Gadamer (VM): hermenêutica espiritual-científica

Essas considerações nos levam a indagar se na hermenêutica espiritual-científica não se tem de reconhecer todo seu direito ao momento da tradição. A investigação espiritual-científica não pode ver-se a si própria em oposição pura e simples ao modo como nos comportamos com respeito ao passado na nossa qualidade de entes históricos. No nosso comportamento com relação ao passado, que constantemente estamos confirmando, o que está em questão realmente não é o distanciamento nem a liberdade com relação ao transmitido. Antes, encontramo-nos sempre em tradições, e esse nosso estar dentro delas não é um comportamento objetivador, de tal modo que o que diz a tradição fosse pensado como estranho ou alheio — isso já é sempre algo próprio, exemplar e intimidante, um reconhecer-se, no qual, para nosso juízo histórico posterior, quase já não se divisa conhecimento, porém a mais singela e inocente transformação (287) da tradição. 1547 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

E se isso é correto, então se coloca a tarefa de voltar a determinar a hermenêutica espiritual-científica a partir da jurídica e da teológica. Para isso faz-se necessária a ideia recém-alcançada, de que a hermenêutica romântica e sua coroação na interpretação psicológica, isto é, no deciframento e fundamentação da individualidade do outro, aborda o problema da compreensão de um modo excessivamente parcial. Nossas considerações não nos permitem dividir a colocação do problema hermenêutico na subjetividade do intérprete e na objetividade de sentido que se trata de compreender. Esse procedimento partiria de uma falsa contraposição que tampouco pode ser superada pelo reconhecimento da dialética do subjetivo e do objetivo. A distinção entre uma função normativa e uma função cognitiva faz cindir, definitivamente, o que claramente é uno. O sentido da lei, que se apresenta em sua aplicação normativa, não é, em princípio, diferente do sentido de um tema, que ganha validez na compreensão de um texto. É completamente errôneo fundamentar a possibilidade de compreender textos na pressuposição da “congenialidade” que uniria o criador e o intérprete de uma obra. Se isso fosse assim, as ciências do espírito estariam em maus lençóis. O milagre da compreensão consiste, antes, no fato de que não é necessária a congenialidade para reconhecer o que é verdadeiramente significativo e o sentido originário de uma tradição. Somos, antes, capazes de nos abrir à pretensão excelsa de um texto e corresponder compreensivamente ao significado com o qual nos fala. A hermenêutica, no âmbito da filologia e da ciência espiritual da história, não é um “saber dominador”, isto é, apropriação por apoderamento, mas se submete à pretensão dominante do texto. Mas para isso o verdadeiro modelo é constituído pela hermenêutica jurídica e teológica. A interpretação da vontade jurídica e da promessa divina não são evidentemente formas de domínio, mas de servidão. Ao serviço daquilo que deve valer, elas são interpretações, que incluem aplicação. A tese é, pois, que também a hermenêutica histórica tem que levar a cabo o fornecimento da aplicação, pois também ela serve à validez de sentido, na medida em que supera, expressa e conscientemente, a distância de tempo que separa o intérprete do texto, superando assim a alienação de sentido que o texto experimentou. 1717 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

É claro que este não é o saber da ciência. Nesse sentido a limitação de Aristóteles entre o saber ético da phronesis e o saber teórico da episteme é bem simples, sobretudo se se leva em conta que, para os gregos, a ciência, representada pelo paradigma da matemática, é um saber do inalterável, que repousa sobre a demonstração e que, por conseguinte, qualquer um pode aprender. É certo que uma hermenêutica espiritual-científica não poderia aprender nada dessa limitação do saber ético face a um saber como a matemática. Pelo contrário, face a essa ciência “teórica”, as ciências do espírito fazem parte, estritamente, do saber ético. São “ciências morais”. Seu objeto é o homem e o que este sabe de si mesmo. Este, porém, se sabe a si mesmo como ser que atua, e o saber que, deste modo, tem de si mesmo não pretende comprovar o que é. Aquele que atua lida, antes, com coisas que nem sempre são como são, pois que (320) podem também ser diferentes. Nelas descobre em que ponto pode intervir sua situação. Seu saber deve orientar seu fazer. 1729 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

E se isso é assim, então a distância entre a hermenêutica espiritual-científica e a hermenêutica jurídica não é tão grande como se costuma supor. Em geral se tende a supor que foi somente a consciência histórica que elevou a compreensão a ser um método da ciência objetiva, e que a hermenêutica alcançou sua verdadeira determinação somente quando se desenvolveu como teoria geral da compreensão e da interpretação dos textos. A hermenêutica jurídica não teria a ver com esse nexo, pois não procura compreender textos dados, já que é uma medida auxiliar da práxis jurídica e inclina-se a sanar certas deficiências e casos excepcionais no sistema da dogmática jurídica. Por consequência não teria a menor relação com a tarefa de compreender a tradição, que é o que caracteriza a hermenêutica espiritual-científica. 1773 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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