Gadamer (VM): hermenêutica de Chladenius

A crítica da Bíblia, que conseguiu se impor amplamente no século XVIII, como mostra essa indicação a Spinoza, possui, em caráter absoluto, um fundamento dogmático na fé na razão do Aufklärung, e, de um modo semelhante, existe toda uma outra série de precursores que preparam o pensamento histórico, entre os quais há, no século XVIII, nomes esquecidos há muito tempo, que procuram oferecer diretivas para a compreensão e interpretação de livros históricos. Entre eles se encontra particularmente Chladenius, apresentado como um precursor da hermenêutica romântica, e de fato nele se descobre o interessante conceito do “ponto de vista” como fundamento do “por que conhecemos uma coisa desse e não de outro modo”. É um conceito procedente da ótica e que o autor toma expressamente de Leibniz.

Só que, como um olhar no título de seu escrito já pode nos ensinar, enfoca-se, no fundo, falsamente Chladenius se se entende a sua hermenêutica como uma anteforma da historiografia. Não somente porque o caso da “interpretação dos livros históricos” não é, para ele, o ponto mais importante — de qualquer modo, trata-se sempre do conteúdo objetivo dos escritos — mas também porque, para ele, todo o problema da interpretação se coloca, no fundo, como pedagógico e é de natureza ocasional. A interpretação se ocupa expressamente de “discursos e escritos racionais”. Para ele, interpretar significa “acrescentar aqueles conceitos que são necessários para a compreensão plena de uma passagem”. A interpretação, portanto, não deve “indicar a verdadeira compreensão de uma passagem”, mas é determinada expressamente para resolver as obscuridades que impedem ao escolar a “compreensão plena dos textos” (Prefácio). Na interpretação é preciso que nos guiemos pela perspectiva do escolar (parágrafo 102).

Compreender e interpretar não são, para Chladenius, a mesma coisa (parágrafo 648). É claro que, para ele, uma passagem que necessite de interpretação é, por princípio, um caso especial, e que, em geral, as passagens podem ser entendidas imediatamente, quando conhecemos o assunto de que tratam, seja porque a passagem nos recorda a coisa em causa, seja porque apenas através da passagem obtemos acesso ao conhecimento da coisa em causa. Não há dúvidas de que, para o compreender, o decisivo continua sendo o entendimento da coisa em causa, a evidência objetiva — não se trata de um procedimento histórico nem de um procedimento psicológico-genético.

Ao mesmo tempo, o autor tem clara consciência de que a arte da interpretação alcançou uma espécie de urgência nova e particular, já que a arte da interpretação proporciona, ao mesmo tempo, a justificação da interpretação. Esta não faz nenhuma falta enquanto o escolar tiver o mesmo conhecimento que o intérprete” (de maneira que a “compreensão” lhe seja evidente, “sem demonstração”), nem tampouco “quando existe uma boa confiança no intérprete”. Nenhuma dessas duas condições parece-lhe ser mais cumprida em seu tempo, a segunda pelo fato de que (sob o signo do Aufklärung) “os alunos querem ver com os seus próprios olhos”, e a primeira porque, ao se ter incrementado o conhecimento das coisas — isso se refere ao progresso da ciência — , a obscuridade das passagens que se procura compreender, se torna cada vez maior (parágrafo 668s). A necessidade de uma hermenêutica aparece, pois, com o desaparecimento do compreender-por-si-mesmo.

Dessa maneira, o que era motivação ocasional da interpretação acaba adquirindo um significado fundamental. De fato, Chladenius chega a uma conclusão interessantíssima: constata que compreender plenamente um autor não é o mesmo que compreender inteiramente um discurso ou um escrito (parágrafo 86). A norma para a compreensão de um livro não seria, de modo algum, a intenção do autor. Pois, “como os homens não são capazes de abranger tudo com sua visão, assim suas palavras, discursos e escritos podem significar algo que eles próprios não tiveram a intenção de dizer ou de escrever”, e, portanto, “quando se busca compreender seus escritos pode-se chegar a pensar, e com razão, em coisas que aos autores não ocorreria”.

Embora possa se dar também o caso inverso, de que “um autor possa ter tido em mente mais do que se pôde compreender”, para ele a verdadeira tarefa da hermenêutica não é a de, afinal, juntar este “mais” à compreensão, mas compreender os próprios livros na sua significação verdadeira e objetiva. Como “todos os livros dos homens e seus discursos contêm em si algo de incompreensível” — ou seja, obscuridades que procedem da falta de transparência objetiva — é necessário chegar a uma interpretação correta: “Passagens estéreis podem se nos tornar fecundas”, isto é, “dar ocasião a novas ideias”.

Deve-se levar em conta que, em tudo isso, Chladenius não esta pensando, certamente, na exegese bíblica edificante, mas que abstrai expressamente das “Escrituras Sagradas”, para as quais “a arte da interpretação filosófica” não seria mais que uma ante-sala. Com os seus raciocínios, ele também certamente não quer dar legitimidade à ideia de que tudo que se possa pensar sobre isso (todas as “aplicações”) pertença à compreensão de um livro, mas unicamente o que corresponde às intenções do autor. Para ele, isso não possui, no entanto, e com toda evidência, o sentido de uma restrição histórico-psicológica, mas tem a ver com uma correspondência objetiva, da qual ele garante explicitamente que a mais nova teologia observa-a exegeticamente. (Gadamer Verdade e Método I)

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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