Gadamer (VM): hermenêutica

Hermeneutik

Para começar, já teremos uma diferença interessante, caso minha impressão esteja correta, no fato de que Schleiermacher não fale tanto da incompreensão como de mal-entendido. O que ele tem em vista já não é mais a situação pedagógica da interpretação, que procura ajudar a compreensão do outro, do aluno. Ao contrário, nele a interpretação e a compreensão se interpretam tão intimamente como a palavra exterior e interior, e todos os problemas da interpretação são, na realidade, problemas da compreensão. Trata-se apenas da subtilitas intelligendi, não da subtilitas explicando (para não falar da applicatio). Mas, Schleiermacher faz, sobretudo, uma diferenciação expressa entre a praxis mais laxista da hermenêutica, segundo a qual a compreensão se realiza por si mesma, e a praxis mais estrita que parte da ideia de que o mal-entendido se produz por si mesmo. Sobre essa diferença fundamentou seu desempenho próprio: desenvolver, em lugar de uma “agregação de observações”, uma verdadeira doutrina da arte do compreender. E isso significa algo fundamentalmente novo. A dificuldade de compreensão e do mal-entendido já não são levados em conta somente como momentos ocasionais, mas como momentos integradores que se procura desconectar previamente. Schleiermacher chega inclusive a definir que: “a hermenêutica é a arte de evitar o mal-entendido”. Para além da ocasionalidade pedagógica da prática da interpretação, a hermenêutica se eleva à autonomia deum método, pois “o mal-entendido se produz por (189) si mesmo, e a compreensão é algo que temos de querer e de procurar em cada ponto”. Evitar o mal-entendido — “Todas as tarefas estão contidas nesta expressão negativa”. Sua resolução positiva está, para Schleiermacher, num cânon de regras gramaticais e psicológicas de interpretação, que se afastam por completo de qualquer liame dogmático de conteúdo, inclusive na consciência do intérprete. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Enquanto que o discurso não é somente interno da geração de ideias, mas também comunicação, e como tal possui uma forma externa, não é somente manifestação imediata da ideia, mas já pressupõe reflexão. E isso há de valer naturalmente tanto mais para o que está fixado por escrito, portanto, para todos os textos. Eles já são sempre representação através da arte. E aí onde o discurso é arte, o é também o compreender. Todo discurso e todo texto estão referidos fundamentalmente à arte de compreender, à hermenêutica, e assim se explica a pertença mútua da retórica (que é parte da estética) e da hermenêutica: cada ato de compreender é, para Schleiermacher, a inversão de um ato de falar, a pós-construção de uma construção. Correspondentemente, a hermenêutica é uma espécie de inversão da retórica e da poética. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Caberia indagar se tais formulações (que aparecem com o mesmo sentido também em Boeckh) podem ser tomadas estritamente ou se propriamente devem descrever só uma perfeição relativa da compreensão. Certamente que Schleiermacher — como, de uma maneira mais decidida, Wilhelm von Humboldt — considera a individualidade como um mistério que jamais pode ser revelado de todo. Todavia, justamente essa tese só almeja ser entendida como relativa: A barreira que se levanta aqui frente à razão e o conceber não é insuperável em todos os sentidos. Ela deve ser ultrapassada através do sentimento, portanto, com uma compreensão imediata, simpatética e congenial: a hermenêutica é, justamente, arte e não procedimento mecânico. Assim, leva a cabo sua obra, a compreensão, tal como se realiza uma obra de arte. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

(245) Como vimos em Schleiermacher, o modelo de sua hermenêutica é a compreensão congenial possível de ser alcançada na relação entre o eu e o tu. A compreensão de textos tem a mesma possibilidade de adequação total que a compreensão do tu. Pode-se ver diretamente no texto a opinião do autor. O intérprete é absolutamente coetâneo com seu autor. Este é o triunfo do método filológico: conceber o espírito passado como presente, o espírito estranho como familiar. Dilthey está totalmente compenetrado desse triunfo. Sobre isso fundamenta sua afirmação de que as ciências do espírito possuem o mesmo padrão. Assim como o conhecimento natural-científico interroga algo presente sempre em relação a uma explicação que é projetada nele, assim o investigador do espírito interroga os textos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Mas tampouco o lado objetivo desse círculo, tal como o descreve Schleiermacher, atinge o cerne da questão. Já vimos que o objetivo de todo acordo e de toda compreensão é o entendimento sobre a própria coisa. A hermenêutica sempre se propôs como tarefa restabelecer o entendimento alterado ou inexistente. A história da hermenêutica é um bom testemunho disso; por exemplo, se se pensa em Santo Agostinho, onde o Antigo Testamento deve ser mediado através da mensagem cristã222, ou no protestantismo primitivo, que estava às voltas com o mesmo problema, ou finalmente na era do Aufklärung, onde de imediato se produz quase a renúncia ao entendimento, quando “a compreensão completa” de um texto só deve ser alcançada pelo caminho da interpretação histórica. Só que, quando o romantismo e Schleiermacher fundam uma consciência histórica de alcance universal, prescindindo da forma vinculante da tradição, da qual procedem e na qual se encontram, como fundamento de todo esforço hermenêutico, isso representa uma verdadeira inovação qualitativa. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Bem outra é a função do historiador do direito. Aparentemente, a única coisa que ele tem em mente é o sentido originário da lei, qual seu valor e intenção no momento em que foi promulgada. Mas como chegará a reconhecer isso? Ser-lhe-ia possível compreendê-lo sem se tornar primeiro consciente da mudança de circunstâncias que separa aquele momento da atualidade? Não estaria obrigado a fazer exatamente o mesmo que o juiz, ou seja, distinguir o sentido originário do conteúdo de um texto legal desse outro conteúdo jurídico em cuja pré-compreensão vive como homem atual? Nisso me parece que a situação hermenêutica é a mesma, tanto para o historiador como para o jurista, ou seja, ante todo e qualquer texto todos nos encontramos numa determinada expectativa de sentido imediato. Não há acesso imediato ao objeto histórico capaz de nos proporcionar objetivamente seu valor posicionai. O historiador tem que realizar a mesma reflexão que deve orientar o jurista. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Isso é algo que a interpretação nunca deve perder de vista. Mesmo na interpretação científica do teólogo, tem-se de manter a convicção de que a Sagrada Escritura é a mensagem divina da salvação. Portanto, sua compreensão não pode ser somente a investigação científica de seu sentido. Em certa ocasião, Bultmann escreveu que “a interpretação dos escritos bíblicos não está submetida a condições diferentes das da compreensão de qualquer outra literatura”. Não obstante, o sentido dessa frase é ambíguo. Do que se trata é de se saber se toda literatura não está submetida a bem outras condições da compreensão das que, de maneira puramente formal e geral, devem ser satisfeitas face a qualquer texto. O próprio Bultmann destaca que — toda compreensão pressupõe uma relação vital do intérprete com o texto, assim como uma relação prévia com o tema mediado pelo texto. A essa pressuposição hermenêutica é que dá o nome de pré-compreensão, porque evidentemente não é produto do procedimento compreensivo, já que é anterior a ele. Hofmann, a quem Bultmann cita ocasio (337) ocasionalmente, escreve que uma hermenêutica bíblica pressupõe sempre uma relação com o conteúdo da Bíblia. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Disso podemos extrair que o que é verdadeiramente comum a todas as formas da hermenêutica é que o sentido de que se trata de compreender somente se concretiza e se completa na interpretação, mas que, ao mesmo tempo, essa ação interpretadora se mantém inteiramente atada ao sentido do texto. Nem o jurista nem o teólogo veem na tarefa da aplicação uma liberdade face ao texto. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A esta arte de reforçar é que os diálogos platônicos devem sua surpreendente atualidade. Pois nela, o que foi dito transforma-se sempre nas possibilidades extremas de seu direito e de sua verdade, e sobrepuja toda contra-argumentação que pretenda pôr limites à vigência de seu sentido. Evidentemente, que aí não se trata de um mero deixar as coisas como estão. Pois aquele que quer conhecer não pode deixar o assunto na versão de simples opiniões, isto é, não lhe é permitido distanciar-se das opiniões que estão em questão. Aquele que fala é sempre, ele mesmo, aquele que se põe a falar até que apareça por fim a verdade daquilo de que se fala. A produtividade maiêutica do diálogo socrático, sua arte de parturiente da palavra orienta-se, obviamente, às pessoas humanas que constituem os companheiros do diálogo, porém limita-se a manter-se nas opiniões que estes exteriorizam e cuja consequência imanente e objetiva desenvolve-se no diálogo. O que vem à tona, na sua verdade, é o logos, que não é nem meu nem teu, e que por isso sobrepuja tão amplamente a opinião subjetiva dos companheiros de diálogo, que inclusive aquele que o conduz permanece sempre como aquele que não sabe. A dialética, como arte de conduzir uma conversação, é ao mesmo tempo a arte de olhar juntos na unidade de uma perspectiva (auvopav eia ev a Soa) isto é, a arte da formação de conceitos como elaboração da intenção comum. O que caracteriza a conversação, face à forma endurecida das proposições que urgem sua fixação escrita, é precisamente que, aqui, em perguntas e respostas, no dar e tomar, no passar ao largo de outro na conversa e no pôr-se de acordo, a língua realiza aquela comunicação de sentido cuja elaboração artística face à tradição literária, é a tarefa da hermenêutica. Por isso, quando a tarefa hermenêutica é concebida como um entrar em diálogo com o texto, isso é algo mais que uma metáfora, é uma verdadeira recordação do originário. O fato de que a interpretação que produz isso se realiza linguisticamente, não quer dizer que se veja deslocada a um médium estranho, mas, ao contrário, que se restabelece uma comunicação de sentido originário. O que foi transmitido em forma literária é assim recuperado, a partir do alheamento em que se encontrava, ao presente vivo do diálogo cuja realização originária é sempre perguntar e responder. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Já assinalamos anteriormente o quanto é duvidosa a frase de Vico, segundo a qual este ideal alcança seu cumprimento mais puro na história, porque nela o homem encontra sua própria realidade humana e histórica. Nós, contrariamente, destacamos que todo historiador e todo filólogo têm de contar, por princípio, com a impossibilidade de fechar o horizonte de sentido, no qual se movem quando compreendem. A tradição histórica somente pode ser entendida quando se tiver pensado também o progresso das coisas através da determinação fundamental continuada, e o filólogo, que trata de textos poéticos e filosóficos, sabe muito bem que estes são inesgotáveis. Em ambos os casos o transmitido mostra novos aspectos significativos em virtude da continuação do acontecer. Através de sua nova atualização na compreensão, os textos se integram num autêntico acontecer, tal como os eventos, em virtude de sua própria continuação. Isto é o que havíamos caracterizado, na experiência hermenêutica, como o momento de história efeitual. Toda atualização na compreensão pode compreender-se como uma possibilidade histórica do compreendido. Na finitude histórica da nossa existência está o fato de que sejamos conscientes de que, depois de nós, outros compreenderão cada vez de maneira diferente. Do mesmo modo, para a nossa experiência hermenêutica é inquestionável que é a mesma obra — cuja plenitude de sentido se manifesta na transformação da compreensão — que permanece como é a mesma história, cujo significado continua determinando-se incessantemente. A redução hermenêutica à opinião do autor é tão inadequada como nos acontecimentos históricos, a redução à intenção dos que atuam neles. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

