Gadamer (VM): experiência hermenêutica

As pesquisas a seguir, portanto, iniciam-se com uma crítica da consciência estética, a fim de defenderem a experiência da verdade, que nos é proporcionada pela obra de arte, contra a teoria estética, que se deixa limitar pelo conceito de verdade da ciência. Elas, porém, não se contentam somente com a justificação da verdade da arte. Antes, procuram, desse ponto de partida, um conceito de conhecimento e de verdade, que corresponde ao todo de nossa experiência hermenêutica. Tal como na experiência da arte temos de nos haver com verdades que suplantam fundamentalmente o âmbito do conhecimento metódico, algo semelhante vale para o todo das ciências filosóficas, nas quais nossa tradição histórica, em todas as suas formas, é transformada ém objeto de pesquisa, e acaba, porém e ao mesmo tempo, ela mesma manifestando-se em sua verdade. A experiência da tradição histórica vai fundamentalmente além do que nela é possível ser pesquisado. Ela não mostra apenas no sentido de verdade ou inverdade, sobre o que decide a crítica histórica — transmite sempre a verdade, da qual urge em parte tirar proveito. 13 VERDADE E MÉTODO Introdução

O empenho filosófico de nosso tempo se diferencia da clássica tradição da filosofia pelo fato de não representar nenhuma continuação imediata e ininterrupta dessa última. Por maior que seja a comunhão com sua origem histórica, a filosofia está hoje consciente de seu distanciamento com relação aos seus modelos clássicos. Isso caracteriza-se sobretudo na sua relação, alterada, com o conceito. Por mais graves que tenham sido as consequências e por mais profundas que tenham sido as transformações do pensamento filosófico ocidental, as quais surgiram nas línguas modernas com a latinização dos conceitos gregos e a uniformização da linguagem conceitual latina, o surgimento da consciência histórica nos últimos séculos significa uma censura de uma forma ainda mais profunda. Desde então a continuidade da tradição de pensamento do Ocidente vigora apenas e ainda de uma forma fragmentada. Pois perdeu-se a inocência ingênua, com a qual a gente tornava os conceitos da tradição úteis para os próprios pensamentos. Desde então, para a ciência, suas relações para com tais conceitos tornaram-se um estranho descomprometimento, quer suas relações com esses conceitos sejam da espécie de uma concepção erudita, para não dizer arcaizante, ou da espécie de uma manipulação técnica, que faz dos conceitos algo como ferramentas. Ambos não conseguem, na verdade, satisfazer à experiência hermenêutica. A conceptualidade em que se desdobra o filosofar, antes, já sempre nos tomou da mesma forma pela qual a linguagem em que vivemos nos convoca. Assim, dessa conscienciosidade do pensamento, faz parte o ato de se conscientizar desse preconceito. É uma consciência nova e crítica, que desde então vem acompanhando todo o filosofar responsável e que os costumes linguísticos e de pensamento, que se formam para o indivíduo, na comunicação com o seu mundo circundante, colocam diante do fórum da tradição histórica, da qual todos nós fazemos parte. 21 VERDADE E MÉTODO Introdução

(270) Os traços fundamentais de uma teoria da experiência hermenêutica 1452 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Assim, teremos de nos perguntar se a nossa própria tentativa de uma hermenêutica histórica pode ser também alvo desta mesma crítica ou se conseguimos nos manter livres da pretensão metafísica da filosofia da reflexão e justificar a legitimidade da experiência hermenêutica, concordando com a poderosa crítica histórica dos neo-hegelianos contra Hegel. 1871 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

2.3.2. O conceito da experiência e a essência da experiência hermenêutica 1891 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A verdadeira experiência é aquela na qual o homem se torna consciente de sua finitude. Nela, o poder fazer e a autoconsciência de uma razão planificadora encontra seu limite. Mostra-se como pura ficção a ideia de que se pode dar marcha-a-ré a tudo, de que sempre há tempo para tudo e de que, de um modo ou de outro, tudo retorna. Quem está e atua na história faz constantemente a experiência de que nada retorna. Reconhecer o que é não quer dizer aqui conhecer o que há num momento, mas perceber os limites dentro dos quais ainda há possibilidade de futuro para as expectativas e os planos: ou, mais fundamentalmente, que toda expectativa e toda planificação dos seres finitos é, por sua vez, finita e limitada. A verdadeira experiência é assim experiência da própria historicidade. Com isso a discussão do conceito de experiência alcança um resultado que será particularmente fecundo para a nossa pergunta acerca do modo de ser da consciência da história efeitual. Como autêntica forma de experiência terá que refletir a estrutura geral da experiência. Assim, teremos de buscar na experiência hermenêutica os momentos que antes tínhamos distinguido na análise da experiência. 1951 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A experiência hermenêutica tem a ver com a tradição. E esta que deve chegar à experiência. Todavia, a tradição não é simplesmente um acontecer que se pode conhecer e dominar pela experiência, mas é linguagem, isto é, fala por si mesma, como faz um tu. O tu não é objeto, mas se comporta em relação ao objeto. Mas isso não deve ser mal-interpretado como se na tradição o que nela chega à experiência se compreendesse como a opinião de outro, que é um tu. Pelo contrário, estamos convencidos de que a compreensão da tradição não entende texto transmitido como a manifestação vital de um tu, mas como um conteúdo de sentido, desvinculado de toda atadura para com os que opinam, para com o eu e o tu. Ao mesmo tempo, o comportamento com relação ao tu e ao sentido da experiência que nele tem lugar tem de poder servir à análise da experiência hermenêutica; pois também a tradição é um verdadeiro companheiro de comunicação, ao qual estamos vinculados como o está o eu e o tu. 1953 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Fica claro que a experiência do tu tem de ser específica, pelo fato de que o tu não é um objeto, mas se comporta ele mesmo com relação a um objeto. Nesse sentido os momentos estruturais da experiência que antes destacamos encontrarão uma modificação. Na medida em que aqui o objeto da experiência tem um mesmo caráter de pessoa, esta experiência é um fenômeno moral, e o é também o saber, adquirido nesta experiência, a compreensão do outro. Por isso perseguiremos agora a modificação que sofre a estrutura da experiência, quando é experiência do tu e quando é experiência hermenêutica. 1955 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Aplicando ao problema hermenêutico a forma de comportamento com relação ao tu e de compreensão do tu, que representa o conhecimento de pessoas, achamos como correlato dele a fé ingênua no método e na objetividade que este proporciona. Aquele que compreende a tradição dessa maneira a converte em objeto, e isso significa que se confronta com ela livremente, sem ver-se afetado, e que adquire certeza com respeito ao seu conteúdo, desconectando metodicamente todos os momentos subjetivos de sua relação para com ela. Já vimos como, desse modo, ele se liberta da sobrevivência da tradição, na qual ele próprio tem sua realidade histórica. Este é o método das ciências sociais correspondente à metodológica do século XVII e sua formulação pragmática por Hume, na realidade um clichê extraído da metodologia natural-científica. Do (35) procedimento efetivo das ciências do espírito toma-se um aspecto parcial, e este reduzido esquematicamente, na medida em que só se reconhece no comportamento humano o que é típico e regular. A essência da experiência hermenêutica fica assim nivelada da mesma maneira que tivemos ocasião de perceber na interpretação teleológica do conceito da indução, desde Aristóteles. 1961 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Este conhecimento e reconhecimento é o que perfaz a terceira e mais elevada maneira da experiência hermenêutica: a abertura à tradição que possui a consciência da história efeitual. Também ela tem um autêntico correlato na experiência do tu. No comportamento dos homens entre si o que importa é, como já vimos, experimentar o tu realmente como um tu, isto é, não passar por alto sua pretensão e deixar-se falar algo por ele. A isso pertence a abertura. Mas, por fim, esta abertura não se dá só para aquele por quem queremos nos deixar falar; antes, aquele que em geral se deixa dizer algo está aberto de maneira fundamental. Se não existe esta mútua abertura, tampouco existe verdadeiro vínculo humano. Pertencer-se uns aos outros quer dizer sempre e ao mesmo tempo poder-ouvir-se-uns-aos-outros. Quando dois se compreendem, isto não quer dizer que um “compreenda” o outro, isto é, que o olhe de cima para baixo. E igualmente, “escutar o outro” não significa simplesmente realizar às cegas o que o outro quer. Ao que é assim se chama submisso. A abertura para o outro implica, pois, o reconhecimento de que devo estar disposto a deixar valer em mim algo contra mim, ainda que não haja nenhum outro que o vá fazer valer contra mim. 1971 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Eis aqui o correlato da experiência hermenêutica. Eu tenho de deixar valer a tradição em suas próprias pretensões, e não no sentido de um mero reconhecimento da alteridade do passado, mas na forma em que ela tenha algo a me dizer. Também isto requer uma forma fundamental de abertura. O que está aberto à tradição desta maneira vê que a consciência histórica não está realmente aberta, mas que, antes, quando lê seus textos “historicamente”, já nivelou prévia e fundamentalmente toda a tradição, e os padrões de seu próprio saber não poderão ser nunca postos em questão por ela. Recordo neste ponto a forma ingênua de comparação, na qual costuma mover-se quase sempre o comportamento histórico. O fragmento 25 do Lyceum de Friedrich Schlegel diz: “Os dois postulados fundamentais da chamada crítica histórica são o postulado da medianidade e o axioma da habitualidade. Postulado da medianidade: tudo o que é verdadeiramente grande, bom e belo é inverossímil, pois é extraordinário e no mínimo suspeitoso. Axioma da habitualidade: as coisas têm de ter sido sempre tal como são entre nós e ao nosso redor, porque é tudo tão natural”. — Pelo contrário, a consciência da história efeitual vai mais além da ingenuidade deste comparar e igualar, deixando que a tradição se converta em experiência e mantendo-se aberta à pretensão da verdade que lhe vem ao encontro nela. A consciência hermenêutica tem sua consumação não na certeza metodológica sobre si mesma, mas na pronta disposição à experiência que caracteriza o homem experimentado face ao que está preso dogmaticamente. É isto que caracteriza a consciência (368) da história efeitual, como poderemos pronunciar mais detalhadamente a partir do conceito da experiência. 