Gadamer (VM): gosto

Temos de voltar novamente a divagar. Pois, na verdade, não se trata somente do estreitamento do conceito do sentido comum passando a ser GOSTO, mas, da mesma forma, um estreitamento do próprio conceito do GOSTO. A longa pré-história que esse conceito tem, até Kant o transformou no fundamento de sua crítica do juízo, permite que se reconheça que o conceito do GOSTO é originariamente um conceito mais moral do que estético. Descreve um ideal de genuína humanidade e tem a agradecer sua cunhagem ao empenho de se distinguir criticamente do dogmatismo da “escolástica”. A utilização do conceito só mais tarde veio a restringir-se ao “espírito do belo”. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

O ideal de formação, que Gracian assim apresenta, viria a marcar época. Substituiu o dos cortesãos cristãos (Castiglione). No âmbito da história do ideal de formação ocidental sua distinção reside no fato de ser independente dos dados pré-existentes e constantes. É o ideal de uma sociedade instruída. Pelo que parece, uma tal formação ideal social se realiza por toda parte, sob o signo do absolutismo e pela repreensão da fidalguia de nascença. A história do conceito do GOSTO acompanha, por isso, a história dos absolutismos da Espanha para a França e a Inglaterra e coincide com a pré-história da terceira classe social. O GOSTO não é somente o ideal que apresenta uma nova sociedade, mas em primeiro lugar vem a formar-se, sob o signo desse ideal do “bom GOSTO” aquilo que, desde então, se denomina a “boa sociedade”. Ela se reconhece e se legitima não mais através do nascimento e do status mas, basicamente, nada mais do que através da comunhão de seus julgamentos, ou melhor, sabendo elevar-se da parvoíce dos interesses e da privacidade das preferências para exigência do julgamento. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Sob o conceito de GOSTO pensa-se, sem dúvida, uma forma de conhecimento. Ocorre sob o signo do bom GOSTO, que se seja capaz de manter distância quanto a si próprio e quanto às preferências privadas. O GOSTO não é, segundo sua natureza mais própria, nada que seja privado, mas, sim, um fenômeno social de primeira categoria. Pode até opor-se à inclinação privada do indivíduo, como se fosse uma instância de julgamento, em nome de uma universalidade, no que ele acredita e a que representa. Pode-se ter uma preferência por algo que o próprio GOSTO ao mesmo tempo repudia. A sentença judicial do GOSTO possui nisso uma peculiar decisão. Quanto a questões de GOSTO não existe, reconhecidamente, nenhuma possibilidade de argumentar (Kant diz corretamente que, quanto a coisas do GOSTO, existe discórdia, mas não disputa), mas não somente porque não se consegue estabelecer padrões conceituais universais, que todos tenham de reconhecer, mas porque nem sequer se procuram esses tais padrões, e até, a gente nem sequer achá-los-ia justos, caso existissem. GOSTO, a gente tem de ter — não se pode deixar que nos seja demonstrado, e também não se pode substituí-lo por mera imitação. Da mesma forma, o GOSTO não é nenhuma mera propriedade privada, porque ele sempre quer ser bom GOSTO. A decisão do juízo do GOSTO inclui sua reivindicação de validade. O bom GOSTO está sempre seguro de seu julgamento, isto é, ele é, de acordo com sua natureza, um GOSTO seguro: um aceitar ou rejeitar que não conhece nenhuma oscilação, nenhum olhar de soslaio a um outro e nenhuma procura por motivos. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Um fenômeno que está estreitamente vinculado ao GOSTO é a moda. E aqui que o momento da universalização social, que o conceito de GOSTO contém, torna-se uma realidade determinante. Justamente ao ser destacado face à moda, torna-se claro que a generalização, que convém ao GOSTO, repousa sobre fundamentos totalmente diversos e que não significa apenas uma universalidade empírica (para Kant, esse é o ponto essencial). O conceito da moda já diz literalmente que se trata aí de um “como”(modus) passível de modificação no âmbito de um todo permanente do comportamento social. O que é mera questão de moda não contém em si nenhuma outra norma senão a que é estabelecida pela atuação de todos. A moda regula a seu bel-prazer apenas aquelas coisas que poderiam ser também diferentes. De fato, para ela, a universalidade empírica, o respeito pelos outros, a comparação, até mesmo o colocar-se num ponto de vista comum, tudo isso lhe é constitutivo. Por isso, a moda cria uma dependência social, da qual temos muita dificuldade de escapar. Kant tem toda razão quando acha melhor sermos tolos da moda do que ser contra a moda — mesmo que certamente continue sendo uma tolice levar demasiado a sério as coisas da moda. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Por outro lado, o fenômeno do GOSTO deve ser definido como uma capacidade de diferenciação espiritual. O GOSTO também é ativo numa tal coletividade, mas não se submete a ela — ao contrário, o bom GOSTO se caracteriza pelo fato de saber adequar-se à tendência do GOSTO representado pela moda, ou vice-versa, saber adequar à exigência da moda seu próprio bom GOSTO. No conceito de GOSTO reside o fato de que também na moda deve-se manter uma medida, não seguindo cegamente as suas mutáveis exigências, mas fazendo atuar o próprio julgamento. Mantemos o nosso “estilo”, isto é, vinculamos as exigências da moda a um todo que não perde de vista o próprio GOSTO e só aceita o que se adeque ao todo e o modo pelo qual se adequa. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