É importante compreender que esse raciocínio é somente aparente. Na realidade a sensibilidade de nossa consciência histórica testemunha antes o contrário. O esforço para compreender e interpretar sempre tem sentido. Nisso se mostra a generalidade superior com que a razão se eleva acima das barreiras de toda constituição linguística dada. A experiência hermenêutica é o corretivo pelo qual a razão pensante se subtrai ao encanto do linguístico, tendo ela mesma caráter linguístico. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Apontamos a estrutura especulativa do acontecer linguístico tanto no falar cotidiano como no poético. A correspondência interna que se nos tornou patente e que reúne palavra poética com o falar cotidiano, como intensificação deste, já foi reconhecida no seu aspecto psicológico-subjetivo pela filosofia idealista da linguagem e sua renovação por Croce e Vossler. Quando destacamos o outro aspecto, o vir à fala, como verdadeiro processo do acontecer linguístico, estamos preparando com isso o caminho à experiência hermenêutica. O modo como se entende a tradição e como esta vem à fala sempre de novo é, como vimos, um acontecer tão autêntico como a conversação viva. A única coisa especial é que, nela, a produtividade do comportamento linguístico para com o mundo encontra aplicação renovada a um conteúdo já mediado linguisticamente. Também a relação hermenêutica é uma relação especulativa, mas completamente distinta do autodesenvolvimento dialético do espírito, tal como o descreve a ciência filosófica de Hegel. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Reconhecemos agora que foi precisamente esse movimento especulativo, o que tivemos em mente tanto na crítica da consciência estética, como na da consciência histórica, com que iniciamos a nossa análise da experiência hermenêutica. O ser da obra de arte não era um ser em si, do qual se distinguisse sua reprodução ou a contingência de sua manifestação; somente em uma tematização secundária, tanto de um como de outro, pode chegar a essa “distinção estética”. Tampouco o que vem ao encontro de nosso conhecimento histórico, a partir da tradição ou como tradição — histórica ou filológicamente — , o significado de um evento ou o sentido de um texto era um objeto em si, fixo, que se tivesse meramente que constatar. Também a consciência histórica encerrava em si, na realidade, a mediação de passado e presente. Ao reconhecer a linguisticidade como o médium universal dessa mediação, nossa colocação de seus pontos de partida concretos, a critica à consciência estética e histórica, e a hermenêutica que se teria que pôr em seu lugar, adquiriu a dimensão de um questionamento universal. Pois a relação humana com o mundo é linguística e portanto compreensível em geral e por princípio. Nesse sentido, a hermenêutica é, como vimos, um aspecto universal de filosofia e não somente a base metodológica das chamadas ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

O núcleo da antiga hermenêutica é o problema da interpretação alegórica. Em si, esta é bem mais antiga. Hyponoia, literalmente o sentido subjacente, foi a primeira palavra usada para significar sentido alegórico. Essa interpretação já era corrente na época da Sofística, como já afirmava a seu tempo A. Tate e confirmam textos de papiro mais recentes. O contexto histórico é claro: desde o momento em que o universo dos valores da epopeia homérica, ideado para uma sociedade aristocrática, perdeu sua força autoritativa, fez-se necessária uma nova arte interpretativa para a tradição. Isso aconteceu com a democratização das cidades, cujo patriciado foi assumido pela ética aristocrática. A sua expressão foi a ideia pedagógica da sofística: Ulisses ocupou o lugar de Aquiles, assumindo, não raro, traços sofísticos também no teatro. A alegoresis tornou-se um método universal, especialmente na interpretação helenística de Homero feita pelo estoicismo. A hermenêutica patrística, sintetizada por Orígenes e Agostinho, assumiu esse veio. Na Idade Média, foi sistematizada por Cassiano e converteu-se no método do quádruplo sentido da Escritura. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Encontramos ali, porém, uma dimensão ainda mais abrangente do problema hermenêutico, estreitamente ligada à posição central que a linguagem ocupa no âmbito hermenêutico. A linguagem não é apenas um médium, entre outros, dentro do mundo das “formas simbólicas” (Cassirer), mas tem uma relação especial com o potencial caráter comunitário da razão. É a razão que se atualiza comunicativamente na linguagem, como já dizia R. Hõnigswald: A linguagem não é apenas “fato”, mas “princípio”. É nisso que repousa a universalidade da dimensão hermenêutica. Esta universalidade já se encontra na teoria do significado de Agostinho e Tomás de Aquino, à medida que eles consideravam que o significado dos signos (das palavras) era superado peló das coisas, justificando assim a tarefa de transcender o sensus litteralis. A hermenêutica, hoje, não pode simplesmente seguir essa teoria, isto é, não pode entronizar uma nova alegorese. Para isso precisaríamos pressupor uma linguagem da criação, pela qual Deus fala conosco. Não podemos, contudo, evitar a consideração de que não só no discurso e na escrita mas em todas as criações humanas encontra-se um “sentido”, e que a tarefa da hermenêutica é descobrir esse