1973 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Com isto prelineia-se o caminho da investigação que segue: deveremos indagar pela estrutura lógica da abertura que caracteriza a consciência hermenêutica, recordando o significado que convinha ao conceito de pergunta na análise da situação hermenêutica. É claro que em toda experiência encontra-se pressuposta a estrutura da pergunta. Não se fazem experiências sem a atividade do perguntar. O conhecimento de que algo é assim, e não como acreditávamos primeiramente pressupõe evidentemente a passagem pela pergunta se é assim ou de outro modo. A abertura que está na essência da experiência é, logicamente falando, esta abertura do “assim ou de outro modo”. Tem a estrutura da pergunta. E tal como a negatividade dialética da experiência encontrava sua perfeição na ideia de uma experiência consumada, na qual nos fazíamos inteiramente conscientes de nossa finitude e limitação, também a forma lógica da pergunta e a negatividade que lhe é inerente encontram sua consumação numa negatividade radical: no saber que não se sabe. É a famosa docta ignorantia socrática que abre a verdadeira superioridade da pergunta na negatividade extrema da aporia. Teremos, pois, que nos aprofundar na essência da pergunta, se quisermos esclarecer em que consiste o modo peculiar de realização da experiência hermenêutica. 1979 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Teremos de nos perguntar quais são as condições sob as quais se coloca esta tarefa diferente. Pois é certo que, face à real experiência hermenêutica que compreende o sentido do texto, a reconstrução do que o autor pensava realmente é uma tarefa reduzida. A tentação do historicismo consiste em ver nessa redução a virtude da cientificidade e considerar a compreensão como uma espécie de reconstrução que reproduziria, de algum modo, a gênese do texto. O historicismo acompanha assim o conhecido ideal cognoscitivo do conhecimento da (379) natureza, segundo o qual somente compreendemos um processo, quando estamos em condições de produzi-lo artificialmente. 2037 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Já assinalamos anteriormente o quanto é duvidosa a frase de Vico, segundo a qual este ideal alcança seu cumprimento mais puro na história, porque nela o homem encontra sua própria realidade humana e histórica. Nós, contrariamente, destacamos que todo historiador e todo filólogo têm de contar, por princípio, com a impossibilidade de fechar o horizonte de sentido, no qual se movem quando compreendem. A tradição histórica somente pode ser entendida quando se tiver pensado também o progresso das coisas através da determinação fundamental continuada, e o filólogo, que trata de textos poéticos e filosóficos, sabe muito bem que estes são inesgotáveis. Em ambos os casos o transmitido mostra novos aspectos significativos em virtude da continuação do acontecer. Através de sua nova atualização na compreensão, os textos se integram num autêntico acontecer, tal como os eventos, em virtude de sua própria continuação. Isto é o que havíamos caracterizado, na experiência hermenêutica, como o momento de história efeitual. Toda atualização na compreensão pode compreender-se como uma possibilidade histórica do compreendido. Na finitude histórica da nossa existência está o fato de que sejamos conscientes de que, depois de nós, outros compreenderão cada vez de maneira diferente. Do mesmo modo, para a nossa experiência hermenêutica é inquestionável que é a mesma obra — cuja plenitude de sentido se manifesta na transformação da compreensão — que permanece como é a mesma história, cujo significado continua determinando-se incessantemente. A redução hermenêutica à opinião do autor é tão inadequada como nos acontecimentos históricos, a redução à intenção dos que atuam neles. 2041 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A estreita relação que aparece entre perguntar e compreender é a única que dá à experiência hermenêutica sua verdadeira dimensão. Aquele que quer compreender pode ter retrocedido desde a intenção imediata da coisa à intenção de sentido como tal, e considerar esta não como verdadeira, mas simplesmente como algo com sentido, de maneira que a possibilidade de verdade fique em suspenso: esse pôr-em-suspenso é a verdadeira essência original do perguntar. Perguntar permite sempre ver as possibilidades que ficam em suspenso. Por isso não é possível compreender a questionabilidade, desligando-nos de um verdadeiro perguntar, do mesmo modo que é possível compreender uma opinião à margem do próprio opinar. Compreender a questionabilidade de algo é, antes, sempre perguntar. Face ao perguntar cabe um comportamento potencial, de simples (381) teste, porque perguntar não é pôr, mas provar possibilidades. A partir da essência do perguntar torna-se claro o que o diálogo platônico demonstra na sua realização fáctica. Aquele que quer pensar tem de perguntar. Quando alguém diz “aqui caberia uma pergunta”, isto já é uma verdadeira pergunta, disfarçada pela prudência ou cortesia. 2047 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Isso confirma também a origem do conceito do “problema”. Este não pertence ao âmbito daquelas “refutações bem-intencionadas”, nas quais se exige a verdade das coisas, mas sim, ao âmbito da dialética como um instrumento de luta para aturdir ou desconcertar o adversário. Em Aristóteles, “problema” diz respeito ao gênero de perguntas que se mostram como alternativas abertas, porque tudo fala a favor de ambos os lados, e porque não cremos poder resolvê-las com fundamentos, já que são perguntas demasiadamente grandes. Os problemas não são, pois, verdadeiras perguntas que sejam colocadas e que recebam com isso o prelineamento de sua resposta a partir de sua gênese de sentido, já que são alternativas da opinião que não podemos mais que deixar de lado, e que por isso somente admitem um tratamento dialético. Este sentido dialético de “problema” não tem seu lugar na filosofia, mas na retórica. Faz parte de seu conceito que não seja possível uma decisão unívoca fundamental. Esta é a razão pela qual, para Kant, o uso do conceito de problema se restringe à dialética da razão pura. Os problemas são “tarefas que surgem por inteiro do seu seio”, portanto, produtos da própria razão, cuja completa solução, esta não pode esperar. É significativo que no século XIX, com a quebra da tradição imediata do perguntar filosófico e com o surgimento do historicismo, o conceito de problema ascenda a uma validez universal. E um indício de que já não existe uma relação imediata com as perguntas da filosofia, pautadas na coisa. Desse modo, caracteriza-se o desconcerto da consciência filosófica, face ao historicismo, no fato de que buscou refúgio na abstração do conceito de problema e não viu problema algum na questão de saber como os problemas realmente “são”. A história dos problemas, tal qual a cultiva o neokantismo, é um filho bastardo do historicismo. A crítica ao conceito de problema, realizada com os meios de uma lógica de pergunta e resposta, tem que destruir a ilusão de que os problemas estão aí como as estrelas no céu. A reflexão sobre a experiência hermenêutica reconduz os problemas a perguntas que se colocam e que têm seu sentido na sua motivação. 2061 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A dialética de pergunta e resposta que descobrimos na estrutura da experiência hermenêutica nos permitirá agora determinar mais detidamente a classe de consciência que é a consciência da história efeitual. Pois a dialética de pergunta e resposta que pusemos a descoberto permite que a relação da compreensão se manifeste como uma relação recíproca, semelhante à de uma conversação. É verdade que um texto não nos fala como o faria um tu. Somos nós, os que o compreendemos, os que temos de trazê-lo à fala, a partir de nós. No entanto, já vimos que este trazer-à-fala, próprio da compreensão, não é uma intervenção arbitrária, nascida de origem própria, mas está referida, enquanto pergunta, à resposta latente no texto. A latência de uma resposta pressupõe, por sua vez, que aquele que pergunta é alcançado e interpelado pela própria tradição. Esta é a verdade da consciência da história efeitual. A consciência com experiência histórica, na medida em que nega o fantasma de um esclarecimento total, justo por isso, está aberta para a experiência da história. Descrevemos sua maneira de realizar-se como a fusão de horizontes do compreender que faz a intermediação entre o texto e seu intérprete. 2063 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A linguagem como médium da experiência hermenêutica 2077 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

