Uma corrente um pouco diferente, que contribuiu para o progresso de meus estudos, refere-se aos problemas das ciências sociais e da FILOSOFIA PRÁTICA. O interesse crítico que Jürgen Habermas demonstrou, nos anos sessenta, pelos meus trabalhos, foi criticamente significativo. Sua crítica e minha contra-argumentação fizeram-me ver a dimensão em que havia ingressado quando transpus o âmbito do texto e da interpretação em direção ao caráter de (22) linguagem de toda compreensão. Isso permitiu-me aprofundar ainda mais a participação que a retórica tem na história da hermenêutica, que é ainda maior na forma de existência da sociedade. Alguns estudos deste volume também testemunham essa questão. VERDADE E METODO II Introdução 1.
Finalmente, a mesma problemática obrigou-me a elaborar de modo mais agudo o teor teórico-científico de uma hermenêutica filosófica, na qual a compreensão, a interpretação e o procedimento das ciências hermenêuticas devem encontrar sua legitimação. Isto levou-me a tratar de um problema, com que eu me havia ocupado intensamente desde meus primeiros trabalhos: O que é a FILOSOFIA PRÁTICA? Como podem a teoria e a reflexão dirigir-se para o âmbito da praxis, visto que esta não tolera nenhum distanciamento, mas, pelo contrário, exige o engajamento. Essa questão tocou-me desde cedo através do pathos existencial de Kierkegaard. Ademais, orientei-me pelo modelo da FILOSOFIA PRÁTICA de Aristóteles. Procurei evitar o modelo distorcido de teoria e sua aplicação, que, partindo do conceito moderno de ciência, determinou de modo unilateral também o conceito de práxis. Foi nesse ponto que Kant introduziu a autocrítica da modernidade. Na Fundamentação da metafísica dos costumes, de Kant acreditei e acredito encontrar uma verdade, quiçá parcial, reduzida ao imperativo, que é no entanto inabalável dentro de seus limites: Os impulsos do Iluminismo não podem prender-se a um utilitarismo social, se é que devem sobreviver à crítica de Rousseau, que segundo o próprio Kant, foi decisiva para ele. VERDADE E METODO II Introdução 1.
Atrás disto está o antigo problema metafísico da concreção do universal. Eu já tinha isto em mente nos meus primeiros trabalhos sobre Platão e Aristóteles. Os primeiros textos de minha formação intelectual foram publicados pela primeira vez, recentemente, no volume V dessa edição alemã, sob o título Praktisches Wissen (Saber prático) (escrito em 1930). Ali trabalhei na elaboração da essência da phronesis, em estreita ligação com o livro 6 da Ética a Nicômaco, estimulado por Heidegger. Em Verdade e método I, esta problemática ocupa um lugar central. Nesse meio tempo, a tradição aristotélica da FILOSOFIA PRÁTICA foi retomada e abordada sob diversas perspectivas. Parece-me indiscutível a sua autêntica atualidade. Na minha opinião, isso nada tem a ver com os indícios políticos, ligados hoje a um neo-aristotelismo. O que significa FILOSOFIA PRÁTICA permanece sendo, para o conceito científico do conjunto do pensamento moderno, uma exigência real, que não pode ser ignorada. Há que se aprender com Aristóteles que o conceito grego de ciência, episteme, significa conhecimento racional. Isso significa que ele toma como modelo a matemática, e não abrange propriamente a empiria. Por isso, o conceito grego de ciência, (23) episteme, corresponde menos à ciência moderna, do que o conceito de techne. Em todo caso, o saber prático e político têm fundamentalmente uma estrutura diferente de todas estas formas de saber didático e de sua aplicação. O saber prático (Können), na verdade, é aquilo que, a partir de si, assinala o lugar a todo saber prático fundamentado cientificamente. Isto já era o sentido do questionamento socrático pelo bem, mantido por Platão e Aristóteles. Quem acredita que, graças à sua competência indiscutível, a ciência possa substituir a razão prática e a racionalidade política, desconhece as forças que levam à configuração da vida humana, as quais, pelo contrário, são as únicas que estão em condições de utilizar com sentido e compreensão a ciência e todo saber prático humano, e responsabilizar-se pela utilização do mesmo. VERDADE E METODO II Introdução 1.
Ora, a FILOSOFIA PRÁTICA não é certamente, ela própria, esta racionalidade. Ela é filosofia, isto é, uma reflexão, e uma reflexão sobre aquilo que deve ser a configuração da vida humana. No mesmo sentido, a hermenêutica filosófica não é ela própria a arte do compreender, mas a sua teoria. Contudo, tanto uma quanto a outra forma de conscientização surge da praxis, e sem esta não é nada mais do que um mero processo vazio. Este é o sentido específico de saber e ciência, que se há de legitimar novamente a partir da problemática hermenêutica. Este foi o objetivo a que tenho dedicado meu trabalho, mesmo depois da conclusão de Verdade e método I. VERDADE E METODO II Introdução 1.
A universalidade da hermenêutica depende, em última instância, da medida em que seu caráter teórico, transcendental, limita sua validez ao âmbito da ciência ou se também inclui os princípios do “sensus communis” e, com isso, o modo como o uso científico é integrado na consciência prática. Compreendida assim de modo universal, a hermenêutica adquire uma forte afinidade com a “FILOSOFIA PRÁTICA“, revitalizada dentro da tradição transcendental-filosófica alemã pelos trabalhos de J. Ritter e sua escola. A hermenêutica filosófica é consciente dessa consequência. Uma teoria da praxis da compreensão é certamente teoria e não prática. Mas nem por isso uma teoria da praxis é uma “técnica” ou uma pretensa cientifização da práxis social. É, ao contrário, uma reflexão filosófica dos limites a que está submetido todo domínio científico-técnico da natureza e da sociedade. São verdades cuja defesa diante do conceito moderno de ciência constitui uma das mais importantes tarefas de uma hermenêutica filosófica. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.
