Gadamer (VM): exercício hermenêutico

Se o que ocorre ali é uma autocompreensão, trata-se então de uma autocompreensão muito paradoxal, para não dizer negativa, onde nos vemos chamados à conversão. De certo, essa autocompreensão não estabelece um critério para a interpretação teológica do Novo Testamento. Além do mais, os próprios textos do Novo Testamento já são interpretações da mensagem salvífica e mediadores da boa-nova sem nenhuma pretensão de ser compreendidos em si mesmos. Terá sido essa condição que lhes conferiu sua liberdade expressiva, tornando-os testemunhos desinteressados? Por mais gratos que sejamos às recentes investigações teológicas a respeito da intenção teológica dos próprios autores do Novo Testamento, o anúncio do Evangelho fala por intermédio de todas essas mediações, de maneira semelhante ao que ocorre com uma lenda que continua a ser transmitida ou a uma tradição mítica, constantemente transformada e renovada pela grande poesia. Parece-me que a verdadeira realidade do exercício hermenêutico abrange a autocompreensão do intérprete e do interpretado. Nesse sentido, a “desmitologização” não se dá apenas na atividade do teólogo. Ela se dá na própria Bíblia. Todavia, nem numa nem em outra a “desmitologização” pode ser garantia segura para uma compreensão correta. O verdadeiro evento da compreensão ultrapassa tudo que pode ser produzido por meio do esforço metodológico e do autocontrole crítico com vistas à compreensão das palavras do outro. Ultrapassa também tudo aquilo de que nós próprios podemos ter consciência. De todo diálogo, pode-se dizer que através dele surge outra coisa diferente. A palavra de Deus que convoca para a conversão e nos promete uma melhor compreensão de nós mesmos não pode ser compreendida como um objeto que se encontra ali, à nossa frente. Não somos nós mesmos que compreendemos, ali. É sempre um passado que nos permite dizer: compreendi. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Mas a crítica hermenêutica só adquire sua verdadeira eficácia quando produz auto-reflexão, ou seja, quando consegue refletir sobre seu próprio esforço crítico, sobre as suas próprias condições e dependências. Uma reflexão hermenêutica capaz de realizar essa auto-reflexão parece-me estar muito próxima de um verdadeiro ideal de conhecimento, porque torna consciente a ilusão da própria reflexão. Uma consciência crítica, que demonstra por toda parte a existência de preconceitos e dependências, mas que se considera ela mesma absoluta, isto é, independente e livre de preconceitos, permanece necessariamente presa a ilusões. Pois é motivada justamente pelo que ela critica. Está de forma irrecusável dependente do que pretende dissolver. A pretensão de uma ausência total de (183) preconceitos é uma ingenuidade, seja na forma delirante de um iluminismo absoluto, seja como o delírio de um empirismo livre de todos os preconceitos da tradição metafísica, ou ainda como o delírio de uma superação da ciência pela crítica ideológica. Em todo caso, ao refletir sobre si própria, a consciência hermenêutica iluminista parece-me fazer valer uma verdade superior. Sua verdade é a verdade da tradução. A sua superioridade consiste em apropriar-se do estranho, não simplesmente dissolvendo-o criticamente ou reproduzindo-o acritícamente, mas conferindo-lhe nova validade a partir do momento em que o interpreta no horizonte de seus próprios conceitos. A tradução permite que o estranho e o próprio se conjuguem numa nova configuração, à medida que respeita o ponto de verdade do outro frente a si própria. Nessa forma de prática reflexiva, o que se dá como formulado na linguagem se vê de certo modo superado, ou seja, retirado de sua própria estrutura de mundo própria da linguagem. Mas essa nova realidade, e não nossa própria opinião sobre ela, insere-se numa nova interpretação de mundo feita na linguagem. Nesse processo de constante avanço do pensamento, em que se respeita o outro em relação a si mesmo, demonstra-se o poder da razão. A razão sabe que o conhecimento humano é e permanece limitado, mesmo quando sabe de seus limites. A reflexão hermenêutica exerce assim uma autocrítica da consciência pensante que retraduz todas as suas abstrações, inclusive os conhecimentos das ciências, para o conjunto da experiência humana de mundo. A filosofia que, expressamente ou não, deve ser sempre uma crítica do pensamento tradicional, é esse exercício hermenêutico que incorpora as totalidades estruturais, elaboradas pela análise semântica, no continuum da tradução e da conceituação, onde existimos e desaparecemos. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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