É importante compreender que esse raciocínio é somente aparente. Na realidade a sensibilidade de nossa consciência histórica testemunha antes o contrário. O esforço para compreender e interpretar sempre tem sentido. Nisso se mostra a generalidade superior com que a razão se eleva acima das barreiras de toda constituição linguística dada. A experiência hermenêutica é o corretivo pelo qual a razão pensante se subtrai ao encanto do linguístico, tendo ela mesma caráter linguístico. 2177 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

A pergunta que nos guia é, pois, a da conceitualidade de toda compreensão. Somente na aparência se trata de um questionamento secundário. Já vimos que a interpretação conceitual é a maneira de se realizar a própria experiência hermenêutica. Esta é a razão pela qual o problema que nos colocamos agora é tão difícil. O intérprete não sabe que em sua interpretação traz consigo a si mesmo, com seus próprios conceitos. A formulação linguística é tão inerente à opinião do intérprete, que não se torna objetiva para ele em nenhum caso. Por isso, é compreensível que esse aspecto da realização hermenêutica fique completamente despercebido. Mas a isso se acrescenta, de modo especial, que esse conjunto de fatos tenha sido desvirtuado amplamente por teorias linguísticas inadequadas. É claro que uma teoria instrumentalista dos signos, que entenda as palavras e os conceitos como instrumentos disponíveis ou que se tem de pôr à disposição, fica aquém do fenômeno hermenêutico. Se nos ativermos ao que ocorre na palavra e na fala e sobretudo em qualquer conversação com a tradição, levada a cabo pelas ciências do espírito, teremos que reconhecer que em tudo isso se produz uma continuada formação de conceitos. Isto não quer dizer que o intérprete faça uso de palavras novas ou insólitas. Mas o uso das palavras habituais não tem sua origem num ato de subsunção lógica pelo fato de que algo individual é submetido à generalidade do conceito. Recordaremos, pelo contrário, que a compreensão traz em si sempre um momento de aplicação e leva a cabo, desse modo, um constante e progressivo desenvolvimento da formação dos conceitos. E algo que temos de ter presente também agora, se quisermos que a linguisticidade própria da compreensão se liberte do domínio da chamada filosofia da linguagem. O intérprete não se serve das palavras e dos conceitos como o artesão que apanha e deixa de lado suas ferramentas. É forçoso reconhecer, antes, que toda compreensão está intimamente penetrada pelo conceitual e rechaçar qualquer teoria que se negue a aceitar a unidade interna de palavra e coisa. 2183 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Ao mesmo tempo, um conceito de linguagem como esse representa uma abstração a que nosso próprio objetivo nos obrigará a dar marcha à ré. A forma linguística e o conteúdo da tradição não podem ser separados na experiência hermenêutica. Se cada língua é uma acepção do mundo, não o é tanto em sua qualidade de representante de um determinado tipo de língua (que é como o linguista considera a língua), mas uma virtude daquilo que nela foi falado e transmitido pela tradição. 2369 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Um exemplo nos ajudará a tornar patente até que ponto o reconhecimento da unidade de linguagem e tradição desloca a situação do problema ou, melhor dito, a retifica. Numa determinada passagem, Humboldt diz que o aprendizado de uma língua estrangeira tem de ser a conquista de um novo ponto de vista, dentro da própria acepção anterior do mundo, e continua: “Só porque alguém translada sempre, em maior ou menor grau, sua própria acepção do mundo e inclusive da linguagem à língua estrangeira é a razão pela qual não se alcança,o êxito puro e completo”. O que aqui aparece como restrição e deficiência (e com toda razão, do ponto de vista do linguista, que tem em vista seu próprio caminho de conhecimento) representa na realidade a maneira de se realizar a experiência hermenêutica. O que proporciona um novo ponto de vista, “na própria acepção do mundo anterior”, não é o aprendizado de uma língua estrangeira como tal, mas seu uso, tanto no trato vivo com pessoas estrangeiras, como no estudo da literatura estrangeira. Por mais que alguém se desloque a uma forma espiritual estrangeira, nunca chega a esquecer sua própria acepção do mundo e inclusive da linguagem. Ao contrário, esse mundo diferente que nos vem ao encontro não é somente estranho, mas também distinto numa infinidade de relações. Não somente tem sua própria verdade em si, mas tem também uma verdade própria para nós. 2371 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Esse outro mundo que assim experimentamos não é simplesmente objeto de investigação, onde se busque “estar por dentro” e ter informações sobre ele. Aquele que deixa vir a si a tradição literária de uma língua estrangeira, de maneira que ela consiga lhe falar, já não possui uma relação objetiva para (446) com a língua como tal, como também não ocorre ao viajante que dela se serve. Este se comporta de uma maneira muito diferente de como o faz o filólogo, para quem a tradição linguística é um material para a história da língua ou para a comparação linguística. Nós conhecemos isso suficientemente, pelo nosso próprio aprendizado de línguas estrangeiras e por essa particular dissecação das obras literárias, graças à qual a escola nos introduz nas ditas línguas. É claro que não se entende uma tradição, quando se está orientado tematicamente para a língua como tal. Mas — e este é o outro lado da questão, que é importante considerar — pode-se também não entender o que a tradição diz e quer dizer, se esta não fala a algo conhecido e familiar, que deve se pôr em mediação com as proposições do texto. Nesse sentido, aprender uma língua é ampliar o que podemos aprender. Somente no nível de reflexão do linguista esse nexo pode adotar a forma, sob a qual se entende que o êxito na aprendizagem de uma língua estrangeira “não se experimenta em forma pura e perfeita”. A experiência hermenêutica, de sua parte, é exatamente inversa: Ter aprendido e compreender uma língua estrangeira — este formalismo do poder — não quer dizer outra coisa do que estar em condições de fazer com que e deixar que seja dito, o que se diz nela. O exercício dessa compreensão é sempre ao mesmo tempo convocação pelo que foi dito, e isso não pode ter lugar se alguém não integra nisso “sua própria acepção do mundo e inclusive da linguagem”. Valeria a pena investigar a fundo, até que ponto o próprio Humboldt também deixou falar a sua própria familiaridade com a tradição literária dos povos, ainda dentro de sua orientação abstrativa voltada à linguagem como tal. 2373 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A linguagem não é somente um dos dotes, de que se encontra apetrechado o homem, tal como está no mundo, mas nela se baseia e representa o fato de que os homens simplesmente têm mundo. Para o homem, o mundo está aí como mundo (447), numa forma sob a qual não tem existência para nenhum outro ser vivo, nele posto. Essa existência do mundo, porém, está constituída linguisticamente. Esse é o verdadeiro miolo de uma frase expressada por Humboldt com outra intenção, a de que as línguas são acepções de mundo. Com isso, Humboldt quer dizer que a linguagem afirma, face ao indivíduo pertencente a uma comunidade linguística, uma espécie de existência autônoma, e que introduz o indivíduo, quando este nela cresce, numa determinada relação com o mundo e num determinado comportamento com relação a ele. Porém, mais importante ainda é o que subjaz a essa assertiva: que a linguagem não afirma, por sua vez, uma existência autônoma, face ao mundo que fala através dela. Não somente o mundo é mundo, apenas na medida em que vem à linguagem — a linguagem só tem sua verdadeira existência no fato de que nela se representa o mundo. A humanidade originária da linguagem significa, pois, ao mesmo tempo, a linguisticidade originária do estar-no-mundo do homem. Teremos de perseguir um pouco mais a relação de linguagem e mundo, se quisermos ganhar um horizonte adequado para a linguisticidade da experiência hermenêutica. 2379 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Essa é também a razão por que os sistemas de entendimento artificial inventados nunca se tornam linguagens. As linguagens artificiais, p. ex., as linguagens secretas ou os simbolismos matemáticos, não têm em sua base uma comunidade, nem de linguagem nem de vida, já que são introduzidos e aplicados meramente como meios e instrumentos do entendimento. Isso se estriba no fato de que pressupõem sempre um entendimento exercido ao vivo, o qual é linguístico. É sabido que o consenso, pelo qual se introduz uma linguagem artificial, pertence necessariamente a uma outra linguagem. Por outro lado, numa comunidade linguística real não nos pomos primeiro de acordo, mas estamos já sempre de acordo, como o mostrou Aristóteles. É o mundo que se nos apresenta na vida comum, que abrange tudo, e sobre o qual se produz o entendimento. Já os meios linguísticos não constituem por si mesmos o objeto daquele. O entendimento sobre uma língua não é o caso normal do entendimento, mas o caso especial de um acordo com respeito a um instrumento, com respeito a um sistema de signos que não têm seu ser na conversação, mas que serve como meio a objetivos informativos. A linguisticidade da experiência humana do mundo proporciona um horizonte mais amplo à nossa análise da experiência hermenêutica. Aqui se confirma o que já havíamos mostrado no exemplo da tradução e da possibilidade de entender-se além dos limites da própria língua: O mundo linguístico próprio, em que se vive, não é uma barreira que impede todo conhecimento do ser em si, mas abarca fundamentalmente tudo aquilo a que pode expandir-se e elevar-se (451) a nossa percepção. É claro que os que se criaram numa determinada tradição linguística e cultural vêem o mundo de uma maneira diferente de como o vêem os que pertencem a outras tradições. É verdade que os “mundos” históricos, que se dissolvem uns nos outros no curso da história, são diferentes entre si e também diferentes do mundo atual. E, no entanto, o que se representa é sempre um mundo humano, isto é, estruturado linguisticamente, seja lá qual for a sua tradição. Enquanto linguisticamente estruturado, cada mundo está aberto, a partir de si a toda acepção possível e, portanto, a todo gênero de ampliações; pela mesma razão, acessível a outros. 2399 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A linguagem não é o indício da finitude porque exista a diversidade de estruturação da linguagem humana, mas porque toda língua está em constante formação e desenvolvimento, quanto mais trouxer à fala a sua experiência do mundo. Não é finito por não ser ao mesmo tempo todas as demais línguas, mas porque é linguagem. Dirigimos as nossas perguntas a pontos-chave significativos do pensamento ocidental, e essa enquete nos ensinou que o acontecer da linguagem corresponde à finitude do homem num sentido muito mais radical que o que faz valer o pensamento cristão sobre a palavra. Trata-se do mediu da linguagem, a partir do qual se desenvolve toda a nossa experiência do mundo e em particular a experiência hermenêutica. 2467 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A partir da linguagem, o conceito da pertença já não se determina como a referenciação teleológica do espírito em relação à estrutura essencial do ente, tal como é pensada na metafísica. Ao contrário, o fato de que a experiência hermenêutica se realize no “modo” da linguagem, e que entre a tradição e seu intérprete tenha lugar uma conversação, coloca um fundamento completamente distinto. O decisivo é que aqui acontece algo. Nem a consciência do intérprete é senhora do que chega a ele como palavra da tradição, nem se pode descrever adequadamente o que tem lugar aqui, como o conhecimento progressivo do que, de maneira que um intelecto infinito conteria tudo o que, de um modo ou de outro, pudesse chegar a falar a partir do conjunto da tradição. Visto a partir do intérprete, “acontecer” quer dizer que não é ele que, como conhecedor, busca seu objeto e “extrai” com meios metodológicos o que realmente se quis dizer e tal como realmente era, ainda que reconhecendo leves obstáculos e desvios, condicionados pelos próprios preconceitos. Isso não é mais que um aspecto exterior ao verdadeiro acontecer hermenêutico. Ele motiva a indispensável disciplina metodológica, com a qual nos comportamos para conosco mesmos. Não obstante, o verdadeiro acontecer só se torna possível, na medida em que a palavra que chega a nós a partir da tradição, e à qual temos de escutar, nos alcança de verdade, e o faz como se falasse a nós e se referisse a nós mesmos. Mais acima tratamos desse aspecto da questão, (466) sob a forma da lógica hermenêutica da pergunta, e demonstramos como aquele que pergunta se converte no perguntado, e como tem lugar o acontecer hermenêutico na dialética do perguntar. Voltamos a fazer menção a isso, com o fim de determinar de uma maneira mais precisa o sentido da pertença, como ele corresponde à nossa experiência hermenêutica. 2489 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Se quisermos determinar corretamente o conceito de pertença, de que se trata aqui, será conveniente que observemos a dialética peculiar, contida no ouvir. Não se trata somente de que aquele que ouve é de algum modo interpelado. Antes, nisso está o fato de que quem é interpelado tem de ouvir, queira ou não. Não pode apartar seus ouvidos, tal como se aparte a vista de outra coisa, olhando numa determinada direção. Essa diferença entre ver e ouvir é para nós importante, porque ao fenômeno hermenêutico subjaz uma verdadeira primazia do ouvir, como Aristóteles já reconhece. Não há nada que não seja acessível ao ouvido através da linguagem. Enquanto nenhum dos demais sentidos participa diretamente na universalidade da experiência linguística do mundo, já que cada um deles abarca tão-somente o seu campo específico, o ouvir é um caminho rumo ao todo, porque está capacitado para escutar o logos. À luz da nossa colocação hermenêutica, esse velho conhecimento da primazia do ouvir sobre o ver alcança um peso novo. A linguagem, na qual o ouvir participa, não é somente universal no sentido de que nela tudo pode vir à fala. O sentido da experiência hermenêutica reside, antes, no fato de que, face a todas as formas de experiência no mundo, a linguagem põe a descoberto uma dimensão completamente nova, uma dimensão de profundidade, a partir da qual a tradição alcança os que (467) vivem no presente. Tal é a verdadeira essência do ouvir, já desde tempos remotos, e inclusive antes da escrita: O ouvinte está capacitado a ouvir a lenda, o mito, a verdade dos antepassados. A transmissão literária da tradição, como a conhecemos, não significa, face a isso, nada de novo, apenas altera a forma e dificulta a tarefa do verdadeiro ouvir. 2493 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Não é preciso dizer que o modo de ser da tradição não é algo imediatamente sensível. Ele é linguagem, e o ouvir que a compreende, na medida em que interpreta os textos, envolve sua verdade num comportamento para com o mundo, comportamento próprio e linguístico. Essa comunicação linguística entre presente e tradição é, como já mostramos, o acontecer que em toda compreensão abre seu caminho. A experiência hermenêutica tem de assumir, como experiência autêntica, tudo o que se lhe torna presente. Não é livre para eleger ou rejeitar previamente. Tampouco está em condições de afirmar uma liberdade absoluta nesse “deixar as coisas como estão”, que parece o específico do compreender o compreendido. O acontecido que ela é não pode fazer que as coisas não tenham acontecido. 2497 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Essa estrutura da experiência hermenêutica, tão contrária à ideia metódica da ciência, tem, por sua vez, seu próprio fundamento no caráter de acontecer da linguagem que expusemos amplamente. Não se trata somente de que o uso linguístico e a formação continuada dos meios linguísticos sejam um processo, que a consciência individual pudesse enfrentar, sabendo e elegendo — nesse sentido seria literalmente mais correto dizer que a linguagem nos fala do que dizer que nós falamos a ela (de maneira que, por exemplo, no uso linguístico de um texto pode-se determinar com mais exatidão a data de sua produção do que o seu autor). Mais importante que tudo isso é algo que estamos apontando desde o princípio: que a linguagem não constitui o verdadeiro acontecer hermenêutico enquanto linguagem, enquanto gramática nem enquanto léxico, mas no vir à fala do que foi dito na tradição, que é ao mesmo tempo apropriação e interpretação. Por isso, é aqui, onde se pode dizer com toda razão, que esse acontecer não é nossa ação na coisa, mas a ação da própria coisa. 2499 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Ora bem, a experiência hermenêutica que procuramos pensar a partir do centro da linguagem não é seguramente experiência do pensar, no mesmo sentido que essa dialética do conceito, que pretende liberar-se por completo do poder da linguagem. E, no entanto, também na experiência hermenêutica, encontra-se algo como uma dialética, um fazer da própria coisa, um fazer que, à diferença da metodologia da ciência moderna, é um padecer, um compreender, que é um acontecer. 2509 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Também a experiência hermenêutica tem sua própria consequência, a de ouvir sem extraviar-se. Tampouco a ela as coisas se apresentam sem um certo esforço, e também esse esforço consiste “em ser negativo contra si mesmo”. Aquele que procura compreender um texto tem também que manter a distância alguma coisa, ou seja, tudo o que se faz valer como expectativa de sentido a partir dos próprios preconceitos, desde o momento em que o próprio sentido do texto o rechaça. Inclusive a experiência do ser surpreendido de repente, esse ocorrer dos discursos, que não envelhece, e que constitui a autêntica experiência dialética, tem seu correlato na experiência hermenêutica. O desenvolvimento do todo do sentido a que está orientada a compreensão, nos força à necessidade de interpretar e de novo retirar-nos. Somente a auto-suspensão dessa interpretação leva a termo o fato de que a própria coisa, o sentido do texto, ganhe sua própria validez. O movimento da interpretação não é dialético porque a parcialidade de cada enunciado pode ser complementada de outro ponto de vista — veremos que isso não é mais que um fenômeno secundário na interpretação — , mas sobretudo porque a palavra que alcança o sentido do texto na interpretação não faz senão trazer à linguagem o conjunto desse sentido, isto é, pôr numa representação finita uma infinitude de sentido em si. 2511 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