Esse saber não é simplesmente um exercício superior daquele saber prático que Aristóteles descreveu e analisou como phronesis. Quem sabe a “FILOSOFIA PRÁTICA” se distinga da “ciência teórica” em Aristóteles exatamente pelo fato de que o “objeto” dessa ciência não é o permanente e os princípios e axiomas supremos, mas a práxis humana sujeita à constante mudança. Mas em certo sentido ela mesma é teórica, já que não ensina um saber sobre a ação real que esclarece e decide uma situação concreta da práxis, mas transmite conhecimentos “gerais” sobre o comportamento humano e as formas de sua existência “política”. Dessa forma, na tradição da história ocidental da ciência, como uma forma própria de ciência, persiste a scientia practica, a FILOSOFIA PRÁTICA, que não é ciência teórica nem é caracterizada suficientemente por sua “referência com a práxis”. Enquanto teoria, não é um saber sobre a ação. Mas não será nada mais que techne ou “doutrina da arte”? Não pode ser comparada com a gramática ou a retórica que dispõem de uma consciência de regras técnicas para uma competência técnica — discursar ou escrever — que possibilita o controle da práxis e também da teoria. Essas teorias da arte, apesar de sua superioridade sobre a mera experiência, parecem reconhecer uma validez última ao exercício do falar ou escrever, como todas as outras technai, todo saber manual está submisso ao uso que se faz do produto criado. Assim, a FILOSOFIA PRÁTICA não é um saber regulador da práxis humana e social do mesmo modo que a gramática e a retórica são doutrinas da arte. E antes a reflexão sobre essa práxis e portanto, em última instância, “geral” e “teórica”. Por outro lado, a teoria e o discurso encontram-se aqui sob condições especiais, à medida que todo saber moral-filosófico e correspondentemente toda teoria geral do estado estão relacionados às condições empíricas especiais do aprendiz. Aristóteles reconhece que esses “discursos gerais” sobre o que seja a mais própria práxis concreta de cada um só se justificam se se estiver tratando com alunos maduros o bastante para empregar esses discursos gerais em circunstâncias concretas de (254) sua experiência vital com responsabilidade autônoma. A ciência prática é, portanto, um saber “geral”, mas certamente um saber que se pode chamar menos de saber produtivo que de crítica. VERDADE E METODO II OUTROS 19.
Convém recordar aqui o lugar especial que ocupa a FILOSOFIA PRÁTICA em Aristóteles. Chama-se “philosophia” e isso implica um interesse “teórico” e não prático. Mas mesmo assim não se cultiva pelo mero desejo de saber, como acentua Aristóteles em sua Ética, mas por causa da arete, isto é, por causa do ser e agir práticos. Pois (291) bem, parece-me digno de nota que se possa afirmar o mesmo a respeito do que Aristóteles, no livro VI da Metafísica, chama “poietike philosophia” e que abarca tanto a poética como a retórica. Nem uma e nem outra são variedades da “techne”, no sentido do saber técnico. Ambas estão baseadas numa faculdade universal do ser humano. Sua posição especial em relação às “technai” não tem uma caracterização distintiva tão clara como é o caso da ideia da FILOSOFIA PRÁTICA, caracterizada por sua relação polêmica com a ideia platônica do bem. Ademais, creio que, em analogia com a FILOSOFIA PRÁTICA, pode-se considerar a posição particular e a especificidade da filosofia poética como uma consequência do pensamento aristotélico. Seja como for, a história acabou tirando essa consequência. O trivium, que se diferencia em gramática, dialética e retórica, e que inclui sob a retórica também a poética, em relação a todos os modos específicos do fazer ou do produzir algo, ocupa um posto tão universal como o posto que compete à praxis em geral e à racionalidade que a orienta. Essas partes do trivium, longe de ser ciências, são artes “liberais”, ou seja, pertencem à postura básica da existência humana. Não são algo que se faz ou se estuda para que se venha a ser então aquele que aprendeu essas artes. Essa capacidade de formação faz parte das possibilidades do ser humano como tal, faz parte daquilo que todo indivíduo é ou pode fazer. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
A virada da teoria hermenêutica iniciada com a crítica de Heidegger ao idealismo da consciência tem, por outro lado, uma história muito antiga. Encontramos aqui a conexão do problema hermenêutico com a tradição da FILOSOFIA PRÁTICA desde Aristóteles, defendida por J. Ritter e por eu mesmo. Essa tradição não é tão fácil de se liquidar, e não consigo compreender por que Jaeger se enoja da “interpretação” e a “compreensão”. São, sobretudo, os procedimentos analíticos os que nada têm a ver com qualquer tipo de aventura irracionalista. Ajustam-se muito mais à tradição clássica da retórica e, segundo o artigo de Jaeger, que tem para mim o mérito de me haver incitado ao estudo de Dannhauer, sei que também a lógica aristotélica e analítica, no sentido de methodus resolutiva, constituiu uma outra, possível orientação para a formação da teoria hermenêutica. O certo é que o douto trabalho de Jaeger só me serviu para esse “também”. Não sei por que o aristotelismo lógico de Dannhauer não deva ocupar um lugar de destaque dentro da res publica litteraria, frente a Flacius e à hermenêutica teológica. VERDADE E METODO II OUTROS 21.
Ora, há pelo menos um paradigma nos moldes da teoria da ciência que poderia dar uma certa legitimidade a essa reorientação da reflexão metodológica das ciências do espírito, e essa é a “FILOSOFIA PRÁTICA” fundada por Aristóteles. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Frente à dialética platônica, entendida como um saber teórico, Aristóteles reivindicou para a FILOSOFIA PRÁTICA uma autonomia peculiar e iniciou uma tradição que exerceria sua influência até o século XIX a dentro, e acabaria sendo dissolvida no século XX pela “ciência política” ou “politologia”. Mas, apesar de toda determinação com que Aristóteles apresenta a ideia da FILOSOFIA PRÁTICA contra a ciência unitária da dialética de Platão, o aspecto teórico-científico da chamada “FILOSOFIA PRÁTICA” permaneceu na penumbra. Algumas iniciativas que se estendem até os nossos dias buscam ver no “método” da ética aristotélica, introduzida por ele como “FILOSOFIA PRÁTICA” e na qual a virtude da racionalidade prática, a phrone-sis, ocupa um lugar central, nada mais que um exercício de racionalidade prática. (O fato de toda ação humana, e portanto também a exposição dos pensamentos aristotélicos sobre a FILOSOFIA PRÁTICA, estar sujeita aos critérios da racionalidade prática nada diz sobre o que seja o método da FILOSOFIA PRÁTICA.) A discussão sobre esses pontos não deve causar muita surpresa, uma vez que os enunciados gerais aristotélicos sobre a metodologia e a sistemática das ciências são bastante escassos e contemplam menos a natureza metodológica das mesmas do que a diversidade de âmbitos de seus objetos. Isso vale sobretudo para o primeiro