Gadamer (VM): hermenêutica idealista

A base psicológica da hermenêutica idealista mostrou seu lado problemático: Será que o sentido de um texto realmente se esgota no sentido que o autor “tem em mente” (mens auctoris)? Será a compreensão nada mais do que a reprodução de um produto original? Está claro que esse questionamento não pode ser aplicado a uma hermenêutica jurídica, que exerce uma evidente função de criação do direito. Costuma-se relegá-lo à esfera de uma tarefa normativa, considerando-o como uma aplicação prática que nada tem a ver com “ciência”. O conceito da objetividade da ciência exige ater-se ao cânon determinado pela mens auctoris. Mas será esse cânon realmente suficiente? O que se dá, por exemplo, na interpretação de obras de arte (que no diretor de teatro, no regente e no próprio tradutor apresentam também a forma de uma produção prática)? Pode-se, por acaso, negar que o artista executor “interpreta” a criação original, não se limitando a fazer dela uma nova criação? Costumamos distinguir com muita clareza entre interpretações adequadas e interpretações “inadmissíveis” ou “fora de estilo” de peças musicais ou dramáticas. Com que direito podemos excluir da ciência esse sentido reprodutivo de interpretação? Será que essa reprodução pode dar-se em estado de sonambulismo e desconhecimento? O conteúdo semântico da reprodução não pode restringir-se ao sentido que o autor presta conscientemente à obra. Sabe-se que a auto-interpretação do artista tem um valor questionável. O sentido de sua criação impõe uma tarefa de aproximação inequívoca, mesmo para a interpretação prática. Assim como a interpretação feita pela ciência, tampouco a reprodução pode, de modo algum, estar exposta à arbitrariedade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

E o que dizer do sentido querigmático da Sagrada Escritura? Aqui o conceito da congenialidade chega ao absurdo completo, à medida que suscita a péssima imagem da teoria da inspiração. A exegese histórica da Bíblia também encontra aqui seus limites, sobretudo no que diz respeito ao conceito central de “autocompreen-são” do escritor da Sagrada Escritura. O significado salvífico da Escritura não será necessariamente diferente do que o resultado da mera soma das intuições teológicas dos escritores do Novo Testamento? Dessa forma, a hermenêutica pietista (A. Francke, Rambach) foi se destacando pelo fato de, em sua teoria da interpretação, acrescentar a aplicação à compreensão e à explicação, destacando com isso a relação da “Escritura” com a atualidade. Nisso reside a razão central de uma hermenêutica que leva realmente a sério a historicidade do homem. É claro que também a hermenêutica idealista leva isto em conta, especialmente a de E. Betti com seu “cânon da correspondência do sentido”. Parece, no entanto, que foi só com o reconhecimento decisivo do conceito da compreensão prévia e do princípio da história dos efeitos ou o desenvolvimento da consciência da mesma, que se conquistou uma base metodológica suficiente. O conceito de cânon da teologia neotestamentária encontra ali sua legitimação, como um caso especial. O grande e positivo trabalho de G. von Rad demonstrou, ademais, que o significado teológico do Antigo Testamento torna-se difícil de justificar ao se adotar a mens auctoris como cânon. Com esse trabalho pode-se superar a estreiteza dessa perspectiva. Os debates mais recentes sobre a hermenêutica contagiaram também a teologia católica (Stachel, Biser, Corth). VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Antes disso, na época do romantismo alemão, a hermenêutica se orientara pelas questões centrais da filosofia por obra de Schleiermacher. Seu pensamento, baseado na filosofia do diálogo, como a concebia sobretudo Friedrich Schlegel, parte do significado metafísico da individualidade e de sua subordinação e tendência ao infinito. Em seguida, com Wilhelm Dilthey a hermenêutica adquiriu seu caráter propriamente filosófico. Em 1966, publicou-se pela primeira vez, entre os materiais diltheyanos sobre a vida de Schleiermacher reunidos em um segundo volume, o grande estudo do jovem Dilthey sobre hermenêutica. Desse estudo só conhecíamos alguns fragmentos, graças ao tratado acadêmico de 1900. Entre outras coisas ele mostra como as bases da problemática filosófica da hermenêutica radicam-se no idealismo alemão, mas não somente na descrição dialética de Schleiermacher sobre a compreensão como ação recíproca de subjetividade e objetividade, de (426) individualidade e identidade, mas sobretudo na crítica de Fichte ao conceito dogmático de substância e nas possibilidades que ele abriu para se pensar o conceito de força histórica. Baseia-se também em Hegel, na medida em que eleva o espírito “subjetivo” ao caráter de espírito “objetivo”. Dilthey soube ver justamente a relevância pioneira da Historik (Historiografia) de Droysen para a metodologia das ciências do espírito, na medida em que Droysen aproveitou o legado idealista para uma autocompreensão adequada do método histórico. A herança dessa hermenêutica idealista continua viva até os nossos dias. Uma excelente apresentação sistemática e um desenvolvimento atual devemos ao historiador de direito Emilio Betti, cujo “manifesto” hermenêutico em língua alemã recolhe o resumo dessa tradição (cf. Betti). Ele fez sua exposição sistemática em uma obra muito abrangente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

Designed with WordPress