Sob esse aspecto, o problema da linguagem não nos é colocado, desde o princípio, no mesmo sentido em que é apresentado na FILOSOFIA DA LINGUAGEM. É verdade que a multiplicidade das línguas, por cuja diversidade a ciência linguística se interessa, nos coloca também uma pergunta. Mas essa é unicamente a de como pode estar cada língua em condições de dizer tudo o que queira, apesar de sua diversidade com respeito às demais línguas. A linguística nos ensina que cada língua realiza isso à sua maneira. Nós, de nossa parte, colocamos a questão de como atua em todas as partes a mesma unidade de pensar e falar dentro da multiplicidade dessas maneiras de falar, e tal que, em princípio, qualquer tradição escrita possa ser entendida. Nos interessamos, pois, pelo contrário, por aquilo que a ciência da linguagem tenta investigar. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
A pergunta que nos guia é, pois, a da conceitualidade de toda compreensão. Somente na aparência se trata de um questionamento secundário. Já vimos que a interpretação conceitual é a maneira de se realizar a própria experiência hermenêutica. Esta é a razão pela qual o problema que nos colocamos agora é tão difícil. O intérprete não sabe que em sua interpretação traz consigo a si mesmo, com seus próprios conceitos. A formulação linguística é tão inerente à opinião do intérprete, que não se torna objetiva para ele em nenhum caso. Por isso, é compreensível que esse aspecto da realização hermenêutica fique completamente despercebido. Mas a isso se acrescenta, de modo especial, que esse conjunto de fatos tenha sido desvirtuado amplamente por teorias linguísticas inadequadas. É claro que uma teoria instrumentalista dos signos, que entenda as palavras e os conceitos como instrumentos disponíveis ou que se tem de pôr à disposição, fica aquém do fenômeno hermenêutico. Se nos ativermos ao que ocorre na palavra e na fala e sobretudo em qualquer conversação com a tradição, levada a cabo pelas ciências do espírito, teremos que reconhecer que em tudo isso se produz uma continuada formação de conceitos. Isto não quer dizer que o intérprete faça uso de palavras novas ou insólitas. Mas o uso das palavras habituais não tem sua origem num ato de subsunção lógica pelo fato de que algo individual é submetido à generalidade do conceito. Recordaremos, pelo contrário, que a compreensão traz em si sempre um momento de aplicação e leva a cabo, desse modo, um constante e progressivo desenvolvimento da formação dos conceitos. E algo que temos de ter presente também agora, se quisermos que a linguisticidade própria da compreensão se liberte do domínio da chamada FILOSOFIA DA LINGUAGEM. O intérprete não se serve das palavras e dos conceitos como o artesão que apanha e deixa de lado suas ferramentas. É forçoso reconhecer, antes, que toda compreensão está intimamente penetrada pelo conceitual e rechaçar qualquer teoria que se negue a aceitar a unidade interna de palavra e coisa. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
Pois bem, a situação é ainda mais complicada. O que se questiona é se o conceito de linguagem, de que partem a moderna ciência e FILOSOFIA DA LINGUAGEM, faz, na realidade, justiça ao estado da questão. Nos últimos tempos os cientistas da linguagem impuseram a ideia, e com razão, de que o conceito moderno da linguagem pressupõe uma consciência da linguagem que é, por sua vez, um resultado histórico e que não pode ser aplicado para o começo do processo histórico, em particular para o que a linguagem era entre os gregos. O caminho iria desde a completa inconsciência linguística, própria do (408) classicismo grego, até a desvalorização instrumentalista da linguagem na idade moderna. E esse processo de conscientização, que encerra em si, ao mesmo tempo, uma modificação do comportamento linguístico, seria o único a possibilitar à “linguagem”, como tal, isto é, segundo sua forma, alcançar uma atenção autônoma independentemente de todo conteúdo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