capítulo da Metafísica E e sua duplicação em K 7. Decerto, nela destaca-se a física (e em última instância a “filosofia primeira”), como ciência teórica, frente à ciência prática e poiética. Mas se examinarmos o modo de fundamentar a distinção entre as ciências teóricas e as não teóricas, veremos que se fala unicamente da diversidade dos objetos desse saber. Ora, isso corresponde sem dúvida ao princípio geral metodológico de Aristóteles, segundo o qual o método deve reger-se sempre por seu objeto, e o tema aparece claro no que se refere aos objetos. No caso da física, seu objeto caracteriza-se pelo automovimento. O objeto do saber produtivo, ao contrário, a obra a ser criada, tem sua origem no fabricante e em seu saber e poder. Igualmente o que orienta o sujeito na ação prática política é determinado a partir do próprio sujeito e de seu próprio saber. Poderia parecer que Aristóteles está falando aqui do saber técnico (o do médico, por exemplo) e do saber prático daquele que toma uma decisão racional (prohairesis), como se esse saber, ele mesmo, constituísse a ciência poiética ou prática que corresponde à física. É claro que não é o caso. As ciências que se distinguem aqui (junto com a distinção teórica entre física, matemática e teologia) aparecem como ciências que buscam conhecer os archai e as aitiai. Trata-se de uma investigação da arche, ou seja, não do saber aplicado do médico, do artesão ou do político, mas do que se pode dizer e ensinar em geral. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
É importante observar que aqui Aristóteles não reflete sobre essa distinção. Para ele é óbvio que nesses âmbitos o saber em geral não exige nenhuma autonomia própria, mas supõe sempre sua realização na aplicação concreta. Mas nossa reflexão mostra que é necessário distinguir claramente entre as ciências filosóficas, que estudam a realização prática ou poiética do fazer ou do fabricar (304) (com inclusão do poetizar e do “fazer” discursos), enquanto investigação dessas realizações, e a realização, ela mesma. A FILOSOFIA PRÁTICA não é a virtude da racionalidade prática. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Há, certamente, uma resistência em aplicar o conceito moderno de teoria à FILOSOFIA PRÁTICA, que já pretende ser prática por sua própria autodeterminação. Por isso, estabelecer condições especiais de cientificidade, que sejam válidas para essas esferas, sobretudo quando Aristóteles as caracterizava com a vaga indicação de que são ciências menos exatas, é um problema extremamente árduo. No caso da FILOSOFIA PRÁTICA, a situação é muito mais complexa e exigiu de Aristóteles uma certa reflexão metodológica. A FILOSOFIA PRÁTICA necessita de uma legitimação de caráter próprio. O problema decisivo é, evidentemente, que essa ciência prática está relacionada com o problema global do bem na vida humana, que não se restringe, como as technai, a uma esfera determinada. Apesar disso, a expressão “FILOSOFIA PRÁTICA” significa que para os problemas práticos não convém fazer-se um uso determinado de argumentos de tipo cosmológico, ontológico e metafísico. Se aqui for preciso limitar-se ao que for relevante para o ser humano, ao bem prático, o método que aborda essas questões do fazer prático é sem dúvida radicalmente diferente da razão prática. Já no aparente pleonasmo de uma “filosofia teórica” e principalmente na autodesignação “FILOSOFIA PRÁTICA“, podemos encontrar algo que acompanha, até hoje, a reflexão dos filósofos: o fato de que a filosofia não pode renunciar completamente à pretensão de não somente saber, mas também de ter influência prática, isto é, à pretensão de promover, enquanto “ciência do bem no âmbito da vida humana”, esse mesmo bem. Para nós, isso é algo óbvio também nas ciências poiéticas, as chamadas technai. Essas “artes”, nas quais o uso é o decisivo. No caso da ética política, a coisa é diferente e, sem dúvida, é quase impossível renunciar a essa pretensão prática. É por isso que se manteve definitivamente até nossos dias. A ética não se limita a descrever as normas vigentes, mas busca fundamentar sua validez e ou introduzir normas mais justas. Esse passou a ser um verdadeiro problema, ao menos desde a crítica de Rousseau ao orgulho racional do Iluminismo. Como a “ciência filosófica das coisas morais” pode legitimar seu direito à existência se a incorruptibilidade da consciência moral natural pode na verdade conhecer e escolher o bem e o dever com uma precisão insuperável e com a mais apurada sensibilidade? Aqui certamente não é o lugar para analisar mais amplamente como, frente a esse desafio de Rousseau, Kant fundamentou a tarefa da filosofia moral. Tampouco é possível explicar como Aristóteles (305) coloca e resolve o mesmo problema sublinhando as condições especiais que encontra o aprendiz capaz de receber de modo razoável uma instrução teórica sobre o “bem prático”. A FILOSOFIA PRÁTICA é aqui somente um exemplo de uma tradição desse saber que não se ajusta ao conceito moderno de método. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
A concepção da FILOSOFIA PRÁTICA baseia-se de fato na crítica aristotélica à ideia do bem de Platão. Mas uma análise mais atenta, como tentei demonstrar numa investigação já concluída, irá descobrir que a questão do bem se coloca como se fosse a realização suprema daquela mesma ideia do saber que perseguem as technai e as ciências em suas esferas respectivas. Mas essa questão não se materializa realmente numa ciência suprema que se possa aprender. Esse objeto supremo de aprendizagem que é o bem (to agathon) aparece sempre no elencos socrático com uma função negativa de demonstração. Sócrates nega que as technai constituam um verdadeiro saber. Seu saber específico é a docta ignorantia e se chama, não por acaso, dialética. Só sabe realmente aquele que consegue ir até o fim do discurso e da resposta. Assim também quanto à retórica, esta só poderá ser techne ou ciência na medida em que se tornar dialética. Só pode falar realmente com autoridade aquele que conheceu como bom e justo aquilo que ele deve comunicar de modo convincente, podendo portanto responsabilizar-se por isso. Mas esse saber do bem e essa capacidade retórica não designam um saber geral “do bem”, mas o saber daquilo que deve ser aqui e agora objeto de persuasão. Mas deve saber igualmente o modo de fazer isso e frente a quem deve fazê-lo. É só quando se conhece a situação concreta exigida pelo saber a respeito do bem que se pode compreender por que a arte de escrever discursos desempenha essa função na argumentação mais ampla. Escrever discursos (307) também pode ser uma arte. É o que reconhece expressamente Platão com sua virada conciliadora rumo a Isócrates. Mas alguém só poderá adquirir essa arte se, além da debilidade da palavra falada, conhecer também a debilidade de todo escrito, podendo assim vir em seu auxílio, como o dialético que sustenta o discurso socorre a debilidade de todo discurso. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Sobre esse fundo é preciso ver a distinção entre filosofia teórica, FILOSOFIA PRÁTICA e filosofia poiética, que se inicia em Aristóteles e deve determinar o grau teórico-científico de sua FILOSOFIA PRÁTICA. (308) O destaque dialético que Platão confere à retórica no Filebo é um bom indicador. A retórica é inseparável da dialética; a persuasão, que é um convencer, é inseparável do conhecimento da verdade. Assim mesmo, a compreensão deve ser concebida a partir do saber. E uma capacidade de aprendizagem, e isso o sublinha ainda Aristóteles quando trata da synesis. Pois bem, o verdadeiro orador dialético, tanto quanto o estadista e qualquer um que busque conduzir sua própria vida, persegue “o bem”. Mas o bem não se apresenta como um ergon, produzido pelo fazer, mas como praxis e eupraxia (quer dizer, como energeia). Nessa linha, a política aristotélica não trata a educação como uma filosofia poiética, embora tenha de “fazer” bons cidadãos. Trata-a, antes, como teoria das formas de constituição enquanto FILOSOFIA PRÁTICA. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Decerto, a ideia aristotélica de uma FILOSOFIA PRÁTICA não sobreviveu em sua globalidade, mas apenas em seu aspecto político. A FILOSOFIA PRÁTICA política foi se aproximando do conceito de uma técnica ao pretender oferecer uma espécie de competência de base filosófica ao serviço da razão legisladora. Esse esquema pôde integrar-se ainda, durante um período, no pensamento científico da época moderna. A filosofia moral grega, ao contrário, marcou a posteridade e sobretudo a Idade Moderna não tanto em sua forma aristotélica mas em sua versão estoica. Mesmo assim, a retórica de Aristóteles exerceu pouca influência na tradição da retórica antiga. Para os mestres da retórica e como guia para uma oratória perfeita era demasiado filosófica. Mas justamente em virtude de seu “caráter filosófico”, que a associava, como disse Aristóteles, à dialética e à ética (peri ta ethe pragmateia, Theet. 1356 a26), encontrou seu novo momento na época do humanismo e da Reforma. Interessa-nos conhecer aqui o uso que os reformadores e sobretudo Melanchton fizeram da retórica aristotélica. Essa passou da arte de “fazer” discursos para a arte de acompanhar um discurso, compreendendo-o, quer dizer, passou para a arte da hermenêutica. Aqui confluíram duas correntes: A nova escrita e a nova leitura, iniciadas com a invenção da imprensa, e a virada teológica da Reforma frente à tradição e na direção do princípio bíblico. O lugar central da Sagrada Escritura para o anúncio do Evangelho determinou sua tradução para as línguas vernáculas, e também a doutrina do sacerdócio geral suscitou um uso da Escritura que precisava de uma nova direção. Pois, quando os leitores da Sagrada Escritura eram leigos, já não se tratava de pessoas instruídas na leitura por tradições artesanais de certas profissões nem dispunham de preleções discursivas que lhes facilitassem a compreensão. O leitor não encontra ajuda na impressionante retórica do jurista nem na do pastor de almas, nem na do literato. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Independentemente de toda codificação, a tarefa de busca do direito e do juízo correto implica uma inevitável tensão, já analisada por Aristóteles: a tensão entre a universalidade da legislação vigente — codificada ou não — e a particularidade do caso concreto. É evidente que o caso concreto numa questão jurídica não é um enunciado teórico, mas um “resolver coisas com palavras”. A aplicação da lei pressupõe sempre uma interpretação correta. Cabe afirmar, nesse sentido, que toda aplicação de uma lei ultrapassa a mera compreensão de seu sentido jurídico e cria uma nova realidade. Acontece o mesmo com as artes reprodutivas, nas quais se transcende a obra dada, sejam notas musicais ou um texto dramático, à medida que a interpretação cria e estabelece novas realidades. Mas nas artes reprodutivas podemos afirmar que cada representação se baseia numa determinada interpretação da obra dada. Faz sentido distinguir e afirmar o grau de adequação que oferecem essas representações entre as numerosas interpretações possíveis. Isso implica que, ao menos no teatro literário e no caso da música, a própria representação em sua definição ideal não é uma mera representação, mas interpretação. É por isso que, especialmente no caso da música, falamos de interpretação de uma obra pelo executante. Creio que a aplicação da lei num caso particular implica, de modo análogo, um ato interpretativo. Mas isso significa que toda aplicação de disposições legais que aparece como correta concretiza e aprimora o sentido de uma lei. Parece-me que Max Weber tem razão quando diz: “Só os profetas adotaram uma atitude criativa, isto é, geradora de um novo direito frente ao direito vigente. No mais, não se trata de um elemento especificamente moderno, mas justamente o que caracteriza as práxis jurídicas maximamente ‘criativas’, do ponto de vista objetivo, é o fato de se apresentarem subjetivamente como meros fragmentos orais — mesmo que eventualmente latentes — de normas já vigentes; de se apresentarem como seus intérpretes e aplicadores e não como seus criadores”. Isso corresponde à antiga sabedoria aristotélica segundo a qual a busca do direito precisa da constante ponderação complementar da equidade. Essa sabedoria reza que a perspectiva da equidade não se opõe ao direito, mas contribui para a plenitude do sentido legal, (311) mediante a atenuação da literalidade do direito. O fato de esses velhos problemas de busca de direito no princípio da era moderna se agudizarem com a recepção do direito romano, ao questionarem-se certas formas tradicionais de jurisprudência com o novo direito de jurisconsultos, deu uma relevância especial à hermenêutica jurídica como teoria da interpretação. A defesa da aequitas ocupa um amplo espaço no debate do primeiro período da época moderna desde Budeus até Vico. Pode-se afirmar inclusive que o conhecimento do direito pelo jurista continua a chamar-se com boas razões de “jurisprudência”, literalmente “prudência jurídica”. Essa palavra recorda ainda o legado da FILOSOFIA PRÁTICA, que considerava a prudentia como a virtude suprema de uma racionalidade prática. O fato de a expressão “ciência do direito” ter prevalecido no final do século XIX indica a perda da ideia de uma peculiaridade metodológica desse saber jurídico e de sua determinação prática. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Quando partimos da panorâmica do desenvolvimento da hermenêutica moderna e remontamos à tradição aristotélica da FILOSOFIA PRÁTICA e da teoria da arte, é necessário perguntarmos até que ponto a tensão existente em Platão e Aristóteles entre um conceito técnico de ciência e um conceito prático-político, que inclui os fins últimos do ser humano, pode ser útil no terreno da ciência moderna e de sua teoria. No que se refere à hermenêutica, é natural confrontarmos a dissociação entre teoria e praxis — que corresponde ao conceito moderno de ciência teórica e a sua aplicação prático-técnica — com uma ideia do saber que percorreu o caminho inverso, partindo da praxis para alcançar sua conscientização teórica. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Da dupla referência que a hermenêutica mantém com a retórica tradicional e com a FILOSOFIA PRÁTICA de Aristóteles parece desprender-se que o problema da hermenêutica pode experimentar uma clareza muito maior do que seria possível partindo da problemática imanente à metodologia científica atual. É uma tarefa muito árdua determinar o lugar que ocupa uma disciplina como a retórica aristotélica no âmbito da teoria da ciência. Mas temos razões para associá-la à poética e não podemos negar aos dois escritos atribuídos a Aristóteles sua intenção teórica. Não pretendem substituir os manuais técnicos nem promover a arte da palavra e da poesia num sentido técnico. Aristóteles coloca essas artes no mesmo nível que a medicina e a ginástica, que nesse contexto ele qualifica como ciências técnicas. Não foi exatamente em sua “Política”, onde elaborou teoricamente um imenso material sobre o saber político, que Aristóteles ampliou o horizonte de problemas da FILOSOFIA PRÁTICA de tal modo que a questão a respeito da melhor constituição, e assim, uma questão prática, a questão do “bem”, elevou-se acima da variedade das formas de constituição estudadas e analisadas por ele? Como é que a arte da compreensão a que damos o nome de hermenêutica irá encontrar então seu lugar no horizonte do modo de pensar aristotélico? VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Nesse sentido, tenho a impressão de que a palavra grega syne-sis, empregada para designar o compreender e a compreensão, e que costuma aparece no contexto neutro do fenômeno do aprendizado e numa proximidade intercambiável com a palavra grega que designa o aprender (mathesis), no contexto da ética aristotélica representa uma espécie de virtude espiritual. Trata-se sem dúvida de uma definição mais estrita da palavra, também usada por (315) Aristóteles em sentido neutro, que corresponde ao pertinente estreitamento terminológico de techne e phronesis no mesmo contexto. Mas essa palavra possui muitos significados. A palavra “compreensão” aparece ali com o mesmo significado que teve o emprego da palavra “hermenêutica” — mencionado por mim inicialmente — durante o século XVII, significando o conhecimento e a compreensão da alma. Nesse caso, “compreensão” significa uma modificação da racionalidade prática, o julgamento intuitivo das considerações práticas de um outro. Trata-se de algo mais que uma simples compreensão de algo dito. Implica uma espécie de elemento comum que dá sentido à “reunião em conselho”, ao dar e receber um conselho. São apenas os amigos e os que têm intenção amistosa que podem aconselhar. Isso aponta, de fato, para o centro das questões que se ligam com a ideia de FILOSOFIA PRÁTICA. São as implicações morais, na realidade, que se ligam a esse contraponto da racionalidade prática (phronesis). Em sua ética, Aristóteles analisa propriamente as “virtudes”, conceitos normativos que estão sempre sob a pressuposição de validade normativa. A virtude da razão prática não deve ser concebida como uma faculdade neutra que busca encontrar fins justos para meios práticos. Ela está, antes, inseparavelmente ligada ao que Aristóteles chama de ethos. Ethos é para ele a arche, o “fato prévio” que serve como ponto de partida de todo esclarecimento filosófico-prático. É verdade que seu interesse analítico distingue as virtudes éticas e as virtudes dianoéticas, fazendo-as remontar ao que ele chama de duas “partes” da alma racional. Mas o próprio Aristóteles se pergunta o que significam essas duas “partes” da alma e se não devem ser concebidas, antes, como dois aspectos diversos do mesmo fenômeno, como o convexo e o côncavo. Por fim, essas divisões fundamentais em sua análise do que é o bem prático para o ser humano devem ser interpretadas partindo-se do postulado metodológico próprio de sua FILOSOFIA PRÁTICA. Essa filosofia não quer substituir as decisões práticas racionais que deve tomar cada indivíduo em cada situação. Todas as suas descrições tipificantes são entendidas de súbito na direção dessa concreção. Mesmo a célebre análise da estrutura do ponto central que faz a mediação entre os extremos e que parece corresponder às virtudes éticas aristotélicas não passa de uma determinação aberta a muitas significações. Não só que essa significação receba seu conteúdo relativo dos extremos, cujo perfil possui nas convicções e reações morais das pessoas uma determinação muito maior do que o prestigiado ponto intermediário; o que recebe assim uma (316) descrição esquemática é o ethos do spoudaios. O hos dei e o hos ho orthos logos não são subterfúgios frente a uma exigência conceitual mais rigorosa. São as indicações da situação concreta onde a arete alcança sua determinação. A tarefa daquele que possui a phronesis é fornecer essa situação concreta. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Essas reflexões permitem perfilar com precisão a questionada descrição inicial da tarefa da FILOSOFIA PRÁTICA e política. O que Burnet considerou uma adaptação de Aristóteles ao uso de linguagem que faz Platão do termo technesl tem seu verdadeiro fundamento na interferência que existe entre o saber “poiético” da techne e a “FILOSOFIA PRÁTICA” que estuda “o bem” dentro de uma generalidade típica. Essa FILOSOFIA PRÁTICA como tal não é a phronesis. Praxis, prohairesis, techne e methodos aparecem também aqui numa sequência e formam de certo modo um contínuo de transições. Mesmo assim, Aristóteles reflete também sobre o papel que pode desempenhar a politike na vida prática. Compara o postulado dessa pragmática com o ponto que o arqueiro toma como mira quando aponta para o objetivo da caça. Com esse ponto na mira acertará melhor. Isso não significa que a arte do tiro a arco consista somente em apontar para esse ponto. Deve-se dominar, antes, essa arte para poder acertar. Mas o ponto pode ser útil para facilitar a pontaria, para manter a direção do disparo com mais precisão. Aplicando essa imagem à FILOSOFIA PRÁTICA, também aqui devemos partir do princípio de que o ser humano se guia, em suas decisões concretas, de acordo com seu ethos, pela racionalidade prática e para isso não depende das orientações de um mestre. Também aqui a pragmática ética pode oferecer certa ajuda para se evitar conscientemente os erros, fazendo com que a reflexão racional tenha consciência dos objetivos últimos de sua ação. Essa pragmática não se limita a um campo particular. Também não é a aplicação de uma faculdade a um objeto. Pode desenvolver métodos — são regras práticas mais que métodos — e pode converter-se em verdadeira maestria num indivíduo determinado. Mas, apesar disso, não é uma “faculdade” que escolhe cada vez (por conta própria ou a pedido) sua tarefa como uma capacidade técnica. Apresenta-se, antes, como a praxis da vida a apresenta. Assim, a FILOSOFIA PRÁTICA de Aristóteles difere do saber técnico supostamente neutro do especialista, que aborda (317) as tarefas da política e da legislação como um observador distante. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Esse é o ensinamento inequívoco de Aristóteles no capítulo que passa da ética à política. A FILOSOFIA PRÁTICA pressupõe já estarmos conformados pelas ideias normativas nas quais fomos educados e que sustentam a ordem de toda vida social. De modo algum isso significa que essas perspectivas normativas sejam imutáveis, não podendo ser criticadas. A vida social consiste num processo constante de reajuste das vigências existentes. Mas a tentativa de derivar in abstracto as ideias normativas e dar-lhes validade com o pretexto de sua retidão científica não passa de uma ilusão. Trata-se, pois, de um conceito de ciência que não preconiza o ideal do observador distante, mas que impulsiona a conscientização do elemento comum que vincula a todos. Em meus trabalhos, empreguei esse ponto às ciências hermenêuticas, sublinhando a pertença do intérprete ao interpretandum ou ao objeto a ser interpretado. Aquele que busca compreender algo já traz consigo uma antecipação que o liga com o que busca compreender, um consenso de base. Assim, o orador deve ligar-se sempre a essa antecipação se quiser ter sucesso na persuasão e convencimento sobre questões discutidas. Também a compreensão da opinião do outro ou de um texto se realiza dentro de uma relação de consenso, apesar de todos os possíveis mal-entendidos, e busca o entendimento acima de qualquer dissenso. A praxis de uma ciência viva segue essa mesma linha. Essa praxis também não é uma mera aplicação de um saber e de métodos a um objeto qualquer. Só quem adota a perspectiva de uma ciência é que sente a premência das questões. Todo historiador das ciências sabe até que ponto os problemas pessoais, as experiências intelectuais, as necessidades e esperanças de uma época determinam a orientação e o interesse da ciência e da investigação. Mas a antiga pretensão de universalidade atribuída por Platão à retórica se prolonga sobretudo no âmbito das ciências compreensivas, cujo tema universal é o homem imerso nas tradições. Desse modo, pode-se aplicar à hermenêutica a mesma afinidade com a filosofia que representou o resultado provocativo da discussão do Fedro sobre a retórica. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Isso não significa que se menospreze ou se limite o rigor metodológico da ciência moderna. As denominadas “ciências hermenêuticas” ou “ciências do espírito” estão sujeitas aos mesmos critérios (318) de racionalidade crítica que caracteriza o método de todas as ciências, embora seus interesses e procedimentos sejam substancialmente diversos dos que animam as ciências naturais. Mas podem apelar com razão sobretudo para o paradigma da FILOSOFIA PRÁTICA, que em Aristóteles poderia ser chamada também de “política”. Aristóteles classificou essa ciência como “a ciência mais arquitetônica”, uma vez que reunia em si todas as ciências e artes do saber antigo. A própria retórica pertencia a ela. A pretensão universal da hermenêutica consiste assim em ordenar todas as ciências, em captar as chances de êxito cognitivo de todos os métodos científicos, sempre que possam ser aplicados a objetos, e em utilizá-los em todas as suas possibilidades. Mas se a “política”, enquanto FILOSOFIA PRÁTICA, é algo mais que uma técnica suprema, o mesmo podemos dizer da hermenêutica. Tudo que as ciências podem conhecer, a hermenêutica deve levá-lo à relação de consenso, onde todos nós estamos. Uma vez que inclui a contribuição das ciências nessa relação de consenso que nos liga com a tradição legada a nós numa unidade vital, a própria a hermenêutica não é um simples método nem uma série de métodos, como ocorreu no século XIX desde Schleiermacher e Boeckh até Dilthey e Emilio Betti. Nesse período, a hermenêutica se converteu em teoria metodológica das ciências filológicas. A hermenêutica é antes filosofia. Não se limita a prestar conta dos procedimentos que a ciência aplica. Trata igualmente das questões prévias à aplicação de qualquer ciência — como a retórica, tematizada por Platão. Trata-se das questões que determinam todo o saber e o fazer humanos, essas questões “máximas” que são decisivas para o ser humano enquanto tal e para sua escolha do “bem”. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Creio que os problemas da razão prática apresentam-se principalmente com relação a autocompreensão das chamadas ciências do espírito. “Que lugar ocupam as humanities, as “ciências do espírito, no universo das ciências? Tentarei mostrar que a FILOSOFIA PRÁTICA de Aristóteles — e não o conceito moderno de método e de ciência — representa o único modelo viável para formarmos uma ideia adequada das ciências do espírito. Uma breve reflexão histórica pode servir de introdução a essa tese controversa. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Essas observações prévias serviram para dar credibilidade ao significado da FILOSOFIA PRÁTICA de Aristóteles e da tradição despertada por esta. Trata-se, em última instância, de encontrar uma base comum além da retórica e da crítica, além da figura tradicional do saber do homem sobre si mesmo e da investigação científica moderna que degrada tudo em objetividade. Aristóteles desenhou a FILOSOFIA PRÁTICA, que engloba a política, num debate aberto com o ideal da teoria e da filosofia teórica. Elevou, assim, a praxis humana a uma esfera autônoma do saber. “Praxis” designa o conjunto das coisas práticas e portanto toda conduta e toda auto-organização humana nesse mundo, incluindo também a política e dentro dessa a legislação. Essa, a política, é a principal tarefa cuja solução regula e ordena os assuntos humanos; ela é auto-regulação através da “constituição”, no sentido mais amplo de uma vida social e estatal ordenada. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Pois bem, qual é o lugar teórico dessa vontade de saber e da reflexão sobre praxis e política? Aristóteles fala ocasionalmente de uma divisão da “filosofia” em três ramos: filosofia teórica, prática e poética (com essa última legou-nos a conhecida “poética”, nela incluindo também a retórica ou a criação de discursos). Mas entre os extremos do saber e do fazer está a praxis, que é o objeto da FILOSOFIA PRÁTICA. Seu verdadeiro fundamento é o lugar central e o distintivo essencial do ser humano em virtude do qual esse não desenvolve sua vida seguindo a pulsão dos instintos, mas guiando-se pela razão. Por isso, a virtude básica em consonância com a essência do homem, é a racionalidade que guia sua praxis. O grego expressa-a com a palavra phronesis. A pergunta de Aristóteles é a seguinte: em que consiste essa racionalidade prática entre a autoconsciência do cientista e a do especialista, do fautor, do engenheiro, do técnico, do artesão etc. Que relação tem essa virtude da racionalidade com a virtude da cientificidade e a virtude da competência técnica? Mesmo sem conhecer nada de Aristóteles, deve-se reconhecer que essa racionalidade prática possui um lugar relevante. Qual seria nossa posição na vida e como lidaríamos com nossos assuntos se tudo fosse ditado pelo especialista ou se o tecnocrata pudesse dispor de tudo? Nossas decisões éticas e políticas não devem ser as nossas decisões? Mas também é certo que só podemos sentir-nos responsáveis no âmbito político, como o somos em nossa própria vida individual, se deixarmos a decisão nas mãos do político racional e responsável, no qual depositamos nossa confiança. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