E esse é o ponto no qual a proximidade de nossa própria colocação com respeito à dialética especulativa de Platão e de Hegel tropeça numa barreira fundamental. A superação da diferença entre especulativo e dialético que encontramos na ciência especulativa do conceito em Hegel mostra até que ponto este se entende a si mesmo como aquele que verdadeiramente consuma a filosofia grega do logos. O que ele chama de dialética, como o que Platão chamava de dialética, repousa objetivamente na submissão da linguagem a seu “enunciado”. O conceito do enunciado, o aguçamento dialético até a contradição, acha-se, todavia, na mais radical oposição à essência da experiência hermenêutica e à linguisticidade da experiência humana do mundo. É verdade que também a dialética de Hegel se guia de fato pelo espírito especulativo da linguagem. Mas se atendemos à maneira como Hegel se entende a si mesmo, ele só pretende extrair da linguagem o jogo reflexivo de sua determinação do pensamento, e elevá-lo pelo caminho da mediação dialética, dentro da totalidade do saber sabido, até a autoconsciência do conceito. Com isso a linguagem fica na dimensão do enunciado e não alcança a dimensão da expressão linguística do mundo. Assim, deve-se mostrar com alguns traços, como se apresenta a essência dialética da linguagem para os problemas hermenêuticos. 2527 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Apontamos a estrutura especulativa do acontecer linguístico tanto no falar cotidiano como no poético. A correspondência interna que se nos tornou patente e que reúne palavra poética com o falar cotidiano, como intensificação deste, já foi reconhecida no seu aspecto psicológico-subjetivo pela filosofia idealista da linguagem e sua renovação por Croce e Vossler. Quando destacamos o outro aspecto, o vir à fala, como verdadeiro processo do acontecer linguístico, estamos preparando com isso o caminho à experiência hermenêutica. O modo como se entende a tradição e como esta vem à fala sempre de novo é, como vimos, um acontecer tão autêntico como a conversação viva. A única coisa especial é que, nela, a produtividade do comportamento linguístico para com o mundo encontra aplicação renovada a um conteúdo já mediado linguisticamente. Também a relação hermenêutica é uma relação especulativa, mas completamente distinta do autodesenvolvimento dialético do espírito, tal como o descreve a ciência filosófica de Hegel. 2539 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Na medida em que a experiência hermenêutica contém um acontecer linguístico, que corresponde à representação dialética de Hegel, também ela participa numa dialética, que desenvolvemos acima, como dialética de pergunta e resposta. Como já vimos, a compreensão de um texto transmitido tem uma relação interna essencial com a sua interpretação, e ainda que esta seja, por sua vez, sempre um movimento relativo e inconcluso, a compreensão alcança nela sua perfeição relativa. Pela mesma razão, o conteúdo especulativo dos enunciados filosóficos necessita, como ensina Hegel, uma representação dialética das contradições contidas nele, se é que quer ser verdadeira ciência. Aqui há uma real correspondência. A interpretação toma parte na discursividade do espírito humano, que somente é capaz de pensar a unidade da coisa na mútua alternância do um ou do outro. A interpretação tem a estrutura dialética de todo ser finito e histórico, na medida em que toda interpretação tem que começar em algum ponto e procurar superar a parcialidade que ela introduz com seu começo. Há algo que parece necessário ao intérprete, ou seja, que se diga e se torne expresso. Nesse sentido toda interpretação é motivada e obtém seu sentido a partir de seu nexo de motivações. Sua parcialidade outorga a um dos aspectos da coisa uma clara preponderância, e para compensá-la tem de continuar dizendo mais coisas. Assim como a dialética filosófica consegue expor o todo da verdade através da auto-suspensão de todas as imposições unilaterais e pelo caminho do aguçamento e da superação das contradições, o esforço hermenêutico tem como tarefa pôr a descoberto um todo de sentido na multilateralidade de suas relações. À totalidade das determinações do pensamento, corresponde a individualidade de sentido a que se tem em mente. Pense-se, por exemplo, em Schleiermacher, que fundamenta sua dialética na metafísica da individualidade e constrói, na sua teoria hermenêutica, o procedimento da interpretação a partir de orientações antitéticas do pensamento. 2541 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Mas ao mesmo tempo a correspondência entre dialética hermenêutica e filosófica, que parece derivar-se da construção dialética da individualidade em Schleiermacher e da construção dialética da totalidade em Hegel, não é uma correspondência verdadeira. Pois nessa equiparação desconhece-se a essência da experiência hermenêutica e a finitude radical que lhe subjaz. É claro que toda interpretação tem que começar por algum ponto. Não obstante, seu ponto de partida não é arbitrário. Na realidade não se trata de um começo real. Já vimos como a experiência hermenêutica implica sempre o fato de que, o texto que se trata de compreender, falar a uma situação que está determinada por opiniões prévias. Isso não é uma desfocagem lamentável que obstaculize a pureza da compreensão, mas, a condição de sua possibilidade, que caracterizamos como a situação hermenêutica. Somente porque, entre aquele que compreende e seu texto, não existe uma concordância lógica e natural, é que se pode vir a participar, no texto, de uma experiência hermenêutica. Somente porque o texto tem de ser transladado, de sua distância para o que nos é próprio, é que ele tem algo a dizer para aquele que deseja entender. Somente porque o texto o exige, chega-se, portanto, à interpretação e apenas do modo como ele o requer. O começo aparentemente thético da interpretação é, na realidade, resposta, e como em toda resposta, também o sentido da interpretação se determina a partir da pergunta que se colocou. À dialética da interpretação sempre precedeu a dialética de pergunta e resposta. É esta que determina a compreensão como um acontecer. 2543 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Coisa muito diferente é a consciência da história efeitual na qual tem seu cumprimento a experiência hermenêutica. Ela conhece o caráter interminavelmente aberto do acontecimento de sentido, do qual participa. Obviamente, também aqui cada compreensão tem um padrão com o qual se mede e, por conseguinte, um possível término — é o próprio conteúdo da tradição o que proporciona o padrão único e o que vem à fala por si mesmo. Mas não é possível uma consciência — já o destacamos repetidamente, e nisso repousa a historicidade do compreender — , não é possível uma consciência, por infinita que fosse, na qual a “coisa” que é transmitida pudesse aparecer à luz da eternidade. Toda apropriação da tradição é historicamente distinta das outras, e isso não quer dizer que cada uma seja apenas uma acepção distorcida daquela: Cada uma é, antes, a experiência de um “aspecto” da própria coisa. 2547 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Reconhecemos agora que foi precisamente esse movimento especulativo, o que tivemos em mente tanto na crítica da consciência estética, como na da consciência histórica, com que iniciamos a nossa análise da experiência hermenêutica. O ser da obra de arte não era um ser em si, do qual se distinguisse sua reprodução ou a contingência de sua manifestação; somente em uma tematização secundária, tanto de um como de outro, pode chegar a essa “distinção estética”. Tampouco o que vem ao encontro de nosso conhecimento histórico, a partir da tradição ou como tradição — histórica ou filológicamente — , o significado de um evento ou o sentido de um texto era um objeto em si, fixo, que se tivesse meramente que constatar. Também a consciência histórica encerrava em si, na realidade, a mediação de passado e presente. Ao reconhecer a linguisticidade como o médium universal dessa mediação, nossa colocação de seus pontos de partida concretos, a critica à consciência estética e histórica, e a hermenêutica que se teria que pôr em seu lugar, adquiriu a dimensão de um questionamento universal. Pois a relação humana com o mundo é linguística e portanto compreensível em geral e por princípio. Nesse sentido, a hermenêutica é, como vimos, um aspecto universal de filosofia e não somente a base metodológica das chamadas ciências do espírito. 2569 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A partir do centro da linguagem, o procedimento objetivador do conhecimento da natureza e o conceito do ser em si, que corresponde à intenção de todo conhecimento, se nos mostraram como o resultado de uma abstração. Esta, arrancada reflexivamente da relação original com o mundo, relação que está dada na constituição linguística de nossa experiência de mundo, procura certificar-se do ente, organizando seu (480) conhecimento metodologicamente. Anatemiza, consequentemente, toda forma de saber que não garante essa certeza e que, por conseguinte, não seja capaz de servir à crescente dominação da natureza. Face a isso, procuramos libertar do preconceito ontológico o modo de ser próprio da arte e da história, assim como a experiência correspondente a ambas, preconceito que está implicado no ideal de objetividade que a ciência coloca; e frente à experiência da arte e da história vimo-nos conduzidos a uma hermenêutica universal que atinge a relação geral do homem com o mundo. E se já formulamos essa hermenêutica universal, a partir do conceito da linguagem, o fizemos não somente para evitar o falso metodologismo que é responsável pela estranheza do conceito da objetividade nas ciências do espírito — devia-se evitar também o espiritualismo idealista de uma metafísica da infinitude, ao modo de Hegel. A experiência hermenêutica fundamental não se articulava somente na tensão entre estranheza e familiaridade, compreensão e mal-entendido, que era o que dominava o projeto de Schleiermacher. Ao contrário, ao final vimos que, com sua teoria da perfeição adivinhatória da compreensão, Schleiermacher se apresenta em imediata proximidade a Hegel. Se nós partimos da linguisticidade da compreensão, sublinhamos, pelo contrário, a finitude do acontecer linguístico em que se concretiza em cada caso a compreensão. A linguagem que as coisas exercem, sejam elas quais e como forem, não é logos ousias e não alcança a sua plena realização na autocontemplação de um intelecto infinito — é a linguagem que toma nossa essência histórica finita, quando aprendemos a falar. Isso vale não menos para a linguagem dos textos da tradição, e por isso coloca a si mesma a tarefa de uma hermenêutica verdadeiramente histórica. Isso vale também para a experiência tanto da arte como da história, e mais ainda, os conceitos de “arte” e “história” são, por sua vez, formas de acepção, que somente se desdobram do modo de ser universal do ser hermenêutico, como formas da experiência hermenêutica. 2571 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Na engenhosa interpretação agostiniana do “Gênesis” reconhecemos um prenúncio daquela interpretação especulativa da linguagem que desenvolvemos na análise estrutural da experiência hermenêutica do mundo, segundo a qual a multiplicidade do que é pensado surge somente a partir da unidade da palavra. Ao mesmo tempo podemos reconhecer que a (488) metafísica da luz faz valer um aspecto do conceito antigo do belo, que pode afirmar seu direito inclusive à margem de sua relação com a metafísica da substância e da referência metafísica do espírito divino infinito. O resultado da nossa análise da posição do belo na filosofia grega clássica é, pois, que, também para nós, esse aspecto da metafísica pode, todavia, adquirir um significado produtivo. O fato de que o ser seja um representar-se, e de que todo compreender seja um acontecer, essa primeira e essa última perspectiva superam o horizonte da metafísica da substância do mesmo modo que o experimentou o conceito da substância ao converter-se nos conceitos da subjetividade e da objetividade científicas. Desse modo, a metafísica do belo não carece de consequências para o nosso próprio questionamento. Já não se trata, como se mostrou na tarefa da discussão do século XIX, de justificar pela teoria da ciência a pretensão de verdade da arte e do artístico — ou também a da história e a da metodologia das ciências do espírito. A tarefa que nos é colocada agora é muito mais geral: consiste em fazer valer o pano de fundo ontológico da experiência hermenêutica do mundo. 2611 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Partindo da metafísica do belo podemos trazer à luz sobretudo dois pontos, que resultam da relação entre o aparecer do belo e a evidência do compreensível. De uma parte, pelo fato de que a manifestação do belo, tal qual o modo de ser da compreensão, possuem caráter de evento — de outra parte, o fato de que a experiência hermenêutica, como experiência de um sentido transmitido, participa da imediatez que sempre caracterizou a experiência do belo e, em geral, toda evidência da verdade. 2613 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

