A pressuposição da hermenêutica bíblica — na medida em que a hermenêutica bíblica interessa enquanto pré-histórica da hermenêutica moderna das ciências do espírito — é o princípio escriturístico da Reforma. O ponto de vista de Lutero é mais ou menos o seguinte: a Sagrada Escritura é sui ipsius interpres. Não se tem necessidade da tradição para lograr uma compreensão adequada dela, nem tampouco de uma técnica interpretativa ao estilo da antiga doutrina do quádruplo sentido da Escritura, já que sua literalidade possui um sentido unívoco, que deve ser intermediado por ela própria, o sensus literalis. Em particular, o método alegórico, que até então parecia indispensável para alcançar uma unidade dogmática na doutrina bíblica, só é legítimo quando a intenção alegórica se encontra dada na própria Escritura. Por exemplo, é correto aplicá-la quando se trata de parábolas. Por outro lado, o Antigo Testamento não deve querer ganhar sua relevância especificamente cristã, através de uma interpretação alegórica. Deve ser entendido ao pé da letra, e justamente ao ser entendido assim e ao se reconhecer nele o ponto de apoio da lei, que a ação (179) salvadora de Cristo suspende, é que ele adquire um significado cristão. 951 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Examinemos agora mais de perto o que Schleiermacher quer dizer com essa equiparação. Pois obviamente, não pode tratar-se de pura e simples identificação. A reprodução sempre é essencialmente diferente da produção. É assim que Schleiermacher chega ao postulado, de que importa compreender um autor, melhor do que ele próprio teria se compreendido — uma fórmula que, desde então, tem sido repetida incessantemente, e em cujas interpretações cambiantes caracteriza-se toda a história da hermenêutica moderna. De fato, nesse postulado encerra-se o verdadeiro problema da hermenêutica. Por (196) isso valerá a pena que nos aproximemos um pouco mais do sentido dessa fórmula. 1039 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Iniciemos imediatamente com uma pergunta: Como se começa o esforço hermenêutico? Que consequências tem para a compreensão a condição hermenêutica da pertença a uma tradição? Recordamos aqui a regra hermenêutica, segundo a qual tem-se de compreender o todo a partir do individual e o individual a partir do todo. É uma regra que procede da antiga retórica e que a hermenêutica moderna transferiu da arte de falar para a arte de compreender. Aqui como lá subjaz uma relação circular. A antecipação de sentido, na qual está entendido o todo, chega a uma compreensão explícita através do fato de que as partes que se determinam a partir do todo determinam, por sua vez, a esse todo. 1601 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
É claro que poder-se-ia tentar escapar dessa consequência, dizendo que basta saber que os textos religiosos só devem ser compreendidos como textos que respondem à questão a respeito de Deus. Não exigir-se-ia do intérprete nenhuma motivação religiosa. Mas qual seria a opinião de um marxista, que considera que toda afirmação religiosa só é compreendida, quando é revelada como jogo de interesses das relações de domínio social? Evidentemente o marxista não aceitará o pressuposto de que a existência humana como tal é movida pela questão a respeito de Deus. Esse pressuposto só vale para aquele que já reconheceu nisso a alternativa da crença ou não-crença face ao Deus verdadeiro. Por isso tenho a impressão de que o sentido hermenêutico da pré-compreensão teológica é, ele próprio, teológico. A própria história da hermenêutica mostra como o questionamento de um texto está determinado por uma pré-compreensão muito concreta. A hermenêutica moderna, como disciplina protestante, tem, enquanto arte da interpretação da Escritura, uma relação polêmica para com a tradição dogmática da igreja católica e sua doutrina da justificação pelas obras. Tem pois, ela própria, um sentido dogmático e confessional. Isso não quer dizer que uma hermenêutica teológica desse tipo parta (338) de preconceitos dogmáticos, de tal modo que somente lê no texto o que ela própria aí colocou. Antes, ela própria se põe realmente em jogo. Mas o que pressupõe é que a palavra da Escritura atinge verdadeiramente, e que somente a compreende aquele a quem a sua verdade afeta, quer na fé, quer na dúvida. Nesse sentido, a aplicação é a primeira. 1811 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A regra hermenêutica, segundo a qual devemos compreender o todo a partir do singular e o singular a partir do todo, provém da retórica antiga e foi transferido, pela hermenêutica moderna, da arte de falar para a arte de compreender. Em ambos os casos, estamos às voltas com uma relação circular prévia. A antecipação de sentido, que comporta o todo, ganha uma compreensão explícita através do fato de as partes, determinadas pelo todo, determinarem por seu lado esse mesmo todo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.