(325) A “FILOSOFIA PRÁTICA” de Aristóteles está baseada nessa verdade, personificada por Sócrates. Deve haver uma explicação sobre o postulado dessa racionalidade e responsabilidade que é própria do filósofo, e isso significa que exige o esforço do conceito. Ao lado da teoria e além da paixão do saber que domina tudo e que tem sua base antropológica no fato primordial da curiosidade, devemos compreender que existe e por que existe outro tipo de uso onicompreensivo da razão. Esse uso não consiste numa capacidade que pode ser objeto de aprendizagem ou num conformismo cego, mas numa auto-responsabilidade racional. Pois bem, o pensamento decisivo, válido tanto para as chamadas ciências do espírito como para a “FILOSOFIA PRÁTICA“, é que em ambas a natureza finita do ser humano adquire uma posição decisiva ante a tarefa infinita do saber. Essa é a característica essencial do que chamamos de racionalidade ou do que indicamos ao dizer que alguém é uma pessoa racional, quando este supera a tentação dogmática apegada a todo suposto saber. Por isso, é nas condições de nossa existência finita que devemos buscar o fundamento do que é possível querer, desejar e realizar com nossa própria ação. A fórmula aristotélica para expressá-lo é: o princípio que rege os assuntos práticos é o “que” (dass = o fato de que), o hoti. Não se trata de nenhuma sabedoria secreta. A afirmação de que o princípio é a facticidade só requer a explicação de seu significado no âmbito de uma teoria da ciência. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Uma ciência com pressupostos de conteúdo! Aqui surge, a meu ver, a verdadeira problemática epistemológica sob a qual se encontra a FILOSOFIA PRÁTICA. Aristóteles refletiu sobre isso. Sustentou, por exemplo, que para aprender algo sobre FILOSOFIA PRÁTICA, sobre os conceitos normativos da conduta humana ou sobre as constituições racionais do estado, é preciso já ter recebido uma educação, estar capacitado para a racionalidade. A “participação” precede aqui a “teoria”. São temas que Kant desenvolveu com mais precisão em outro contexto: Como se pode admitir ainda uma teoria e uma filosofia da moral quando descobrimos na racionalidade uma qualidade moral do ser humano que não depende de suas faculdades teóricas? Existe uma célebre nota de Kant em seus diários que diz o (327) seguinte: “Rousseau colocou-me no devido lugar!” Queria dizer com isso: aprendi de Rousseau que o aperfeiçoamento da civilização e o nível da cultura compreensiva não são garantia para o progresso na moralidade humana. Na verdade, sua conhecida filosofia moral repousa precisamente nessa profunda convicção. A autojustificação moral do homem não é uma tarefa da filosofia, mas da própria moralidade. O imperativo categórico de Kant, a que muito se faz referência, limitou-se a formular numa reflexão abstrata o que diz a “auto-responsabilidade prática” de cada um. Isso supõe o reconhecimento de que o saber da razão teórica não pode reclamar nenhum tipo de superioridade sobre a autonomia prática da racionalidade. Desse modo, a própria FILOSOFIA PRÁTICA está subordinada a certas condições práticas. Seu princípio é o “que” (dass); na linguagem kantiana isso se chama o “formalismo” da ética. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Embora elas não queiram dar-se conta disso, o que julgo válido para nossas ciências do espírito é esse ideal da FILOSOFIA PRÁTICA. Não é por acaso que são chamadas de moral sciences. Com isso não estamos indicando um determinado âmbito de objetos, mas o sumo daquilo em que se objetiva a humanidade: seus feitos e sofrimentos, e suas criações duradouras. A universalidade prática, implícita no conceito de racionalidade (e na falta dessa), abarca a todos nós, e de modo total. Por isso pode ser a instância suprema de responsabilidade para o saber teórico, que como tal não conhece limites nas ciências naturais e nas ciências sociais. Essa é a doutrina da FILOSOFIA PRÁTICA de Aristóteles, também chamada por ele de “política”. A correta aplicação de nosso saber e de nosso poder exige a razão. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Contra meus trabalhos intelectuais, Theodor Litt provavelmente objetaria que uma justificação filosófica das ciências do espírito, apoiada no modelo aristotélico de phronesis, deve admitir um a priori que não pode ser simplesmente o resultado de uma universalização empírica. A FILOSOFIA PRÁTICA de Aristóteles se equivocaria se fundamentasse seu princípio no “que” (dass), sem reconhecer que ela própria, enquanto filosofia, como um querer saber teórico, não pode depender de algo que aparece na experiência como um ethos concreto e como uma razão que atua praticamente. Litt atinha-se, pois, à reflexão transcendental que guiara também Husserl e o Heidegger de Ser e tempo. Mas pareceu-me e continua parecendo que esse procedimento, embora justificado frente a uma (329) teoria empirista-indutivista, esquece que essa reflexão encontra seu fundamento e sua limitação na práxis da vida donde provém sempre. Essa constatação impede o acesso a uma reflexão que se aventura num escalonamento idealista até o “espírito”. Creio que a cautela aristotélica e a autolimitação de sua ideia do bem encontram sua justificação na vida humana, e que impõem de maneira justa — quem sabe com Platão — ao pensamento filosófico a vinculação à sua própria finitude. Essa vinculação se impõe no modo como nós experimentamos a finitude, ou seja, dentro de nosso condicionamento histórico. Esse pensamento filosófico, porém, não é de princípio nenhuma mera generalização empirista. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Como se vê, o que está em questão nesse caso não é somente a função da hermenêutica dentro das ciências, mas também a auto-compreensão do homem na idade moderna da ciência. Um dos mais importantes ensinamentos que a história da filosofia oferece a esse problema atual é o papel que a práxis e o seu saber esclarecedor e orientador desempenham na ética e política aristotélicas. É a inteligência prática ou sabedoria, que Aristóteles chamou de phronesis. O livro VI da Ética aNicômaco continua sendo a melhor introdução a esta problemática tão batida. Sobre essa questão gostaria de remeter também a um novo trabalho, o meu “Hermeneutik und praktische Philosophie”, que pode ser encontrado no volume organizado por M. Riedel, Zur Reabilitierung der praktischen Philosophie (Para a reabilitação da FILOSOFIA PRÁTICA). Aquilo que se apresenta sob o grande pano de fundo da tradição da FILOSOFIA PRÁTICA (e política), que vai desde Aristóteles até as soleiras do século XIX, do ponto de vista filosófico é a autonomia da contribuição cognitiva que consiste na relação com a práxis. Aqui o particular concreto não representa apenas o ponto de partida, mas também um momento sempre determinante para o conteúdo do universal. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