1. Em primeiro lugar, sobre o pano de fundo que a especulação tradicional da luz e da beleza preparou, cabe legitimar a primazia que atribuímos ao fazer da coisa, dentro da experiência hermenêutica. Torna-se aqui, por fim, claro que não se trata nem de mitologia nem de uma mera inversão dialética ao estilo de Hegel, mas do desenvolvimento de um velho momento da verdade, que se afirma face à metodologia da ciência moderna. A própria história da palavra dos conceitos que empregamos aponta nessa direção. Já tínhamos dito que o belo é tão “evidente” como tudo que tem sentido. 2615 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A experiência hermenêutica faz parte desse campo, porque também ela é o acontecer de uma autêntica experiência. O fato de que se evidencie algo naquilo que foi dito, sem que por isso fique assegurado, julgado e decidido em todas as possíveis direções, é algo que de fato ocorre cada vez que algo nos fala a partir da tradição. O transmitido se faz valer a si mesmo, em seu próprio direito, na medida em que é compreendido, e desloca oiorizonte que até então nos rodeava. Trata-se de uma verdadeira experiência, no sentido já mencionado. Tanto o evento do belo como o acontecer hermenêutico pressupõem fundamentalmente a finitude da existência humana. Inclusive podemos fazer a pergunta se um espírito infinito poderia experimentar o elo como nós o experimentamos. Poderia ele ver outra coisa que a beleza do todo que tem ante si? O “aparecer” do belo parece reservado à experiência humana finita. O pensamento medieval conhece um problema análogo, o de como é possível a beleza em Deus, se ele é uno e não múltiplo. Somente a doutrina de Nicolau de Cusa, da complicatio do múltiplo em Deus oferece uma solução satisfatória (cf. O Sermo de pulchritudine, citado acima). E nesse sentido nos parece inteiramente consequente que, na filosofia hegeliana do saber infinito, a arte seja uma forma da representação, que encontraria a sua suspensão e subsunção no conceito e na filosofia. Do mesmo modo, a universalidade da experiência hermenêutica não deveria ser, por princípio, acessível a um espírito infinito, que desenvolvesse, a partir de si mesmo, tudo quanto é sentido, todo noeton, e que pensasse todo o pensável na plena autocontemplação de si mesmo. O Deus aristotélico (e também o espírito hegeliano) deixou para trás de si a “filosofia”, esse movimento da existência finita. Nenhum dos deuses filosofa, diz Platão. 2619 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

O fato de que uma ou outra vez possamos nos reportar a Platão, apesar de que a filosofia grega do logos somente permite apreciar de maneira muito fragmentária o solo da experiência hermenêutica, o centro da linguagem, o devemos evidentemente a essa outra face da doutrina platônica da beleza, a que acompanha a história da metafísica aristotélico-escolástica como uma espécie de corrente subterrânea, e que emerge, de vez em quando, como ocorre na mística neoplatônica e cristã, e no espiritualismo filosófico e teológico. Nessa tradição do platonismo é onde se desenvolve o vocabulário conceitual que o pensamento da finitude da existência humana necessita. Também a afinidade que reconhecemos entre a teoria platônica da beleza e a ideia de uma hermenêutica universal testemunha a continuidade dessa tradição platônica. 2621 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

2. Se partirmos da constituição ontológica fundamental, segundo a qual o ser é linguagem, isto é, representar-se — tal como se nos abriu na experiência hermenêutica do ser — , a consequência não é somente o caráter de evento do belo e o caráter de acontecer de toda compreensão. Assim como o modo de ser do belo tinha se mostrado como prefiguração de uma constituição ontológica geral, algo semelhante ocorrerá com respeito ao correspondente conceito da verdade. Também aqui podemos partir da tradição metafísica, mas também aqui teremos de nos indagar sobre o que continua sendo válido nela, para a experiência hermenêutica. Segundo a metafísica tradicional, o caráter de verdade do ente pertence à determinação transcendental e está estreitamente vinculado ao ser bom (de onde também aparece o ser belo). Recordamos, desse modo, a frase de Tomás de Aquino, segundo a qual o belo deve ser determinado por referência ao conhecimento, e o bom por referência ao desejo. É belo aquilo em cuja contemplação o anseio chega ao seu repouso: cuius ipsa apprehensio placet. O belo acrescenta ao ser bom uma referência à capacidade de conhecer: addit supra bonum quemdam ordenem ad vim cognoscitivam. O “aparecer” do belo aparece aqui como uma luz que brilha sobre o que foi formado: lux splendens supra formatum. 2623 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Essa recordação referente a Platão torna-se de novo significativa para o problema da verdade. Na análise da obra de arte, tínhamos procurado demonstrar que o representar-se deve ser considerado como o verdadeiro ser daquela. Com esse fim, havíamos acrescentado o conceito do jogo, o qual já nos projetou a nexos mais gerais: pois tínhamos visto que a verdade do que se representa no jogo não é “de se crer” ou “não se crer”, para além da participação no acontecer lúdico. No âmbito estético, isso se entende por si mesmo. Inclusive quando o poeta é honrado como um vidente, isso não quer dizer que reconheçamos no seu poema uma verdadeira profecia como, por exemplo, nos cantos de Hölderlin sobre o retorno dos deuses. O poeta é 492] um vidente porque representa por si mesmo o que é, o que foi e o que será, e testemunha por si mesmo o que anuncia. É certo que a expressão poética leva em si uma certa ambiguidade, como aquela dos oráculos. Mas precisamente nisso se estriba sua verdade hermenêutica. Quem considera que isso é uma falta de vinculatividade estética, que passaria ao largo da seriedade do existencial, não se dá conta de até que ponto a finitude do homem é fundamental para a experiência hermenêutica do mundo. A ambiguidade do oráculo não é o seu ponto fraco, mas justamente sua força. E igualmente atira no escuro aquele que examinar se Hölderlin ou Rilke acreditavam realmente em seus deuses ou em seus anjos. 2627 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Também com relação ao fenômeno hermenêutico, mostrou-se como uma restrição ilegítima entender a compreensão somente como esforço imanente de uma consciência filológica, indiferente à “verdade” de seus textos. De outra parte, também era claro que a compreensão dos textos não poderia ter pré-julgado a questão da verdade, a partir do ponto de vista de um conhecimento superior da coisa, e na compreensão somente seja experimentada a satisfação desse conhecimento superior e próprio da coisa. Ao contrário, para nós a dignidade da experiência hermenêutica — e também o significado da história para o conhecimento humano em geral — consistia em que nela não se produz a subordinação sob algo já conhecido, mas que o que sai ao nosso encontro a partir da tradição é algo que nos fala. A compreensão não se satisfaz então no virtuosismo técnico de um “compreender” tudo o que é escrito. É, pelo contrário, uma experiência autêntica, isto é, encontro com algo que vale como verdade. 2631 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Ultrapassado, certamente, é o fato de, no âmbito das assim chamadas ciências do espírito, o acento recair sobre as ciências filológico-históricas. Na era das ciências sociais, do estruturalismo e da linguística, essa vinculação na herança romântica da escola historiográfica parece não ser mais suficiente. O que se mostra aqui é na realidade a limitação das próprias experiências de que parte. O objetivo global, no entanto, foi desde o início a universalidade da experiência hermenêutica, que deve ser alcançável assumindo qualquer ponto de partida, se quiser ser uma experiência universal. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

A identidade do eu, assim como a identidade do sentido, que se constrói através dos participantes do diálogo, permanece intocada. É evidente que nenhuma compreensão de um pelo outro dialogante consegue abranger todo o âmbito do compreendido. Nesse ponto, a análise hermenêutica deve se desfazer de um falso modelo de compreensão e entendimento. Por isso, no entendimento, jamais se dá o caso de a diferença ser tragada pela identidade. Quando dizemos que nos entendemos sobre alguma coisa, isso não significa, em absoluto, que um tenha uma opinião idêntica ao outro. “Chega-se a um acordo”, como diz muito bem a expressão. É uma forma mais elevada de syntheke, se quisermos servir-nos da genialidade da língua grega. A meu ver, querer isolar e fazer objeto de crítica os elementos do discurso, do discurs, é um desvirtuamento da perspectiva. Assim, na realidade, esses elementos não se dão, e torna-se compreensível por que, do ponto de vista dos “signos”, precisamos falar de différance ou différence. Nenhum signo, no sentido absoluto de significado, é idêntico a si mesmo. A crítica de Derrida contra o platonismo, que ele supõe encontrar-se nas Investigações lógicas de Husserl e no conceito de intencionalidade, no Ideen I, não deixa de ter razão. Isso, porém, já foi esclarecido por Husserl há muito tempo. Partindo do conceito de síntese passiva e da teoria das intencionalidades anônimas, parece-me, na verdade, haver uma linha transparente que chega à experiência hermenêutica, a qual, suposto que se refute a violência metodológica do modo de pensar transcendental, pode coincidir amplamente com minha máxima: “Quando se consegue compreender, compreende-se de modo diferente”. Depois da conclusão de Verdade e método I, o tema preferencial de minhas pesquisas foi durante décadas o lugar que o conceito de literatura ocupa no círculo de questionamento da hermenêutica. Confira neste volume os artigos “Texto e interpretação” e “Destruição e desconstrução”, assim como os trabalhos apresentados nos volumes VIII e IX. Como disse inicialmente, (17) em Verdade e método I, parece-me que ainda não se alcançou, com precisão, a diferenciação necessária entre o jogo da linguagem e o jogo da arte e, na realidade, a mútua pertença de linguagem e arte em nenhum lugar é tão palpável como no caso da literatura, que se define justamente através da arte da linguagem — e do escrever! VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