Pode-se duvidar de que essa seja uma caracterização correta da relação entre comportamento e teoria linguísticos. O que, por outro lado, é inquestionável é que tanto a ciência como a FILOSOFIA DA LINGUAGEM trabalham com base na premissa de que seu único tema é a forma da linguagem. Mas será que o conceito de forma está em ordem, nesse posicionamento? Será que a linguagem é uma forma simbólica, como a chamou Cassirer? Com isso, faz-se justiça à sua peculiaridade única, que consiste em que a linguisticidade abranja, por sua vez, todas as outras coisas que Cassirer chama de formas simbólicas, mito, arte, direito etc.? VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
Mas também o limite da teoria da semelhança é claro: não se pode criticar a linguagem por referência às coisas, no sentido de que as palavras não as reproduziram corretamente. A linguagem não está aí como um simples instrumento de que lançamos mão, ou que construímos para nós, com o fim de comunicar e fazer distinções com ele. Ambas as interpretações das palavras partem de sua existência e de sua manualidade e deixam estar as coisas como o que é conhecido de antemão. Justamente por isso, elas já de antemão começam demasiado tarde. Teríamos de nos perguntar se Platão, ao mostrar a insustentabilidade interna dessas duas posições extremas, procura na realidade questionar um pressuposto que lhes seja comum. (411) Na minha opinião, a intenção de Platão é muito clara, e creio que nunca se poderá acentuar isto suficientemente, face à interminável usurpação de Crátilo a favor dos problemas sistemáticos da FILOSOFIA DA LINGUAGEM: com essa discussão das teorias linguísticas contemporâneas, Platão pretende mostrar que na linguagem, na pretensão da correctura linguística (orthotes ton onomaton), não se pode alcançar nenhuma verdade pautada na coisa (aletheia ton onton), e o ente tem de ser conhecido sem as palavras (aneu ton onomaton), puramente a partir dele mesmo (auto ex eauton) (Crátilo, 438a-439b). Com isso se desloca radicalmente o problema para um novo nível. A dialética, a que aponta esse contexto, pretende evidentemente confiar o pensamento a si mesmo e a seus verdadeiros objetos (Gegenstände), abrindoas “ideias”, de maneira tal que, com isso, se supere o poder das palavras (dynamis ton onomaton) e sua tecnificação demoníaca na arte da argumentação sofística. A superação do âmbito das palavras (onomata), pela dialética não quer dizer, obviamente, que exista realmente um conhecimento isento de palavras, mas, unicamente, que o que abre o acesso à verdade não é a palavra, mas pelo contrário: que a “adequação” da palavra só se poderia julgar a partir do conhecimento das coisas. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
O fato de que o latim medieval não dedique sua atenção a esse aspecto do problema da linguagem, apesar do significado que se empresta na Bíblia à confusão das línguas humanas, pode ser explicado sobretudo como consequência do domínio natural e evidente do latim erudito, assim como da persistência da doutrina grega do logos. Somente no Renascimento, quando os leigos ganham importância e as línguas nacionais abrem passo na formação erudita, chegam a desenvolver-se ideias fecundas sobre a relação entre aquelas e a palavra interior, ou os vocábulos “naturais”. Seja como for, temos de nos precaver de pressupor nisso diretamente o questionamento da moderna FILOSOFIA DA LINGUAGEM e seu conceito instrumental desta. O significado da primeira erupção do problema linguístico no Renascimento se estriba, antes, em que nesse momento, continua sendo válida, de maneira impensada e normal, toda a herança greco-cristã. Isso torna-se muito claro em Nicolau de Cusa. Os conceitos que se subordinam às palavras mantêm, como desenvolvimento da unidade do espírito, uma referência com a palavra natural (vocabulum naturale), cujo reflexo aparece em todos eles (relucet), por mais que cada denominação individual seja arbitrária (impositio nominis fit ad beneplacitum). Podemos nos perguntar que classe de relação é esta e em que consiste essa palavra natural. No entanto, a ideia de que cada palavra de uma língua possui, em última análise, uma coincidência com as de outras línguas, na medida em que todas as línguas são desenvolvimentos da unidade única do espírito, tem um sentido metodologicamente correto. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Não obstante, se se quer fazer realmente justiça a W. Humboldt, o criador da moderna FILOSOFIA DA LINGUAGEM, convirá proteger-nos da excessiva ressonância produzida pela investigação linguística comparada e pela psicologia dos povos, às quais ele próprio abriu o caminho. Em Humboldt, no entanto, o problema da “verdade da palavra” ainda não está completamente deslocado. Quando Humboldt investiga a multiplicidade da estrutura da linguagem humana não o faz somente para penetrar na peculiaridade individual dos povos, por vias desse campo acessível da expressão humana. O seu interesse pela individualidade, assim como o de seus contemporâneos, não deve ser compreendido, em absoluto, como um desvio da generalidade do conceito. Pelo contrário, para ele existe um nexo indissolúvel entre individualidade e natureza comum. Com o sentimento da individualidade está sempre dada uma intuição de uma totalidade, e por isso o aprofundamento na individualidade dos fenômenos linguísticos se entende, por sua vez, como um caminho para compreender o todo da constituição linguística humana. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Dessa forma, também a herança cristã da metafísica grega, a escolástica medieval, concebe a palavra a partir da species, como sua perfeição, sem compreender o mistério de sua encarnação. A experiência de mundo que se dá na linguagem e que orientou originariamente o pensamento metafísico acaba tornando-se algo secundário e contingente. Através de convenções próprias da linguagem, ela esquematiza o olhar pensante que se dirige às coisas, fechando-lhe o acesso à experiência originária do ser. Na verdade, porém, é ao caráter de linguagem da experiência de mundo que se esconde por trás da aparência de prioridade das coisas frente à sua manifestação na linguagem. É sobretudo a suposta possibilidade de objetivação universal de tudo e de todos que se apoia na ideia da universalidade da linguagem, e que através dessa suposição se coloca na penumbra. À medida que a linguagem — pelo menos na família das línguas indo-germânicas — dispõe da possibilidade de estender a função nominativa geral a qualquer parte da oração e transformar tudo em sujeito para outras sentenças possíveis, ela erige a aparência universal de coisificação, que acaba degradando a própria linguagem a um mero meio de entendimento. Por mais que procure descobrir os desvios verbais pela elaboração de sistemas de signos artificiais, nem mesmo a moderna analítica da linguagem é capaz de questionar o pressuposto fundamental desta objetivação. Ensina, ao contrário, e apenas pela sua (74) autolimitação, que enquanto todos esses sistemas pressuporem a linguagem natural, nenhuma liberação real pode se realizar, a partir do âmbito da linguagem, mediante a introdução de sistemas de signos artificiais. Assim como a clássica FILOSOFIA DA LINGUAGEM constatou que a questão da origem da linguagem é uma questão insustentável, também a reflexão sobre a ideia de uma linguagem artificial levou à auto-suspensão dessa ideia e com isso à legitimação das linguagens naturais. Mas, via de regra, o que isso implica permanece impensado. Sabe-se, por certo, que as línguas têm sua realidade, em geral, lá onde são faladas, isto é, onde as pessoas logram entender-se entre si. Mas que tipo de ser é este que convém à linguagem? Aquele de um meio de entendimento? Parece-me que, ao desvincular o conceito da syntheke do seu sentido ingênuo de “convenção”, Aristóteles já havia chamado a atenção para o verdadeiro caráter ontológico da linguagem. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6.