E justamente isso o que perfaz a amplitude originária do conceito de GOSTO, ou seja, que através dele designa-se uma forma própria de conhecimento. Ele pertence ao âmbito que, no modo do juízo reflexo, abrange, no particular, o universal, o qual deve ser subsumido. O GOSTO, assim como o juízo, são julgamentos do individual com vistas a um todo, a ver se ele se ajusta a todos os outros, a ver se, portanto, “combina”. É preciso ter “sentidos” para isso — pois ele não é demonstrável. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

O surgimento do conceito do GOSTO no século XVII, a cuja função social e social-aglutinante aludimos acima, desloca-se assim para os contextos da filosofía moral, que retrocede até a antiguidade. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

E evidente que uma tal tese soa estranha aos nossos ouvidos. De um lado, porque no conceito do GOSTO, e na maior parte dos casos, se desconhece o elemento ideal normativo, e se dá atenção ao rasonnement, relativista-cético sobre a diversidade do GOSTO. Sobretudo, porém, somos influenciados pelo desempenho moral-filosófico de Kant, que purificou a ética de todos os momentos estéticos e sentimentais. Se fixarmos os olhos no papel que a crítica do juízo de Kant desempenha no âmbito da história das ciências do espírito, teremos de dizer que sua fundamentação transcendental e filosófica da estética foi rica em consequências para ambos os lados e que representa nisso uma época. Representa a ruptura de uma tradição, mas, ao mesmo tempo, o preâmbulo de um novo desenvolvimento. Limitou o conceito do GOSTO ao campo em que podia reivindicar, como um princípio próprio do juízo, validade autônoma e independente — e, no lado oposto, restringiu com isso o conceito do conhecimento à utilização teórica e prática da razão. A intenção transcendental, que o guiava, encontrou sua realização no restrito fenômeno do julgamento sobre o belo (e o sublime) e desterrou do centro da filosofia o conceito mais universal da experiência do GOSTO e a atividade do juízo estético no âmbito do direito e dos costumes. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Em face dessa situação, apresenta-se a pergunta pelo modo como Kant determina a mútua relação entre o GOSTO e o gênio. Kant conserva sua primazia principiai para o GOSTO, na medida em que também as obras das belas artes, que são artes de um gênio, encontram-se sob o ponto de vista condutor da beleza. Pode-se ter dificuldade em citar, em contraste com a inventividade do gênio, o aprimoramento posterior, que se torna um imperativo do GOSTO — mas essa é a disciplina necessária, que se pode atribuir ao gênio. Até aí, em casos de litigio, segundo a opinião de Kant, o GOSTO continua merecendo a primazia. Mas essa questão não tem significação principiai. Porque, basicamente, o GOSTO encontrase no mesmo nível que o gênio. A arte do gênio reside em tornar transmissível o jogo livre das forças do conhecimento. É o que produzem as ideias estéticas, que ele inventa. A transmissibilidade do estado de ânimo, do prazer, caracteriza também o prazer estético do GOSTO. E uma capacidade do julgamento, portanto, um GOSTO de reflexão, mas aquilo sobre o que ele reflete é somente aquele estado de ânimo do avivamento das forças do conhecimento, que se encontra tanto no belo natural como no belo artístico. A significação sistemática do conceito do gênio, ao contrário, está restrita ao caso especial da beleza artística, mas a significação do conceito do GOSTO é universal. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