O problema hermenêutico adquiriu uma nova ênfase na esfera da lógica das ciências sociais. Certamente, dever-se-á reconhecer que a dimensão hermenêutica encontra-se à base de toda experiência de mundo, desempenhando por isso uma função também no trabalho das ciências naturais, como ficou demonstrado sobretudo por Thomas Kuhn. E isso vale ainda com mais decisão para as ciências sociais, pois, à medida que a sociedade possui sempre uma existência compreendida no âmbito da linguagem, o próprio campo de objetos das ciências sociais (e não apenas sua formação teórica) é presidido pela dimensão hermenêutica. Em certo sentido, a crítica hermenêutica ao objetivismo ingênuo das ciências do espírito tem sua contrapartida na crítica da ideologia, inspirada em Marx (Habermas; cf. também a forte polêmica de Hans Albert contra essa corrente). Também a cura pelo diálogo representa um fenómeno hermenêutico eminente, cujas bases teóricas foram rediscutidas por J. Lacan e P. Ricoeur. O alcance da analogia entre doenças mentais e doenças sociais parece-me profundamente questionável. A situação do cientista social frente à sociedade não é a mesma que a do psicanalista frente a seu paciente. Uma crítica da ideologia que pensa estar isenta de toda preocupação ideológica não é menos dogmática que uma ciência social “positivista” que se compreende como técnica social. Frente a essas tentativas de mediação, parece-me compreensível a oposição defendida por Derrida entre a teoria da desconstrução e a hermenêutica. A experiência hermenêutica, no entanto, defende seu próprio direito contra uma tal teoria da desconstrução do “sentido”. Apesar de Nietzsche, buscar “sentido” na écriture nada tem a ver com metafísica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Nesse ponto, aparece uma distinção que não se pode ignorar. A crítica da ideologia pretende ser uma reflexão emancipatória. De modo correspondente, o diálogo terapêutico pretende tornar conscientes as máscaras do inconsciente e com isso dissolvê-las. Ambas pressupõem seu saber e consideram-se cientificamente fundamentadas. Contrário a isso, a reflexão hermenêutica não contém nenhuma pretensão de conteúdo deste tipo. Não afirma saber que as condições sociais fácticas possibilitam apenas uma comunicação distorcida. Isso implicaria já, em seu juízo, que soubéssemos o que uma comunicação correta e não distorcida deveria produzir. Tampouco considera atuar como um terapeuta que leva o processo reflexivo do paciente a um bom termo, conduzindo-o a um conhecimento mais elevado de sua história de vida e de seu verdadeiro ser. Em ambos os casos, na crítica da ideologia e na psicanálise, a interpretação pretende orientar-se por um saber prévio, a partir do qual as fixações prévias e os preconceitos podem ser dissolvidos. Nesse sentido, ambas podem ser compreendidas como “Iluminismo”. A experiência hermenêutica vê, ao contrário, com ceticismo todo postulado de um saber prévio. O conceito da compreensão prévia, introduzido por Bultmann, não se refere a esse tipo de saber: Os nossos preconceitos devem ser colocados em jogo no processo do compreender… Na concreção da experiência hermenêutica, conceitos como “esclarecimento”, “emancipação”, “diálogo livre de coerção” revelam-se como pobres abstrações. A experiência hermenêutica faz ver o enraizamento profundo que podem ter os preconceitos e o pouco que uma mera conscientização pode fazer para dissolver sua força. Sabia disso muito bem um dos pais do Iluminismo moderno, Descartes, procurando legitimar seu novo conceito de (116) método não tanto por argumentos mas pela meditação, por uma reflexão reiterada. Isso não deve ser descartado como se fosse mero revestimento retórico. Sem isso, não há comunicação, mesmo em trabalhos filosóficos e científicos, que precisam de recursos retóricos para impor sua vigência. Toda a história do pensamento confirma essa antiga proximidade entre a retórica e a hermenêutica. No entanto, a hermenêutica contém sempre um elemento que ultrapassa a mera retórica: inclui sempre um encontro com as opiniões do outro, que vêm, por sua vez, à fala. Isso vale também para a compreensão de textos e outras criações culturais do mesmo gênero. Precisam desenvolver sua própria força persuasiva para serem compreendidos. Por isso, a hermenêutica é filosofia porque não pode ser restrita a uma teoria da arte, que “apenas” compreende as opiniões de um outro. A hermenêutica implica, antes, que toda compreensão de algo ou de um outro vem precedida de uma autocrítica. Aquele que compreende não postula uma posição superior. Confessa, antes, a necessidade de colocar à prova a verdade que supõe própria. É o que está implícito em todo compreender, e por isso todo compreender contribui para o aperfeiçoamento da consciência da história dos efeitos. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Isso tem consequências no que Heidegger ensinou sobre a produtividade do círculo hermenêutico. Eu próprio formulei esse princípio afirmando que, mais que nossos conceitos, são nossos preconceitos que perfazem nosso ser. Isso é uma formulação provocativa, uma vez que busca restituir o direito ao conceito positivo do preconceito que o Iluminismo francês e inglês expulsou do uso da linguagem. Pode-se mostrar que originalmente o conceito de preconceito ultrapassa o sentido que lhe damos à primeira vista. Os preconceitos não são necessariamente injustificados e errôneos, de modo a distorcer a verdade. Na realidade, o fato de os preconceitos, no sentido literal da palavra, constituírem a orientação prévia de toda nossa capacidade de experiência é constitutivo da historicidade de nossa existência. São antecipações de nossa abertura para o mundo, que se tornam condições para que possamos experimentar qualquer coisa, para que aquilo que nos vem ao encontro possa nos dizer algo. De certo, isso não significa que estejamos cercados por um muro de preconceitos, e que somente permitiríamos o acesso a quem mostrasse seu passaporte, contendo a seguinte inscrição: aqui não se diz nada de novo. Ao contrário, é bem-vindo o hóspede que promete nos trazer algo novo para nossa curiosidade. Mas como vamos reconhecer o hóspede, admitido na nossa companhia, que vai dizer-nos algo novo? Também nossa expectativa e (225) nossa disposição para ouvir o novo não são trazidas necessariamente pelo antigo, onde nos encontramos? A comparação deve servir como uma espécie de legitimação para justificar por que o conceito de preconceito, que contém uma relação interna profunda com o conceito de autoridade, necessita de uma reabilitação hermenêutica. Como toda comparação, também essa é caolha. A experiência hermenêutica não consiste em que algo esteja fora e cioso para entrar. Ao contrário, somos tomados por algo, e, em virtude disso que nos toma, sentimo-nos abertos para o novo, o outro, o verdadeiro. É o que nos mostra Platão com a bela comparação entre a comida para o corpo e o alimento espiritual: enquanto podemos recusar o primeiro, por exemplo, pelo conselho do médico, o segundo é sempre assimilado. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

Se não compreendo mal as explicações de Joh. Lohmann, trata-se da mesma teleología que se dá constantemente na vida da linguagem. Quando descreve as tendências de linguagem, onde se avolumam determinadas formas como os verdadeiros agentes da história, Lohmann sabe perfeitamente que esse fenômeno se realiza nas formas do estabelecer-se, de colocar-se de pé, como diz a palavra alemã Zustandekommen. A impressão é que o que se mostra ali é o verdadeiro modo de realização de nossa experiência humana de mundo. O aprender a falar é certamente uma fase de extraordinária produtividade, e a genialidade que possuíamos aos três anos de idade transformamo-la num talento escasso e modesto. Mas no uso da interpretação de mundo guiada pela linguagem, que acaba se estabelecendo, ainda permanece vivo algo da produtividade de nossos inícios. Todos temos conhecimento desse fenômeno, por exemplo, quando tentamos traduzir algum texto, seja na vida, na literatura, ou em qualquer outra circunstância; é quando nos vemos tomados por um sentimento estranho, inquietante e penoso, até encontrarmos a palavra certa. Quando a temos, quando encontramos a expressão acertada (não precisa ser necessariamente uma (230) palavra), quando estamos certos de possuí-la, então se estabelece, “fica de pé”, então retomamos uma instância firme em meio ao torvelinho das coisas estranhas que se dão no acontecer da linguagem, cuja variação infinita faz com que percamos a orientação. O que estou descrevendo é o modo da experiência humana no mundo em geral. Chamo-a de experiência hermenêutica, uma vez que o processo assim descrito repete-se constantemente no que nos é familiar. É sempre um mundo já interpretado, um mundo já ordenado em suas relações, no qual a experiência entra como um elemento novo, que destrona o que guiava nossas expectativas, colocando uma nova ordem ao que é destronado. O primeiro elemento não é o mal-entendido e nem a estranheza, de modo que a tarefa primordial e inequívoca seria evitar o mal-entendido. Ao contrário, o assentamento no que é familiar e no acordo possibilita o trânsito para o estranho, a assunção do que vem deste, e com isso a ampliação e enriquecimento de nossa própria experiência de mundo. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

É próprio da universalidade do princípio hermenêutico precisar ser observado também pela lógica das ciências sociais. Assim, Habermas utilizou-se das análises da “consciência da história dos efeitos” e do modelo da “tradução”, presentes em Verdade e método I, reconhecendo-lhe uma função positiva para a superação da rigidez positivista da lógica das ciências sociais e para sua fundamentação nos processos da linguagem, a qual historicamente continua irrefletida. Essa referência à hermenêutica portanto está expressamente a serviço dos pressupostos da metodologia das ciências sociais. Essa proposta distancia-se certamente da base tradicional da problemática hermenêutica formada pelas ciências do espírito estético-românticas, distância tomada por uma decisão prévia de grande alcance. É verdade que o estranhamento metodológico que constitui a essência da ciência moderna é usado também nas “humanities”, e Verdade e método I jamais considerou como excludente a contraposição implícita em seu título. Mas o ponto de partida da análise foram as ciências do espírito, porque convergem com experiências onde não estão em questão método e ciência, mas experiências que se encontram fora da ciência, como a experiência da arte e a experiência da cultura cunhada pela sua tradição histórica. Em todas elas a experiência hermenêutica atua de modo igual, e como tal ela própria não se converte em objeto de estranhamento metodológico, mas precede-o na medida em que abre as perguntas à ciência, possibilitando assim o emprego de seus (239) métodos. Caso se reconheça a reflexão hermenêutica como indispensável (como ficou demonstrado em Verdade e método para o caso das ciências do espírito), as ciências sociais modernas, segundo Habermas, reivindicam, por intermédio de um “estranhamento controlado”, elevar a compreensão “de um exercício pré-científico para o nível de um procedimento reflexivo”, por assim dizer pelo “desenvolvimento metodológico da inteligência” (172-174). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Vamos explicitar concretamente esse pensamento. A reflexão efetuada pela hermenêutica filosófica seria crítica no sentido de que descobriria o objetivismo ingênuo onde se encontra enredada a autocompreensão das ciências históricas, orientada nas ciências da natureza. Aqui a crítica da ideologia lança mão da reflexão hermenêutica interpretando o caráter de preconceito de toda compreensão como uma crítica da sociedade. Ou a reflexão hermenêutica descobre falsos embasamentos (Hypostasierungeri) de palavras no estilo que fazia Wittgenstein ao criticar os conceitos da psicologia remontando à situação hermenêutica originária onde a fala está referida à práxis. Também essa crítica ao enfeitiçamento da linguagem retifica nossa autocompreensão, de tal modo que essa pode ajustar-se melhor às nossas experiências. Mas a hermenêutica produz reflexão crítica, por exemplo, quando defende a linguagem compreensível contra falsas pretensões da lógica, que busca importar determinados critérios de cálculo enunciativo a textos filosóficos, demonstrando (Carnap ou Tugendhat) que, quando Heidegger ou Hegel falam sobre o nada, essa fala seria absurda por não cumprir certas precondições lógicas. Nesse caso, a hermenêutica filosófica pode demonstrar que essas objeções não correspondem à experiência hermenêutica ficando aquém do que se deve compreender. O “nada nadificante”, p. ex., não expressa como pensa Carnap um sentimento, mas um movimento do pensamento que deve ser compreendido. A reflexão hermenêutica parece-me ser produtiva onde alguém por exemplo examina o modo de argumentação socrático nos diálogos platônicos a partir da perspectiva de seu rigor lógico. Nesse caso, a reflexão hermenêutica pode descobrir que o processo comunicativo que se dá no desenrolar dos diálogos socráticos é um processo da compreensão e do entendimento, que não é atingido pela busca de conhecimento do analista lógico. Em todos esses casos, a crítica reflexiva reporta-se a uma instância representada pela experiência hermenêutica e sua realização na linguagem. Eleva à consciência crítica o scopus dos enunciados presentes e qual o esforço hermenêutico exigido para sua pretensão da verdade. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Ora, o que está em discussão, na verdade, é exatamente a universalidade da experiência hermenêutica. Através de seu modo de realização no âmbito da linguagem, ela não se vê restrita a um círculo de entendimento comunicativo que em muitos sentidos parece poder ser trapaceado? Esse é o factum das próprias ciências e sua formação teórica. Habermas chega a ver aqui uma objeção: (256) “evidentemente que a ciência moderna pode legitimamente pretender alcançar enunciados verídicos sobre as ‘coisas’ pelo fato de proceder em maneira de monólogo, em vez de atender ao espelho dos discursos humanos”. Compreende por exemplo que essas teorias da ciência construídas “monologicamente” devem se fazer compreender no diálogo da linguagem cotidiana. Vê, no entanto, surgir um novo problema para a hermenêutica, criado por essas linguagens teóricas. A partir de si, a hermenêutica só tem a ver mesmo com a cultura constituída e transmitida pela linguagem corriqueira, e se impõe a nova tarefa de esclarecer como a linguagem poderia evadir-se da estrutura do diálogo e possibilitar a formação de uma teoria rigorosa. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