A fundação da FILOSOFIA DA LINGUAGEM e da ciência da linguagem por Wilhelm von Humboldt não representou, contudo, uma autêntica restauração da visão aristotélica. Como seu objeto de investigação eram os idiomas dos povos, abriu-se um caminho de conhecimento que pôde esclarecer de maneira nova e fecunda a diversidade dos povos e dos tempos e a essência humana comum a eles subjacente. Mas o que definiu aqui o horizonte da pergunta pelo homem e pela linguagem foi apenas admitir no homem uma (148) faculdade e esclarecer o regimento estrutural dessa faculdade — que chamamos de gramática, sintaxe, vocabulário da linguagem. No espelho da linguagem, podiam se reconhecer as cosmovisões dos povos, conhecer detalhadamente a estrutura de sua cultura — um bom exemplo é o conhecimento do estágio cultural da constituição dos povos indogermánicos, que devemos às excelentes investigações de Viktor Hehns sobre plantas de cultivo e animais domésticos. A ciência da linguagem, como qualquer outra pré-história, representa a pré-história do espírito humano. Mesmo assim, nesse modo de pensar, o fenômeno da linguagem só adquire o significado de um campo de expressão eminente, no qual é possível estudar a essência do homem e sua evolução na história. Por essa via, no entanto, não é possível penetrar nos postulados centrais do pensamento filosófico. Isso porque no pano de fundo de todo pensamento moderno encontrava-se ainda a definição cartesiana de consciência como autoconsciência. Esse inabalável fundamento de toda certeza, o mais certo de todos os fatos, o fato de que conheço a mim mesmo, tornou-se no pensamento da modernidade o parâmetro para tudo que quisesse satisfazer ao postulado de conhecimento científico. Também a investigação científica da linguagem acabou apoiando-se no mesmo fundamento. Tratava-se da espontaneidade do sujeito, a qual possui uma de suas formas de confirmação na energia que forma a linguagem. Por mais fecunda que pudesse ser a interpretação dessa cosmovisão subjacente aos idiomas, feita a partir desse princípio, não é possível entrever o enigma que a linguagem propõe ao pensamento humano. Pois a essência da linguagem comporta igualmente uma inconsciência abissal da mesma. Nesse sentido, a caracterização do conceito de linguagem não é um resultado fortuito e a posteriori. A palavra logos não significa apenas pensamento e linguagem, mas também conceito e lei. A cunhagem do conceito de linguagem pressupõe uma consciência de linguagem. Mas isso é apenas o resultado de um movimento reflexivo, no qual o sujeito pensante reflete a partir da realização inconsciente da linguagem, colocado a uma distância de si próprio. O verdadeiro enigma da linguagem, porém, é que isso jamais se deixa alcançar plenamente. Todo pensar sobre a linguagem, pelo contrário, já foi sempre alcançado pela linguagem. Só podemos pensar dentro de uma linguagem e é justamente o fato de que nosso pensamento habita a linguagem que constitui o enigma profundo que a linguagem propõe ao pensar. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 11.
Isso não significa de imediato o mero retorno às experiências do mundo da vida e a sua sedimentação na linguagem, que (338) conhecemos como fio condutor da metafísica grega e cuja análise lógica levou à lógica aristotélica e à grammatica speculativa. Agora interessa-nos menos sua contribuição lógica, do que a linguagem enquanto linguagem e sua estrutura de acesso ao mundo como tal. Com isso, deslocam-se as perspectivas originais. Dentro da tradição alemã, isso significou uma retomada de ideias românticas — de Schlegel, Humboldt etc. Nem os neokantianos nem os fenomenólogos da primeira hora deram a devida atenção ao problema da linguagem. Foi somente numa segunda geração que se abordou como tema o mundo intermediário da linguagem; é o caso de Ernst Cas-sirer e sobretudo de Martin Heidegger, seguido principalmente por Hans Lipps. Na região anglo-saxônica ocorreu algo similar com Wittgenstein, tomando como ponto de partida o pensamento de Russell. O que buscamos agora não é tanto uma FILOSOFIA DA LINGUAGEM, baseada nas ciências de linguagem comparadas, nem o ideal de uma construção da linguagem que se insere numa semiótica geral. Perguntamos, antes, pela enigmática relação que existe entre o pensar e o falar. VERDADE E METODO II OUTROS 24.