É, de fato, elucidativo que o conceito do GOSTO perca o seu significado quando o fenômeno da arte passa a ocupar o primeiro plano. Em face da obra de arte, o ponto de vista do GOSTO é secundário. A sensibilidade de escolha, que o perfaz, possui, em contraste com a originalidade da obra de arte genial, uma função muitas vezes niveladora. O GOSTO evita o que é incomum e monstruoso. Ele é um sentido superficial, não se mete com o que há de original numa produção artística. Já a ascensão do conceito do gênio no século XVIII mostra uma ponta polêmica contra o conceito do GOSTO. Ele era dirigido contra a estética do classicismo, na medida em que se reivindicava ao ideal dos clássicos franceses o reconhecimento de Shakespeare (Lessing!). Kant é, nesse particular, antiquado e assume uma posição medianeira, quando ele ficou apegado, em sua intenção transcendental, ao conceito de GOSTO que, sob o signo de tempestade e impulso (Sturm und Drang), não somente foi repudiado com élan, mas também foi ferido de maneira tempestuosa. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Assim vemos que, segundo a questão, a ideia de um GOSTO consumado, discutida por Kant, seria melhor definida através do conceito do gênio. Naturalmente seria desagradável aplicar a ideia do GOSTO consumado, como tal no campo do belo natural. Para a arte da jardinagem, até pode, eventualmente, ser aceito. Mas, de uma forma consequente, Kant cunhou a arte da jardinagem como o belo artístico. No entanto, em face da beleza da natureza, p. ex., da beleza de uma paisagem, a ideia de um GOSTO consumado está bastante fora do lugar. Será que ele consiste em dignificar segundo o mérito tudo que é belo na natureza? Pode haver ali uma seleção? Existe ali uma ordem hierárquica? Será que uma paisagem ensolarada é mais bela que uma mergulhada em chuva? Afinal, existe na natureza o feio? Ou será que há somente para variações de ânimo, variações de simpatia (Ansprechendes), para gostos diferentes, agrados diferentes? Kant pode ter razão quando considera de importância moral indagar se a natureza pode, seja como for, agradar a alguém. Mas pode-se diante dela diferenciar, com sentido, um bom e um mau GOSTO? Onde uma tal diferenciação não deixa absolutamente nenhuma dúvida, em face da arte e do artístico, aí, como vimos, o GOSTO é, ao contrário, apenas uma condição restritiva do belo e não contém o seu genuíno princípio. Assim, a ideia de um GOSTO consumado, ante a natureza como ante a arte, ganha algo de duvidoso. A gente faz violência ao conceito do GOSTO quando não se assume nele a mutabilidade do GOSTO. Se há algo que é um testemunho da mutabilidade de todas as coisas humanas e da relatividade de todos os valores humanos, esse algo é o GOSTO. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