sentido. Hegel (112) expressou-o na sua teoria do “espírito objetivo”. Essa parte de sua filosofia do espírito permaneceu viva independentemente da totalidade do sistema dialético (cf., por exemplo, a teoria do espírito objetivo de Nicolai Hartmann e o idealismo de Croce e Gentile). Não só a linguagem da arte reivindica legitimamente um entendimento, mas toda forma de criação cultural humana em geral. Sim, a questão se amplia. Existirá algo que não faça parte de nossa orientação no mundo fundamentalmente como linguagem? Todo conhecimento humano do mundo é mediado pela linguagem. Quando se aprende a falar já se cumpre uma primeira orientação no mundo. Mas não só isso. A estrutura da linguagem de nosso estar-no-mundo acaba articulando todo o âmbito da experiência. A lógica da indução, descrita por Aristóteles e desenvolvida por F. Bacon como fundamento das novas ciências empíricas, parece insatisfatória enquanto teoria lógica da experiência científica e carente de correção. Nela transparece, porém, claramente sua proximidade com a articulação de mundo feita na linguagem. Já Temístio, em seu comentário a Aristóteles, ilustrou este capítulo correspondente de Aristóteles (An. Post B 19) com o exemplo do aprendizado da fala. A linguística moderna (Chomsky) e a psicologia (Piaget) deram novos passos nesse terreno. Isso vale, porém, para um sentido ainda mais amplo. Toda experiência realiza-se numa constante ampliação comunicativa de nosso conhecimento do mundo. Ela mesma é conhecimento do conhecido num sentido muito mais profundo e generalizado do que expressava a fórmula cunhada por A. Boeckh para designar o ofício do filólogo. É que a tradição na qual vivemos não é o que se chama de tradição cultural, que consistiria apenas de textos e monumentos, e que transmitiria um sentido estruturado na linguagem ou documentado historicamente, deixando “do lado de fora” os reais determinantes de nossa vida, as condições de produção etc. Bem longe disso, o próprio mundo experimentado pela comunicação se nos transmite constantemente como uma totalidade aberta, traditur. Isso não é nada mais que experiência. Ela se dá sempre que se experimenta mundo, sempre que se supera o estranhamento, onde se produz iluminação, intuição, apropriação. A tarefa primordial da hermenêutica como teoria filosófica consiste em mostrar, por fim, como bem indicou Polanyi, que só pode ser chamada de “experiência” a integração de todo conhecimento da ciência ao saber pessoal do indivíduo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Nesse ponto, aparece uma distinção que não se pode ignorar. A crítica da ideologia pretende ser uma reflexão emancipatória. De modo correspondente, o diálogo terapêutico pretende tornar conscientes as máscaras do inconsciente e com isso dissolvê-las. Ambas pressupõem seu saber e consideram-se cientificamente fundamentadas. Contrário a isso, a reflexão hermenêutica não contém nenhuma pretensão de conteúdo deste tipo. Não afirma saber que as condições sociais fácticas possibilitam apenas uma comunicação distorcida. Isso implicaria já, em seu juízo, que soubéssemos o que uma comunicação correta e não distorcida deveria produzir. Tampouco considera atuar como um terapeuta que leva o processo reflexivo do paciente a um bom termo, conduzindo-o a um conhecimento mais elevado de sua história de vida e de seu verdadeiro ser. Em ambos os casos, na crítica da ideologia e na psicanálise, a interpretação pretende orientar-se por um saber prévio, a partir do qual as fixações prévias e os preconceitos podem ser dissolvidos. Nesse sentido, ambas podem ser compreendidas como “Iluminismo”. A experiência hermenêutica vê, ao contrário, com ceticismo todo postulado de um saber prévio. O conceito da compreensão prévia, introduzido por Bultmann, não se refere a esse tipo de saber: Os nossos preconceitos devem ser colocados em jogo no processo do compreender… Na concreção da experiência hermenêutica, conceitos como “esclarecimento”, “emancipação”, “diálogo livre de coerção” revelam-se como pobres abstrações. A experiência hermenêutica faz ver o enraizamento profundo que podem ter os preconceitos e o pouco que uma mera conscientização pode fazer para dissolver sua força. Sabia disso muito bem um dos pais do Iluminismo moderno, Descartes, procurando legitimar seu novo conceito de (116) método não tanto por argumentos mas pela meditação, por uma reflexão reiterada. Isso não deve ser descartado como se fosse mero revestimento retórico. Sem isso, não há comunicação, mesmo em trabalhos filosóficos e científicos, que precisam de recursos retóricos para impor sua vigência. Toda a história do pensamento confirma essa antiga proximidade entre a retórica e a hermenêutica. No entanto, a hermenêutica contém sempre um elemento que ultrapassa a mera retórica: inclui sempre um encontro com as opiniões do outro, que vêm, por sua vez, à fala. Isso vale também para a compreensão de textos e outras criações culturais do mesmo gênero. Precisam desenvolver sua própria força persuasiva para serem compreendidos. Por isso, a hermenêutica é filosofia porque não pode ser restrita a uma teoria da arte, que “apenas” compreende as opiniões de um outro. A hermenêutica implica, antes, que toda compreensão de algo ou de um outro vem precedida de uma autocrítica. Aquele que compreende não postula uma posição superior. Confessa, antes, a necessidade de colocar à prova a verdade que supõe própria. É o que está implícito em todo compreender, e por isso todo compreender contribui para o aperfeiçoamento da consciência da história dos efeitos. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Mas onde deveria se apoiar também a reflexão teórica sobre a compreensão, se não na retórica, a qual, desde a antiga tradição, representa o único advogado de uma pretensão de verdade que defende o verossímil, o eikos (verosimile)”? E o que se torna evidente pela razão comum contra a pretensão demonstrativa e de certeza da ciência? Persuadir e evidenciar sem lançar mão da demonstração é o objetivo e o parâmetro tanto da compreensão e da interpretação quanto da arte da persuasão e do discurso… e esse amplo domínio das convicções evidentes e das opiniões comuns reinantes não se restringe gradualmente pelo progresso da ciência, por maior que seja, mas estende-se antes a todo novo conhecimento da investigação, reivindicando-o como seu e adaptando-o para si. A ubiquidade da retórica é ilimitada. Graças a ela a ciência se sociabiliza na vida. O que saberíamos sobre a física moderna, que transforma nossa vida a olhos vistos, se dependêssemos apenas dela? Todas as suas explanações que extrapolem o círculo de especialistas (e talvez tenhamos que dizer: à medida que não se restringem a um pequeno círculo de especialistas consagrados) devem seus efeitos ao elemento retórico que as sustenta. Como demonstrou sobretudo Henri Gouhier, mesmo Descartes, esse grande e apaixonado defensor do método e da certeza, enquanto escritor, lança mão largamente dos recursos da retórica em todos os seus escritos. Não pode haver dúvidas quanto à sua fundamental função dentro da vida social. Toda ciência que queira ser prática depende dela. Por outro lado, a função da hermenêutica não é menos universal. A incompreensibilidade e a existência de mal-entendidos presentes nos textos da tradição de que se ocupou originariamente a hermenêutica é apenas um caso especial do que se encontra em toda orientação humana no mundo como o atopon, o estranho que jamais se deixa enquadrar nas expectativas habituais da experiência. E assim como no progresso do conhecimento os mirabila acabam perdendo sua estranheza, à medida que são compreendidos, assim também toda apropriação exitosa da tradição ganha uma nova familiaridade própria, pela qual ela nos pertence e nós pertencemos a ela. Ambas confluem num único mundo próprio e compartilhado, que abarca a história e a atualidade, o qual encontra sua articulação de linguagem nos discursos entre os seres humanos. Também da parte da compreensão, portanto, a universalidade da estrutura da linguagem humana mostra-se como um elemento ilimitado que sustenta tudo, não somente a cultura transmitida pela linguagem, mas simplesmente tudo, porque tudo é assumido pela compreensibilidade na qual nos relacionamos uns com os outros. Platão pode tomar como ponto de partida legítimo o fato de que quem considera as coisas no espelho dos discursos assegura-se de sua plena e irrestrita verdade. E quando Platão ensina que todo conhecimento só é tal pelo reconhecimento, isso tem um sentido profundo e correto. Um “primeiro” conhecimento é tão impossível como uma primeira palavra. Também o conhecimento mais recente, cujas consequências ainda não são visíveis, só será o que realmente foi quando tiver se decantado nelas e tiver trilhado o caminho da mediação do entendimento intersubjetivo. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

No entanto, quando Habermas se guia pela análise da (240) compreensão prévia e dos condicionamentos essenciais dos preconceitos próprios a toda compreensão e ação humanas, a reivindicação que ele faz à hermenêutica é de caráter fundamentalmente diferente. E verdade que a consciência da história dos efeitos, que busca refletir sobre os próprios preconceitos e controlar sua própria compreensão prévia, desbanca o objetivismo ingênuo que falseia tanto a teoria positivista da ciência quanto a fundamentação fenomenológica e de análise da linguagem próprias das ciências sociais. Mas em que contribui essa reflexão? Aí está o problema da história universal, isto é, a ideia de uma meta da história que a ação social se representa como meta. Quando se contenta com considerações gerais que jamais ultrapassam os limites do próprio ponto de vista, a reflexão hermenêutica acaba se tornando estéril e infrutífera. É verdade que com essa consideração nega-se a pretensão de uma filosofía da historia baseada em conteúdos. Mas, apesar disso, a consciência histórica projetará sempre uma história universal pré-compreendida a partir de sua própria orientação ao futuro. De que serve conhecer seu caráter provisório e sua superabilidade essencial? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

A hermenêutica é a arte do entendimento. Parece especialmente difícil entender-se sobre os problemas da hermenêutica, pelo menos enquanto conceitos não claros de ciência, de crítica e de reflexão dominarem a discussão. E isso porque vivemos numa era em que a ciência exerce um domínio cada vez maior sobre a natureza e rege a administração da convivência humana, e esse orgulho de nossa civilização, que corrige incansavelmente as faltas de êxito e produz constantemente novas tarefas de investigação científica, onde se fundamentam novamente o progresso, o planejamento e a remoção de danos, desenvolve o poder de uma verdadeira cegueira. No enrijecimento desse caminho rumo a uma configuração progressiva do mundo pela ciência perpetua-se um sistema no qual a consciência prática do indivíduo se submete resignada e cegamente ou então se rebela revoltosa, e isso significa, não menos cega. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Trata-se de retificar uma autocompreensão. Essa reflexão hermenêutica é “filosófica” não porque reivindicasse para si uma determinada legitimação filosófica, mas ao contrário porque contesta uma certa pretensão “filosófica”. O que critica não é um procedimento científico como tal, como por exemplo o da pesquisa científica ou o da análise lógica, mas a falta de justeza metodológica dessas aplicações, como foi descrito acima. E ademais, a legitimação filosófica baseada nessa questão de crítica não tem nada de especial. Não existe nenhuma outra justificação para o filosofar a não ser remeter-se ao fato de que sempre se filosofou, mesmo que muitas vezes sob os signos negativos de oposição à pretensão da “metafísica”, por exemplo, no caso do ceticismo, da crítica da linguagem ou da teoria da ciência. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Não compreendo essas considerações. A diferença entre a linguagem dos especialistas e a linguagem corrente existe desde séculos. Será que a matemática é algo novo? E o que sempre definiu o especialista, o Xamã e o médico não foi o fato de que eles nunca lançaram mão de recursos de entendimento que não fossem compreensíveis para todos? O que podemos ver como um problema moderno extremado é que o especialista já não considera ser tarefa sua traduzir seu saber para a linguagem comum corrente, de modo que essa tarefa de integração hermenêutica seria uma tarefa particular. Mas com isso a tarefa hermenêutica como tal não se modifica em nada. Ou será que com isso Habermas quer dizer apenas que poderíamos “compreender” construções teóricas, como por exemplo no campo da matemática e da ciência natural matemática atual, sem os recursos da linguagem corrente? Isso é indiscutível. Seria absurdo afirmar que toda nossa experiência de mundo não seria nada mais que um processo de linguagem, e que por exemplo o desenvolvimento de nosso senso para as cores consistiria apenas na diferenciação no uso das palavras referidas à cor. E mesmo conhecimentos genéticos, como por exemplo os de Piaget, aos quais se refere Habermas e que tornam provável a existência de um uso de categorias operacionais prévias à linguagem, mas também todas as formas de comunicação desprovidas de linguagem, a cerca das quais chamaram a atenção sobretudo Helmuth Plessner, Michael Polanyi e Hans Kunz, desqualificam qualquer tese que queira negar outras formas de compreensão fora do âmbito da linguagem apelando para uma universalidade da linguagem. Falar é, ao contrário, sua existência comunicada. Mas mesmo na comunicabilidade da compreensão encontra-se embutido o tema da hermenêutica, como reconhece corretamente Habermas (p. 77). Se quisermos evitar uma disputa por palavras, devemos renunciar a muitos rodeios e não supor que os sistemas de signos artificiais devam ser “compreendidos” no mesmo sentido em que nossa interpretação de mundo feita na linguagem é uma interpretação compreensiva. Tampouco se poderá dizer que as ciências naturais formulam seus enunciados sobre “as coisas” sem “observar-se no espelho dos discursos humanos”. Quais são as “coisas” que a ciência natural conhece? A pretensão da hermenêutica é e continua sendo integrar na unidade da interpretação de mundo feita na linguagem o que aparece como incompreensível ou como não “compreensível” para todos, mas apenas para “iniciados”. O fato de a ciência moderna ter desenvolvido suas próprias linguagens, específicas e técnicas, e sistemas artificiais de símbolos, procedendo dentro dos mesmos “monologicamente”, isto é, alcançando a “compreensão” e o “entendimento” à margem de toda comunicação do linguajar corrente, não pode ser levado a sério como uma objeção contra essa pretensão. O próprio Habermas, que faz tal objeção, sabe muito bem que essa “compreensão” e especialização, que constitui também o pathos do engenheiro social moderno e dos especialistas, carece da reflexão que lhe permitiria alcançar responsabilidade social. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Mesmo assim, a situação hermenêutica na relação social dos interlocutores é bem diferente da que se dá na relação analítica. Quando conto um sonho a alguém sem ser movido por uma intenção analítica ou por meu papel de paciente, a comunicação não tem o sentido de introduzir uma interpretação analítica do sonho. Se fizer isso, o ouvinte não atina com o scopus hermenêutico. A intenção é antes compartilhar os jogos inconscientes da própria fantasia onírica, do mesmo modo que na fantasia por exemplo participamos das lendas ou no caso da imaginação poética. Essa reivindicação hermenêutica é legítima e nada tem a ver com a resistência que é um fenômeno bem conhecido dentro da análise. É perfeitamente justificável rechaçar a atitude de alguém que não leve em conta essa situação hermenêutica descrita e, em vez de compreender por exemplo as poesias oníricas de Jean Paul como jogos significativos da imaginação, trata de interpretá-los como uma (260) gravidade significativa do simbolismo inconsciente de uma biografia entulhada. É oportuna aqui a crítica hermenêutica à legitimidade da psicologia profunda, e não se limita de modo algum a fantasias estéticas. Quando alguém, por exemplo, procura convencer argumentativamente um outro sobre uma questão política, tomado de uma emoção apaixonada e uma veemência beirando a irritação, sua pretensão hermenêutica será escutar contra-argumentos e não ver suas emoções serem analisadas por vias da psicologia profunda, segundo a máxima de que “quem se irrita jamais tem razão”. Mais adiante voltaremos a discutir essa relação entre reflexão psicanalítica e hermenêutica e os perigos de uma confusão desses dois “jogos de linguagem”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Outro exemplo da influência da compreensão prévia na investigação da história da hermenêutica é a distinção introduzida por L. Geldsetzer entre hermenêutica dogmática e hermenêutica cética. Com a ajuda dessa distinção entre uma interpretação ligada aos dogmas e apoiada pelas instituições e sua autoridade, que busca sempre a defesa consequente das normas dogmáticas, e uma interpretação de textos adogmática, aberta, heurística, que leva às vezes a um non liquet, a história da hermenêutica adota uma figura que denuncia a compreensão prévia cunhada pela teoria da ciência moderna. Nessa perspectiva aparece a hermenêutica recente, na medida em que apoia interesses teológico-dogmáticos, numa inquietante proximidade com uma hermenêutica jurídica que se compreende, de forma muito dogmática, como imposição da ordem estabelecida pelas leis. Quando no trabalho de busca jurídica ignoramos o elemento cético na exposição da lei e consideramos a