rebaixa tanto a particularidade própria como a do outro. O conceito de horizonte se torna aqui interessante, porque expressa essa visão superior mais ampla, que aquele que compreende deve ter. Ganhar um horizonte quer dizer sempre aprender a ver mais além do próximo e do muito próximo, não para apartá-lo da vista, senão que precisamente para vê-lo melhor, integrando-o em um todo maior e em padrões mais corretos. Quando se fala, com Nietzsche, dos muitos horizontes mutáveis, aos quais a consciência histórica ensina a se deslocar, não se trata de uma autêntica descrição da mesma. Aquele que aparta o olhar de si mesmo priva-se justamente do horizonte histórico, e a demonstração de Nietzsche das desvantagens da ciência histórica para a vida não diz respeito, na verdade, à consciência histórica como tal, mas à auto-alienação de que é vítima quando entende a metodologia da moderna ciência da história como sua própria essência. Já acentuamos que uma consciência verdadeiramente histórica sempre tem em vista também seu próprio presente, e o faz vendo tanto a si mesma como ao historicamente outro nas suas verdadeiras relações. É evidente que para ganhar para si um horizonte histórico requer um esforço pessoal. Nós já sempre estamos tomados pelas esperanças e temores do que nos é mais próximo e saímos ao encontro dos testemunhos do passado a partir dessa pré-determinação. Por isso, deve ser uma tarefa constante impedir uma assimilação precipitada do passado com as próprias expectativas de sentido. Só então se chega a ouvir a tradição tal como ela pode fazer-se ouvir em seu sentido próprio e diferente.
Já vimos antes, que isso se realiza como um processo de destacar (Abhebung). Consideremos um momento qual é o (311) conteúdo desse conceito de “destacar”. Destacar é sempre uma relação recíproca. O que deve ser destacado tem de destacar-se de algo, que, por sua vez, terá de destacar-se ele próprio daquele. Todo destacar algo torna simultaneamente visível aquilo que se destaca. Nós o descrevemos acima como o pôr em jogo os preconceitos. Partíamos então do fato de que uma situação hermenêutica está determinada pelos preconceitos que trazemos conosco. Estes formam assim o horizonte de um presente, pois representam aquilo mais além do qual já não se consegue ver. No entanto, importa que nos mantenhamos longe do erro de que o que determina e limita o horizonte do presente é um acervo fixo de opiniões e valorações, e que face a isso a alteridade do passado se destaca como um fundamento sólido.
Na verdade, o horizonte do presente está num processo de constante formação, na medida em que estamos obrigados a pôr à prova constantemente todos os nossos preconceitos. Parte dessa prova é o encontro com o passado e a compreensão da tradição da qual nós mesmos procedemos. O horizonte do presente não se forma pois à margem do passado. Nem mesmo existe um horizonte do presente por si mesmo, assim como não existem horizontes históricos a serem ganhos. Antes, compreender é sempre o processo de fusão desses horizontes presumivelmente dados por si mesmos. Nós conhecemos a força dessa fusão sobretudo de tempos mais antigos e de sua relação para consigo mesmos e com suas origens. A fusão se dá constantemente na vigência da tradição, pois nela o velho e o novo crescem sempre juntos para uma validez vital, sem que um e outro cheguem a se destacar explicitamente por si mesmos.
Mas se na realidade não existem esses horizontes que se destacam uns dos outros, por que falamos então de fusão de horizontes e não simplesmente da formação desse horizonte único que remonta sua fronteira às profundidades da tradição? Colocar essa questão implica admitir a peculiaridade da situação, na qual a compreensão se converte em tarefa científica, e admitir que é necessário uma vez elaborar esta situação como situação hermenêutica. Todo o encontro com a tradição realizado com consciência histórica experimenta por si mesmo a relação de tensão entre texto e presente. A tarefa hermenêutica consiste em não ocultar esta tensão em uma assimilação ingênua, mas em desenvolvê-la conscientemente. Esta é a razão por que o comportamento hermenêutico está obrigado a projetar um horizonte que se distinga do presente. A consciência histórica é consciente de sua própria alteridade e por isso destaca o horizonte da tradição com respeito ao seu próprio. Mas, por outro lado, ela mesma não é, como já procuramos mostrar, senão uma espécie de superposição sobre uma tradição que continua atuante, e por isso ela recolhe em seguida o que acaba de destacar, com o fim de intermediar-se consigo mesma na unidade do horizonte histórico que alcança dessa maneira.
O projeto de um horizonte histórico é, portanto, só uma fase ou momento na realização da compreensão, e não se prende na auto-alienação de uma consciência passada, mas se recupera no próprio horizonte compreensivo do presente. Na realização da compreensão tem lugar uma verdadeira fusão horizôntica que, com o projeto do horizonte histórico, leva a cabo simultaneamente sua suspensão. Nós caracterizamos a realização controlada dessa fusão como a tarefa da consciência histórico-efeitual. Enquanto que, na herança da hermenêutica romântica, o positivismo estático-histórico ocultou essa tarefa, temos de dizer que o problema central da hermenêutica se estriba precisamente nela. É o problema da aplicação que está contido em toda compreensão. (GadamerVM:452-458)