Não se pode responsabilizar tão globalmente a “hermenêutica recente” pelos erros modernistas. Há que se dizer, antes, que a tarefa da reflexão hermenêutica é superar a oposição da clássica querelle des anciens et des modernes, sem pronunciar-se a favor da fé progressista dos modernos nem a favor da modéstia da mera imitação dos antigos. Isso significa desmascarar por um lado o preconceito ligado à primazia da autoconsciência e à norma de certeza da cientificidade metodológica e controlar por outro lado o preconceito contrário: nossa suposta capacidade de eliminar sem mais a era cristã e a ciência moderna. Isso já foi expresso muito claramente por Schiller em sua célebre caracterização de Goethe. Dar razão aos antigos não pode significar um retorno a eles nem sua imitação. No caso da hermenêutica, isso significa apenas que o pensamento filosófico moderno baseado na autoconsciência deve tomar consciência de sua unilateralidade e aceitar a experiência hermenêutica segundo a qual os antigos nos permitem compreender certas coisas melhor que os modernos. Jaeger refere-se a esse “subjetivismo” quando polemiza com a “hermenêutica construtivista” e com os “atos doadores de sentido” de Husserl? Se fosse assim, eu estaria plenamente de acordo. Mas isso me parece incompatível com o pensamento do autor. Como se comporta com relação às suas alusões a Heidegger? Que nos resta, então? Existir novamente sem tradição, como Jaeger atribui à hermenêutica moderna? Simplesmente ignorar a tradição em que estamos e na qual ele mesmo está? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.
Nosso tema é a hermenêutica, e a relação com a retórica é primordial para ela. Embora não soubéssemos que a hermenêutica moderna se desenvolveu como uma espécie de construção paralela à retórica, junto com a recuperação do aristotelismo por Melanchton, o problema da retórica no âmbito de uma teoria da ciência deveria constituir-se no ponto de orientação concreto. A capacidade de linguagem e a capacidade de compreensão possuem obviamente a mesma amplitude e universalidade. Podemos falar sobre tudo, e o que alguém diz deve, de princípio, poder ser compreendido. A retórica e a hermenêutica têm aqui uma relação muito estreita. O domínio técnico dessa capacidade de falar e de compreender se manifesta plenamente no uso da escrita, na redação de “discursos” e na compreensão do escrito. A hermenêutica pode ser definida justamente como a arte de trazer novamente à fala o dito ou o escrito. A retórica pode nos ensinar de que “arte” se trata aqui. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.
Quando partimos da panorâmica do desenvolvimento da hermenêutica moderna e remontamos à tradição aristotélica da filosofia prática e da teoria da arte, é necessário perguntarmos até que ponto a tensão existente em Platão e Aristóteles entre um conceito técnico de ciência e um conceito prático-político, que inclui os fins últimos do ser humano, pode ser útil no terreno da ciência moderna e de sua teoria. No que se refere à hermenêutica, é natural confrontarmos a dissociação entre teoria e praxis — que corresponde ao conceito moderno de ciência teórica e a sua aplicação prático-técnica — com uma ideia do saber que percorreu o caminho inverso, partindo da praxis para alcançar sua conscientização teórica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.