Esse retorno à tradição da FILOSOFIA PRÁTICA pode ajudar-nos na proteção frente à obviedade e naturalidade técnica do conceito moderno de ciência. Mas isso não esgota a minha intenção filosófica. (456) No diálogo hermenêutico em que nos encontramos, sinto que essa intenção filosófica não foi suficientemente levada em consideração. O conceito de jogo, que já há décadas eu deslocara da esfera subjetiva do “instinto de jogo” (Schiller), utilizando-o na crítica da “distinção estética”, implica um problema ontológico. Isso porque nesse conceito conjugam-se tanto o jogo recíproco de acontecer e compreender quanto os jogos de linguagem de nossa experiência de mundo em geral, tal como foram tematizados por Wittgenstein na intenção de criticar a metafísica. Mas o questionamento que eu faço só poderá apresentar-se como uma “ontologização” da linguagem aos olhos de quem deixar de questionar os pressupostos da instrumentalização da linguagem em geral. O que a experiência hermenêutica nos propõe é, na verdade, um problema filosófico, a saber, descobrir as implicações ontológicas inerentes ao conceito “técnico” de ciência e fomentar o reconhecimento teórico da experiência hermenêutica. Nesse sentido, o diálogo filosófico deve vir primeiro, não para renovar um platonismo, mas para renovar um diálogo com Platão, cujo questionamento ultrapasse os conceitos fixos da metafísica e sua inadvertida sobrevivência. Como reconhece muito bem Wiehl, as Fussnoten zu Plato (notas de pé de página a Platão) de Whitehead poderiam ser importantes para essa tarefa (cf. sua introdução à edição alemã do Adventures ofldeas, de Whitehead). Em todo caso, era minha intenção conjugar a dimensão da hermenêutica filosófica com a dialética platônica, e não com a hegeliana. O III volume de meus Kleine Schriften mostra, já no título, qual o tema do livro: Idee und Sprache (Ideia e linguagem). Toda honra seja dada à investigação moderna da linguagem. No entanto, a auto-evidência técnica da ciência moderna está privando-a da dimensão hermenêutica e da tarefa filosófica nela implicada. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
Outras contribuições: H. Robert Jauss, Literaturgeschichte als Provokation (A história da literatura como provocação, 1970); Leo Pollmann, Theorie der Literatur (Teoria da literatura, 1971); Harth, Philologie und praktische Philosophie (Filologia e FILOSOFIA PRÁTICA, 1970). VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
Trata-se na verdade de um antigo problema que conhecemos desde Platão. A todos os que presumiam saber, políticos, poetas e especialistas em seu ofício artesanal, Sócrates buscou convencer de que no fundo desconheciam o “bem”. Aristóteles estabeleceu a distinção estrutural subjacente aqui, diferenciando entre techne e phronesis. Isso é indiscutível. Mesmo que essa distinção possa ser mal-compreendida e o apelo à “consciência” possa muitas vezes encobrir dependências ideológicas camufladas, a pretensão de reconhecer o que são a razão e a racionalidade unicamente na ciência anônima e como ciência torna-se um mal-entendido. Assim, minha própria teoria hermenêutica convenceu-me da necessidade de recuperar esse legado socrático de uma “sabedoria humana”, que em comparação com a infalibilidade quase divina do saber científico se converte num não-saber. A “FILOSOFIA PRÁTICA” elaborada por Aristóteles pode servir-nos de modelo. Trata-se da segunda linha de tradição que convém renovar. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
A meu ver, o programa aristotélico de uma ciência prática é o único modelo de teoria da ciência a partir donde se pode conceber as ciências “da compreensão”. A reflexão hermenêutica sobre as condições da compreensão põe de manifesto que suas possibilidades se articulam em uma reflexão formulada dentro da linguagem, que (500) nunca começa do zero e não pode ser esgotada. Aristóteles mostra que a razão prática e o conhecimento prático não podem ser ensinados como a ciência. Eles só são possíveis na praxis, o que significa, na vinculação interna ao ethos. Convém não esquecer esse ponto. O modelo da FILOSOFIA PRÁTICA deve ocupar o lugar dessa theoria, cuja legitimação ontológica só poderia ser encontrada em um intellectus infinitus, do qual nossa experiência existencial nada sabe sem apoio numa revelação. Esse modelo também deve ser contraposto a todos aqueles que subordinam a racionalidade humana à ideia metodológica da ciência “anônima”. Frente ao aperfeiçoamento da autocompreensão lógica da ciência, essa parece-me ser a verdadeira tarefa da filosofia, inclusive e justamente frente à significação prática da ciência para nossa vida e sobrevivência. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Mas a “FILOSOFIA PRÁTICA” significa algo mais que um simples modelo metodológico para as ciências “hermenêuticas”. Torna-se também seu fundamento real. A peculiaridade metodológica da FILOSOFIA PRÁTICA não passa da consequência natural extraída da “racionalidade prática” elaborada por Aristóteles em sua especificidade conceitual. Não é possível compreender sua estrutura a partir do conceito de ciência moderna. Mesmo a fluidificação dialética que Hegel deu aos conceitos tradicionais, e que renovou muitas verdades da “FILOSOFIA PRÁTICA“, corre o risco de induzir a um novo dogmatismo velado da reflexão. O conceito de reflexão subjacente na crítica da ideologia implica com efeito um conceito abstrato de discurso livre que perde de vista as verdadeiras condições da práxis humana. Eu tive que recusar essa ideia como uma extrapolação ilegítima da situação terapêutica da psicanálise. No terreno da razão prática, não há analogia para o analista “consciente” que dirige a produção reflexiva do analisando. Na questão da reflexão, a distinção de Brentano, inspirada em Aristóteles, entre interioridade reflexiva e reflexão objetivante, me parece superior ao legado do idealismo alemão. A meu ver, isso se aplica também ao postulado da reflexão transcendental que Apel e outros aplicam à hermenêutica. Isso aparece perfeitamente documentado no difundido volume Hermeneutik und Ideologiekritik (Suhrkamp). VERDADE E METODO II ANEXOS 30.