K.O. Apel, em todo caso, faz essa crítica porque não compreendeu direito o que tem em mente a hermenêutica filosófica quando fala de aplicação. A análise que faço da experiência hermenêutica tem como objeto a praxis exitosa das ciências hermenêuticas, na qual certamente não está atuando nenhuma “aplicação consciente” que pudesse favorecer uma corrupção ideológica do conhecimento. Essa análise deveria ser levada realmente a sério. Esse mal-entendido já fora objeto de preocupação de Betti. Aqui está em jogo sem dúvida uma obscuridade no conceito de consciência de aplicação. É absolutamente verdadeiro, como constata Apel, que frente à auto-evidência objetivista das ciências compreensivas e face à práxis vital da compreensão, a consciência de aplicação (261) apresenta-se como uma exigência hermenêutica. Assim, uma hermenêutica filosófica, no estilo que procurei desenvolver, torna-se “normativa”, no sentido de que busca substituir uma má filosofia por outra melhor. Mas não propaga uma nova práxis e não há indícios que afirmem que a práxis hermenêutica se guie concretamente por uma consciência e tendência de aplicação, e isso inclusive no sentido de uma legitimação consciente de uma tradição vigente. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

A experiência hermenêutica carrega uma tensão não só desde o surgimento da ciência moderna, mas desde que se pleiteou um questionamento hermenêutico: uma tensão que jamais se resolve. Desse modo, ela não se deixa enquadrar sob o esquema de um autoconhecimento na alteridade, no qual o sentido seria sempre apreendido e transmitido plenamente. Esse conceito idealista do sentido do compreender não me parece desorientar apenas Apel, mas a maioria de meus críticos. Eu próprio admito que uma hermenêutica filosófica reduzida a idealismo necessita de complemento crítico. Procurei demonstrar isso na crítica aos seguidores hegelianos do século XIX, Droysen e Dilthey. Mas o impulso da hermenêutica não foi sempre “compreender” pela interpretação o estranho, a vontade inescrutável dos deuses, a mensagem de salvação ou as obras dos clássicos. Tampouco isso significa sempre uma inferioridade constitutiva daquele que compreende frente àquele que fala ou que dá a entender? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Isso me parece tão evidente que fico assombrado que meus críticos, tanto Giegel quanto no fundo o próprio Habermas, repitam que, insistindo em minha hermenêutica, pretendo contestar a legitimidade da consciência revolucionária e da vontade de mudança. Quando afirmo frente a Habermas que a relação médico-paciente não é suficiente para o diálogo social, formulando a pergunta: “Frente a qual auto-interpretação da consciência social — e todo costume é uma tal auto-interpretação — posiciona-se a indagação e a sondagem, será que na vontade de mudança revolucionária, e frente qual não?”, estou contrapondo essa pergunta à analogia afirmada por Habermas. No caso da psicanálise, sua resposta se dá mediante a autoridade do médico bem informado. Mas no âmbito social e político falta uma base específica para a análise comunicativa, cujo tratamento o doente aceita livremente porque conhece sua doença. Por isso, parece-me que essas perguntas não podem ser respondidas do ponto de vista da hermenêutica. Apoiam-se em convicções sociopolíticas. Mas isso não significa que por causa disso a vontade de mudança revolucionária, a diferença de uma confirmação da tradição, não seja suscetível de legitimação. Nem uma nem a outra convicção são suscetíveis nem estão necessitadas de uma legitimação teórica pela hermenêutica. A teoria da hermenêutica nem sequer pode decidir por si se é correta ou não a pressuposição de que a sociedade está dominada pela luta de classes e de que não há nenhuma base para o diálogo entre as classes. Não há dúvidas de que meus críticos ignoram a pretensão de validade que há na reflexão sobre a experiência hermenêutica. De outro modo não poderiam chocar-se com o fato de que toda possibilidade de entendimento pressupõe a solidariedade. Eles partem desse mesmo pressuposto. Nada pode justificar a suposição de que eu lançaria mão, imparcialmente, do “consenso básico” como solidariedade conservadora e não como solidariedade revolucionária. É a ideia da própria razão que não pode renunciar à ideia do consenso geral. Essa é a solidariedade que une a todos. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

O que distingue uma práxis hermenêutica e sua disciplina do aprendizado de uma mera técnica, seja ela técnica social ou método crítico, é que na hermenêutica a consciência do sujeito que compreende sempre é co-determidada por um fator da história dos efeitos. Mas isso implica também a tese inversa, a saber, o que é compreendido sempre desenvolve uma certa força convincente que influi na formação de novas convicções. Não nego que a abstração das opiniões pessoais represente um esforço justificado de compreensão. Quem quer compreender não precisa afirmar o que compreende. E no entanto penso que a experiência hermenêutica nos ensina que a força dessa abstração é sempre limitada. Aquilo que compreendemos fala também e sempre por si próprio. E exatamente aqui que reside a riqueza do universo hermenêutico. A medida que desenrola toda amplitude de seu jogo, obriga também o sujeito que compreende a colocar em jogo seus preconceitos. Todas essas são conquistas da reflexão emanadas da praxis e dela somente. Peço clemência por mim, um velho filólogo, por ter exemplificado tudo isso no “ser para o texto”. Na verdade, a experiência hermenêutica está totalmente entretecida na realidade geral da praxis humana, na qual a compreensão do escrito chega a ser essencial, mas sua inclusão é apenas secundária. Chega tão longe quanto a disposição para o diálogo dos seres racionais. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

O que me interessa, penso que pode ser identificado como um velho problema que já Aristóteles tinha em mente em sua crítica à ideia geral do bem, de Platão. O bem humano é algo que encontramos na praxis humana e não pode ser determinado fora da situação concreta onde se prefere uma coisa à outra. Isso representa a experiência crítica do bem e não um consenso contrafáctico. Deve ser trabalhado e retrabalhado até a concretização da situação. Enquanto ideia geral, essa ideia da vida justa é uma ideia “vazia”. Ali radica-se o fato decisivo de que o saber da razão prática não é um saber que tenha consciência de sua superioridade frente ao ignorante. Ao contrário, dá-se aqui em todos e em cada um a pretensão de saber o que é justo para o todo. Mas para a convivência social das pessoas isso significa que precisamos convencer os outros. E precisamos convencê-los, de certo, não no sentido de que a política e a configuração da vida social sejam uma mera comunidade de diálogo, de modo a sentir-nos dependentes de um diálogo livre de coerções, à margem de todas as pressões de dominação, como o verdadeiro recurso terapêutico. A política exige da razão que re-conduza os interesses para a formação da vontade, e todas as informações sociais e políticas da vontade são dependentes da estrutura das convicções gerais construídas pela retórica. Isso implica — e creio que isso pertence ao conceito de razão — termos de contar sempre com a possibilidade de que a convicção do outro, seja no âmbito individual ou social, possa estar certa. O caminho da experiência hermenêutica, que, como gosto de reconhecer, elaborou em si conteúdos específicos da tradição cultural do Ocidente, levou-me a assumir um conceito com aplicação muito ampla. Refiro-me ao conceito de jogo. Não o conhecemos apenas das teorias lúdicas modernas da economia. Parece-me que reflete muito mais a pluralidade que acompanha o exercício da razão humana, assim como a pluralidade que conjuga as forças opostas na unidade de um todo. O jogo das forças complementa-se com o jogo das convicções, das argumentações e experiências. O esquema do diálogo, quando bem empregado, torna-se muito fecundo: no intercâmbio das forças e no confronto dos pontos de vista vai se construindo uma comunidade que ultrapassa o indivíduo e o grupo ao qual se pertence. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Não se pode responsabilizar tão globalmente a “hermenêutica recente” pelos erros modernistas. Há que se dizer, antes, que a tarefa da reflexão hermenêutica é superar a oposição da clássica querelle des anciens et des modernes, sem pronunciar-se a favor da fé progressista dos modernos nem a favor da modéstia da mera imitação dos antigos. Isso significa desmascarar por um lado o preconceito ligado à primazia da autoconsciência e à norma de certeza da cientificidade metodológica e controlar por outro lado o preconceito contrário: nossa suposta capacidade de eliminar sem mais a era cristã e a ciência moderna. Isso já foi expresso muito claramente por Schiller em sua célebre caracterização de Goethe. Dar razão aos antigos não pode significar um retorno a eles nem sua imitação. No caso da hermenêutica, isso significa apenas que o pensamento filosófico moderno baseado na autoconsciência deve tomar consciência de sua unilateralidade e aceitar a experiência hermenêutica segundo a qual os antigos nos permitem compreender certas coisas melhor que os modernos. Jaeger refere-se a esse “subjetivismo” quando polemiza com a “hermenêutica construtivista” e com os “atos doadores de sentido” de Husserl? Se fosse assim, eu estaria plenamente de acordo. Mas isso me parece incompatível com o pensamento do autor. Como se comporta com relação às suas alusões a Heidegger? Que nos resta, então? Existir novamente sem tradição, como Jaeger atribui à hermenêutica moderna? Simplesmente ignorar a tradição em que estamos e na qual ele mesmo está? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Convém lembrar esta pré-história de nossa problemática atual. A consciência metodológica das ciências históricas, que aflora desde o romantismo, e a pressão que exerceu o modelo triunfante das ciências naturais fizeram com que a reflexão filosófica reduzisse a generalidade da experiência hermenêutica a sua forma científica. Nem em Wilhelm Dilthey, que buscou na continuação das ideias de Friedrich Schleiermacher e de seus amigos românticos a fundamentação das ciências do espírito em sua historicidade, nem entre (331) os neokantianos, que perseguiram uma justificação epistemológica das ciências do espírito em forma de filosofia transcendental da cultura e dos valores, estava ainda presente toda a amplitude da experiência hermenêutica fundamental. Talvez esse fato tenha se produzido com maior intensidade no país de Kant e do idealismo transcendental do que em países nos quais les lettres revestem certa importância na vida pública. No entanto, a reflexão filosófica acabou tomando uma direção similar em todas as partes. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