essência da hermenêutica jurídica como uma mera subsunção do caso particular sob a lei geral dada, devemos perguntar se não estamos deformando o conhecimento da hermenêutica jurídica. As ideias mais recentes sobre a relação dialética entre lei e caso particular, com os recursos decisivos que oferece Hegel, parecem modificar nossa compreensão prévia da hermenêutica jurídica. O papel da jurisprudência sempre restringiu o modelo da subsunção. Na verdade, a jurisprudência está a serviço da interpretação correta da lei (e não somente de sua aplicação correta). Algo parecido vale, e com mais razão ainda, para a interpretação da Bíblia, à margem de toda tarefa prática, ou, mutatis mutandis, para a interpretação dos clássicos. Se nesse caso a “analogia da fé” não representa nenhum dado dogmático fixo para a interpretação da Bíblia, a linguagem que permite o acesso do leitor a um texto clássico tampouco pode ser concebida adequadamente se nos orientarmos pelo conceito (279) científico da objetividade e mantivermos o caráter de exemplaridade desse texto para um estreitamento dogmático da compreensão. Creio que a própria distinção entre hermenêutica dogmática e hermenêutica cética é dogmática e deveria desaparecer na análise hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Não se pode responsabilizar tão globalmente a “hermenêutica recente” pelos erros modernistas. Há que se dizer, antes, que a tarefa da reflexão hermenêutica é superar a oposição da clássica querelle des anciens et des modernes, sem pronunciar-se a favor da fé progressista dos modernos nem a favor da modéstia da mera imitação dos antigos. Isso significa desmascarar por um lado o preconceito ligado à primazia da autoconsciência e à norma de certeza da cientificidade metodológica e controlar por outro lado o preconceito contrário: nossa suposta capacidade de eliminar sem mais a era cristã e a ciência moderna. Isso já foi expresso muito claramente por Schiller em sua célebre caracterização de Goethe. Dar razão aos antigos não pode significar um retorno a eles nem sua imitação. No caso da hermenêutica, isso significa apenas que o pensamento filosófico moderno baseado na autoconsciência deve tomar consciência de sua unilateralidade e aceitar a experiência hermenêutica segundo a qual os antigos nos permitem compreender certas coisas melhor que os modernos. Jaeger refere-se a esse “subjetivismo” quando polemiza com a “hermenêutica construtivista” e com os “atos doadores de sentido” de Husserl? Se fosse assim, eu estaria plenamente de acordo. Mas isso me parece incompatível com o pensamento do autor. Como se comporta com relação às suas alusões a Heidegger? Que nos resta, então? Existir novamente sem tradição, como Jaeger atribui à hermenêutica moderna? Simplesmente ignorar a tradição em que estamos e na qual ele mesmo está? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

A hermenêutica é, pois, algo mais que um método das ciências ou o distintivo de um determinado grupo de ciências. Designa sobretudo uma capacidade natural do ser humano. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Isso não significa que se menospreze ou se limite o rigor metodológico da ciência moderna. As denominadas “ciências hermenêuticas” ou “ciências do espírito” estão sujeitas aos mesmos critérios (318) de racionalidade crítica que caracteriza o método de todas as ciências, embora seus interesses e procedimentos sejam substancialmente diversos dos que animam as ciências naturais. Mas podem apelar com razão sobretudo para o paradigma da filosofia prática, que em Aristóteles poderia ser chamada também de “política”. Aristóteles classificou essa ciência como “a ciência mais arquitetônica”, uma vez que reunia em si todas as ciências e artes do saber antigo. A própria retórica pertencia a ela. A pretensão universal da hermenêutica consiste assim em ordenar todas as ciências, em captar as chances de êxito cognitivo de todos os métodos científicos, sempre que possam ser aplicados a objetos, e em utilizá-los em todas as suas possibilidades. Mas se a “política”, enquanto filosofia prática, é algo mais que uma técnica suprema, o mesmo podemos dizer da hermenêutica. Tudo que as ciências podem conhecer, a hermenêutica deve levá-lo à relação de consenso, onde todos nós estamos. Uma vez que inclui a contribuição das ciências nessa relação de consenso que nos liga com a tradição legada a nós numa unidade vital, a própria a hermenêutica não é um simples método nem uma série de métodos, como ocorreu no século XIX desde Schleiermacher e Boeckh até Dilthey e Emilio Betti. Nesse período, a hermenêutica se converteu em teoria metodológica das ciências filológicas. A hermenêutica é antes filosofia. Não se limita a prestar conta dos procedimentos que a ciência aplica. Trata igualmente das questões prévias à aplicação de qualquer ciência — como a retórica, tematizada por Platão. Trata-se das questões que determinam todo o saber e o fazer humanos, essas questões “máximas” que são decisivas para o ser humano enquanto tal e para sua escolha do “bem”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