A fundamentação kantiana da estética sobre o conceito de GOSTO não pôde, a partir disso, satisfazer plenamente. É bem mais próximo o conceito de gênio, que Kant desenvolve como um princípio transcendental para o belo artístico, do que utilizar o princípio estético universal. Preenche bem melhor do que o conceito do GOSTO a exigência de se manter invariável ante a mudança dos tempos. O milagre da arte, a consumação enigmática, que aderem às criações bem sucedidas da arte, são visíveis ao longo de todos os tempos. Parece possível subordinar o conceito do GOSTO à fundamentação transcendental da arte e entender sob GOSTO o sentido seguro para o que é genial da arte. A frase de Kant: “As belas artes são arte do gênio”, transforma-se então, por excelência, num princípio transcendental da estética. Estética é possível, ao cabo, apenas como filosofia da arte. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Com isso, porém, se deslocaram os fundamentos da estética. Como o conceito do GOSTO do belo natural também sofre desvalorização, ou será entendido diferentemente. O interesse moral pelo belo da natureza, que Kant descrevera tão entusiasticamente, dá lugar ao auto-encontro do homem nas obras de arte. Na extraordinária estética de Hegel, o belo natural aparece ainda como “reflexo do espírito”. Não há mais, no fundo, nenhum momento independente no todo sistemático da estética. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Para o desenvolvimento da mais recente estética torna-se decisivo que também aqui, como em toda a filosofia sistemática, o idealismo especulativo tenha tido um efeito que vai bem mais além de sua validade reconhecida. Conhecidamente, a execração do esquematismo dogmático da escola de Hegel, em meados do século XIX, acabou promovendo uma renovação da crítica sob a divisa: “De volta a Kant”. Isso vale, da mesma forma, para a estética. Por mais grandiosa que tenha sido a valoração da arte para uma história das cosmovisões, que Hegel deu na sua estética — o método de uma tal construção apriorística da história, que encontrou algumas aplicações na escola hegeliana (Rosenkranz, Schasler, entre outros), acabou sendo rapidamente desacreditada. A exigência de uma volta a Kant, que se levantou contra isso, não conseguiu representar uma verdadeira volta e retomada do horizonte, que abrangia as críticas de Kant. Antes, o fenômeno da arte e o conceito do gênio permaneceram no centro da estética, e o problema do belo natural, bem como o conceito do GOSTO, continuaram à margem. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Isso se mostra também no uso da linguagem. A redução de Kant, do conceito de gênio ao artista, que tratamos acima, não conseguiu se impor. Ao contrário, no século XIX o conceito de gênio elevou-se a um conceito de valor universal e experimentou — em união com o conceito da criatividade — uma verdadeira apoteose. Era o conceito romântico-idealista da produção inconsciente, que suportou esse desenvolvimento e que alcançou uma enorme repercussão através de Schopenhauer e da filosofia do inconsciente. É verdade que mostramos que uma tal posição preferencial sistemática do conceito do gênio em contraste com o conceito do GOSTO respondia, de forma alguma, à estética kantiana. Porém a preocupação essencial de Kant veio a produzir uma fundamentação da estética que é autônoma e liberta do padrão do conceito, e de maneira alguma chegou a colocar a questão relativa à verdade no âmbito da arte, mas, fundamentou o julgamento estético sobre o a priori subjetivo do sentimento vital, a harmonia de nossa capacidade para “o conhecimento como tal”, que perfaz a essência comum do GOSTO e do gênio, anteposto ao irracionalismo e ao culto do gênio do século XIX. A doutrina de Kant sobre a “elevação do sentimento vital” no prazer estético promoveu o desenvolvimento do conceito “gênio” para um conceito de vida abrangente, principalmente depois que Fichte havia elevado o ponto de vista do gênio e a produção genial a um ponto de vista universal e transcendental. Assim aconteceu que o neokantianismo, na medida em que procurava derivar tudo que tivesse valor de objeto da subjetividade transcendental, terminou caracterizando o conceito de vivência como a genuína realidade do consciente. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Já examinamos acima o significado do conceito do GOSTO nessa correlação. Todavia, a unidade de um ideal do GOSTO, que caracteriza e une uma sociedade, é caracteristicamente diferente daquilo que perfaz a configuração da formação estética. O GOSTO segue ainda um padrão de conteúdo. O que é válido numa sociedade, qual o GOSTO que predomina nela, é isso que cunha a comunhão da vida social. Uma tal sociedade seleciona e sabe o que pertence ou não a ela. Também a posse de interesses artísticos não é para ela casual e, segundo a ideia, universal, mas o que os artistas criam e o que a sociedade aprecia, eis o que faz parte integrante da unidade de um estilo de vida e de um ideal do GOSTO. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Esse aspecto torna-se muito evidente nas modalidades de arte que requerem re-produção (música, teatro, dança, etc). A reprodução deve ser estilisticamente correta. Deve-se saber o que exigem o estilo da época e o estilo pessoal de um mestre. De certo, esse saber não é tudo. Uma reprodução “historicamente fiel” não seria uma produção verdadeiramente artística, i. é, não representaria a obra enquanto obra de arte, mas seria antes — suposto que isto seja possível — um produto didático ou um simples material para a investigação histórica, como serão provavelmente no futuro as gravações de discos dirigidas pelo próprio compositor. Mas mesmo a mais viva inovação de uma obra experimentará certas restrições da coisa em questão, restrições impostas por parte da história dos estilos, e não é aconselhável que se volte contra elas. O estilo pertence, na realidade, à “base sólida” da arte, às condições que estão na coisa ela mesma, e o que surge então na re-produção vale para o nosso comportamento receptivo com relação a toda espécie de arte 78] (a re-produção não é mais que uma forma determinada de mediação a serviço da recepção). É verdade que o conceito de estilo (semelhante ao conceito de GOSTO, com o qual é aparentado; cf. o termo senso estilístico) não constituiu um ponto de vista satisfatório para a experiência da arte e para seu conhecimento científico — ele só o é no âmbito do decorativo. Mesmo assim, constituiu-se num pressuposto necessário para se compreender a arte. VERDADE E METODO II ANEXOS EXCURSO I