De minha parte, procurei não esquecer o limite implícito em toda experiência hermenêutica do sentido. Ao escrever que “o ser que pode ser compreendido é linguagem”, essa frase dava a entender que o que é nunca pode ser inteiramente compreendido. Isso porque o que serve de orientação a uma linguagem sempre ultrapassa aquilo que nela se enuncia. O que vem à linguagem permanece como aquilo que deve ser compreendido, mas sem dúvida é sempre tomado e percebido como algo. Essa é a dimensão hermenêutica na qual o ser “se mostra”. A “hermenêutica da facticidade” (335) significa uma transformação do sentido da hermenêutica. Na tentativa que empreendi buscando descrever os problemas, deixei-me guiar pela experiência de sentido que podemos fazer com a linguagem para demonstrar o limite que lhe é imposto. O “ser para o texto”, que me serviu de orientação, não pode competir em radicalidade de experiência de limite com o “ser para a morte”, e a pergunta inesgotável pelo sentido da obra de arte ou pelo sentido da história que nos acontece, tampouco significa um fenômeno tão originário como a questão da finitude imposta à pre-sença humana. Nesse sentido, posso compreender por que o Heidegger tardio (e sobre isso talvez Derrida estivesse de acordo com ele) disse que eu não havia abandonado realmente a esfera da imanência fenomenológica presente em Husserl e em minha primeira formação neokantiana. Também consigo compreender que alguém creia ver esta “imanência” metodológica na insistência no círculo hermenêutico. De fato, querer romper este círculo parece-me uma exigência irrealizável, e até verdadeiramente contraditória. Como ocorre em Schleiermacher e em seu sucessor Dilthey, essa imanência nada mais é que a descrição do que é a compreensão. Desde Herder, entendemos por “compreender” algo mais que um procedimento metodológico para descobrir um sentido determinado. Ante a amplitude da compreensão, a circularidade que medeia entre o sujeito que compreende e aquilo que ele compreende deve reclamar para si uma verdadeira universalidade, e justamente aqui está o ponto no qual eu creio haver seguido a crítica de Heidegger ao conceito fenomenológico de imanência implícito na última fundamentação transcendental de Husserl. O caráter dialogai da linguagem, que eu busquei elaborar, ultrapassa o ponto de partida da subjetividade do sujeito, inclusive o do falante em sua referência ao sentido. O que se manifesta na linguagem não é a mera fixação de um sentido pretendido, mas um intento em constante mudança ou, mais precisamente, uma tentativa reiterada de deixar-se tomar por algo e com alguém. Mas isto significa expor-se. A linguagem está longe de ser uma mera explicitação e credenciamento de nossos preconceitos. Ela os coloca, antes, em jogo, os expõe à própria dúvida e à contraposição do outro. Quem já não fez a experiência — sobretudo frente ao outro, a quem queremos convencer — da facilidade com que alguém expressa suas razões, sobretudo as razões contrárias ao outro? A mera presença do outro, mesmo que ele nada diga, ajuda a revelar e desfazer a própria clausura e estreitamento. A (336) experiência dialogai produzida aqui não se limita à esfera das razões de uma e outra parte, cujo intercâmbio e coincidência podem definir o sentido de todo debate. Há algo mais, como mostram as experiências descritas; um potencial de alteridade, por assim dizer, que está além de todo consenso comum. Esse é o limite que Hegel não ultrapassou. É verdade que ele se deu conta do princípio especulativo que rege o logos, demonstrando-o até com certa figura de dramaticidade. Hegel desenvolveu a estrutura da autoconsciência e do “conhecimento de si mesmo na alteridade” como a dialética do reconhecimento, elevando essa dialética ao extremo da luta pela sobrevivência. Também Nietzsche, com sua aguda visão psicológica, revelou o substrato de “vontade de poder” presente até na submissão e no sacrifício: “também no escravo há vontade de poder”. Mas o fato de esta tensão entre a auto-renúncia e a auto-relação invadir a esfera das razões de uma e outra parte, a esfera portanto do debate temático, e de certo modo instalar-se nela, constitui o ponto onde Heidegger permanece para mim decisivo, justamente porque detecta aí o “logocentrismo” da ontologia grega. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Eu disse certa vez que “o sentido é sentido de direção”. E muitas vezes Heidegger utilizou-se de um arcaísmo ortográfico escrevendo a palavra Sein (ser) como Seyn para sublinhar seu caráter verbal. De modo parecido, deve-se ver minha tentativa de eliminar a herança da ontologia da substância, partindo da conversação e da linguagem comum, linguagem buscada e formada na conversação. Nessa linguagem o elemento determinante é a lógica de (370) pergunta e resposta. Ela abre uma dimensão de entendimento que transcende as expressões fixadas pela linguagem e, portanto, a síntese global no sentido da autocompreensão monológica da dialética. De certo, a dialética idealista não nega sua origem da estrutura fundamental especulativa da linguagem, como demonstrei na terceira parte de Verdade e método I. Mas, quando subordina a dialética a um conceito de ciência e de método, Hegel encobre na verdade sua procedência, sua origem na linguagem. A hermenêutica filosófica tem em mente assim a referência à unidade-dual especulativa que se desenrola entre o dito e o não dito, que na verdade precede a tensão dialética da contradição e sua superação num novo enunciado. Creio que a tentativa de converter em supersujeito o papel que eu reconheci na tradição, a saber, formular perguntas e projetar respostas, buscando reduzir, com isso, a experiência hermenêutica a uma parole vide, como fazem Manfred Frank e Forget, não passa de um erro grosseiro. Isso não encontra base alguma em Verdade e método. Em Verdade e método, tradição e diálogo não representam nenhum sujeito coletivo. Trata-se simplesmente de um coletivo para designar cada vez um texto concreto (no sentido mais amplo de texto, incluindo uma obra de pintura, um edifício e até mesmo um acontecimento natural). O diálogo socrático de cunho platônico é sem dúvida um gênero muito especial de conversação, conduzida por um interlocutor e seguida pelo outro, queira ou não. Mas ele serve de modelo para qualquer diálogo, porque nele não se refutam as palavras mas a alma do outro. O diálogo socrático não é nenhum jogo esotérico de disfarces para ocultar um saber mais fundamental. É a verdadeira realização da anamnesis, da recordação pensante, a única recordação possível para a alma decaída na finitude do corpóreo e que se realiza como conversação. O sentido da unidade especulativa que se realiza na virtualidade da palavra é justamente o fato de essa não ser uma palavra única nem um enunciado construído, mas ultrapassar tudo que é passível de ser enunciado. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Esse retorno à tradição da filosofia prática pode ajudar-nos na proteção frente à obviedade e naturalidade técnica do conceito moderno de ciência. Mas isso não esgota a minha intenção filosófica. (456) No diálogo hermenêutico em que nos encontramos, sinto que essa intenção filosófica não foi suficientemente levada em consideração. O conceito de jogo, que já há décadas eu deslocara da esfera subjetiva do “instinto de jogo” (Schiller), utilizando-o na crítica da “distinção estética”, implica um problema ontológico. Isso porque nesse conceito conjugam-se tanto o jogo recíproco de acontecer e compreender quanto os jogos de linguagem de nossa experiência de mundo em geral, tal como foram tematizados por Wittgenstein na intenção de criticar a metafísica. Mas o questionamento que eu faço só poderá apresentar-se como uma “ontologização” da linguagem aos olhos de quem deixar de questionar os pressupostos da instrumentalização da linguagem em geral. O que a experiência hermenêutica nos propõe é, na verdade, um problema filosófico, a saber, descobrir as implicações ontológicas inerentes ao conceito “técnico” de ciência e fomentar o reconhecimento teórico da experiência hermenêutica. Nesse sentido, o diálogo filosófico deve vir primeiro, não para renovar um platonismo, mas para renovar um diálogo com Platão, cujo questionamento ultrapasse os conceitos fixos da metafísica e sua inadvertida sobrevivência. Como reconhece muito bem Wiehl, as Fussnoten zu Plato (notas de pé de página a Platão) de Whitehead poderiam ser importantes para essa tarefa (cf. sua introdução à edição alemã do Adventures ofldeas, de Whitehead). Em todo caso, era minha intenção conjugar a dimensão da hermenêutica filosófica com a dialética platônica, e não com a hegeliana. O III volume de meus Kleine Schriften mostra, já no título, qual o tema do livro: Idee und Sprache (Ideia e linguagem). Toda honra seja dada à investigação moderna da linguagem. No entanto, a auto-evidência técnica da ciência moderna está privando-a da dimensão hermenêutica e da tarefa filosófica nela implicada. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

O que diferencia a práxis hermenêutica e sua disciplina da aprendizagem de uma mera técnica, seja uma técnica sociológica ou um método crítico, é que naquela um fator da história dos efeitos contribui constantemente para determinar a consciência de quem compreende. Isso implica necessariamente seu reverso, a saber, aquilo que é compreendido desenvolve sempre uma certa força de persuasão, colaborando assim na formação de novas persuasões. Não nego o fato de que quem busca compreender deve distanciar-se das próprias opiniões sobre as coisas. Aquele que quer compreender não precisa afirmar aquilo que está compreendendo. No entanto, penso que a experiência hermenêutica nos ensina que esse esforço só se torna eficiente dentro de certos limites. Aquilo que se compreende fala sempre também por si próprio. Nisso reside toda a riqueza do universo hermenêutico, que está aberto a tudo que é compreensível. Na medida em que coloca em jogo toda amplidão de seu espaço de jogo, o objeto obriga aquele que compreende a pôr em jogo seus próprios preconceitos. Esses são os benefícios da reflexão adquiridos na praxis e somente nela. O universo da experiência do filólogo e seu “ser para o texto”, que coloquei em primeiro plano, não passa de um fragmento e um campo de ilustração metodológica para a experiência hermenêutica, imbricada no todo da práxis humana. É verdade que nessa experiência a compreensão do que está escrito reveste-se de uma importância especial. Mas trata-se apenas de um fenômeno tardio e por isso secundário. A experiência hermenêutica tem na verdade um alcance tão amplo quanto o da disposição ao diálogo dos seres racionais. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

É verdade que também o neokantismo, com sua “história dos problemas”, tentara descobrir as próprias perguntas. Mas a pretensão de que esses problemas supratemporais, “eternos”, se reiterassem em contextos sistemáticos sempre novos era incomprovada, e na verdade esses problemas “idênticos” se extraíam ingenuamente do material de construção da filosofia idealista e neokantiana. Contra essa suposta supratemporalidade, a objeção do ceticismo histórico-relativista era óbvia e irrefutável. Mas quando aprendi com Heidegger a conduzir o pensamento histórico para a recuperação dos questionamentos da tradição, que as velhas questões tornavam-se tão compreensíveis e vivas que se convertiam em verdadeiras perguntas. O que estou descrevendo é a experiência hermenêutica fundamental, como a caracterizaria hoje. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

O fato de ter condensado em uma ampla obra meu compromisso apaixonado como professor devo à necessidade óbvia de refletir sobre o modo como se poderia trazer a uma real atualidade os diversos caminhos filosóficos que se tinha que seguir no ensino, partindo da situação filosófica do presente. O esquema de um processo histórico construído a priori (Hegel) pareceu-me tão insatisfatório como a neutralidade relativista do historicismo. Acontecia-me como acontecia a Leibniz que assegurava estar de acordo com quase tudo que lia. Mas diferentemente do grande pensador, nessa experiência não me senti estimulado a esboçar uma ampla síntese. Perguntava, antes, se a filosofia tinha o direito de pleitear essa tarefa sintética e se não deveria, antes, manter-se aberta de modo radical ao progresso da experiência hermenêutica, acolhendo tudo que fosse esclarecedor e opondo-me na medida do possível a que aquilo que houvesse ganhado clareza voltasse ao obscurecimento… A filosofia é esclarecimento, mas esclarecimento inclusive contra o dogmatismo de si mesma. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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