É evidente que não consegui convencer a Betti sobre o fato de que uma teoria filosófica da hermenêutica não é uma doutrina do método — correta ou falsa (“perigosa”). Quando Bollnow chama a compreensão de uma “produção essencialmente criadora”, isso pode ser um equívoco. Apesar de que o próprio Betti não vacila em qualificar dessa forma a atividade complementar ao direito na interpretação da lei. O certo, porém, é que não basta fundamentar-se na estética do gênio, como faz o próprio Betti. Uma teoria da inversão não permite superar a redução psicológica, que no mais ele mesmo reconhece como correta em si (na linha de Droysen). Desse modo, não supera de todo a ambiguidade que manteve a Dilthey entre psicologia e hermenêutica. Quando para explicitar a possibilidade da compreensão das ciências do espírito se vê obrigado a pressupor que somente um espírito de mesmo nível é capaz de compreender um outro, fica claro que uma tal ambiguidade psicológico-hermenêutica é insatisfatória. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Mas ainda mais importante que isso seria uma análise de Platão como objeto de reflexão hermenêutica. A obra de arte dialógica contida nos escritos de Platão ocupa um lugar peculiar, no centro, entre a multiplicidade das máscaras da poesia dramática e a autenticidade do escrito doutrinário. Nesse sentido, os últimos decênios contribuíram para a formação de uma consciência hermenêutica mais elevada. O próprio Strauss surpreende, em seus trabalhos, com muitas mostras de brilhante decifração das relações de significado ocultas no decurso dos diálogos platônicos. Por mais que tenham nos ajudado a análise formal e outros métodos filológicos, a verdadeira base hermenêutica é a nossa própria relação com os problemas temáticos de que trata Platão. Mesmo a ironia artística de Platão (como qualquer ironia) só pode ser compreendida por quem está por dentro dos temas que ele trata. A consequência é que essas interpretações decifradoras permanecem “inseguras”. Sua “verdade” não pode ser demonstrada “objetivamente”, a não ser a partir daquele acordo temático que nos liga com o texto interpretado. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

A ciência pode fazer muitas objeções a isso. Desde há muito a hermenêutica é uma parte constitutiva da teologia. Sobretudo com a crítica feita pela teologia dialética à linguagem sobre Deus, e desde que a teologia histórica do liberalismo assumiu a tarefa de harmonizar sua própria pretensão científica com o sentido querigmático da Sagrada Escritura e com sua interpretação, surgiu de novo a problemática hermenêutica. Assim, Rudolf Bultmann”, adversário ferrenho de toda teoria da inspiração e de toda exegese pneumática, e mestre do método histórico, reconheceu a relação ontológica prévia que o sujeito tem com o texto que procura compreender. Fez isso, na medida em que, na relação do crente com a Sagrada Escritura descobriu uma “pré-compreensão” inerente à (430) existência humana que se manifesta na pergunta por Deus. Quando adotou o lema da desmitologização, procurando liberar o núcleo querigmático do Novo Testamento e salvar assim a Sagrada Escritura do estranhamento histórico, Bultmann estava seguindo na verdade um velho princípio hermenêutico. Isso porque é evidente que o verdadeiro objetivo dos escritos do Novo Testamento é sua mensagem de salvação e que esses escritos devem ser lidos à luz dessa mensagem. Foram sobretudo alguns discípulos que radicalizaram o tema da hermenêutica redescoberto por Bultmann. Ernst Fuchs, com um livro que reuniu de forma genial a reflexão e a exegese, e Gerhard Ebeling, partindo sobretudo da hermenêutica luterana. Ambos falam de um “acontecimento de linguagem” próprio da fé, buscando afastar do sentido salvífico da tradição bíblica qualquer objetivismo indiferente, na linha do mito ou do fato histórico. Mesmo que não faltem contra-reações na teologia moderna, esses estímulos obrigam a consciência hermenêutica a progredir não só na teologia protestante, mas também na católica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Mas também na vertente filosófica, encontramos desde há muito uma tendência similar, dotada de uma consciência filosófica (431) ainda maior, quando Chaim Perelman e seus colaboradores defenderam o significado lógico da argumentação usual no direito e na política contra a lógica da teoria da ciência. Utilizando os recursos da análise lógica, mas justamente com a intenção de distinguir os procedimentos do discurso persuasivo contra a forma de demonstração lógico-apodíctica, ele lança mão da antiga aspiração da retórica contra o positivismo científico. Frente à unilateralidade da teoria moderna da ciência e da philosophy ofscience, era inevitável que o interesse filosófico não recuperasse lentamente seu interesse pela tradição da retórica, exigindo sua revitalização. Foi o que fortaleceu também o interesse pela hermenêutica, uma vez que essa partilha com a retórica sua distinção frente ao conceito de verdade da teoria da ciência e a defesa de seu direito à autonomia. Fica em aberto a questão de saber se essa correspondência, historicamente legítima, entre retórica e hermenêutica é total e plena. De certo, a maioria dos conceitos da hermenêutica clássica desde Melanchton provém da tradição retórica da Antiguidade. O elemento da retórica, o âmbito dos persuasive arguments, tampouco se limita às ocasiões forenses e públicas da arte da oratória. Parece dilatar-se, antes, com o fenômeno universal da compreensão e do entendimento. Mas desde antigamente permanece uma barreira infranqueável entre a retórica e a dialética. O processo do entendimento insere-se mais profundamente na esfera da comunicação intersubjetiva, abrangendo também todas as formas em que se dá o consenso tácito, como o demonstrou M. Polanyi, e igualmente os fenômenos de comunicação à margem do âmbito da linguagem, os fenômenos mímicos, como o riso, o choro, cujo significado hermenêutico nos foi ensinado por H. Plessner. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Foi certamente um grande mal-entendido querer acusar o lema “verdade e método” de estar ignorando o rigor metodológico da ciência moderna. O que dá validade à hermenêutica é algo bem diferente, e isso não tem nenhuma tensão com o ethos rigoroso da ciência. No fundo, nenhum pesquisador produtivo pode duvidar de que a pureza metodológica é indispensável à ciência. Mas a simples aplicação de métodos usuais caracteriza bem menos a essência da investigação do que a invenção de novos métodos, e, por trás desses, a fantasia criativa do investigador. E isso não serve apenas para o âmbito das assim chamadas ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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