Gadamer (VM): estrutura circular da compreensão

Heidegger somente entra na problemática da hermenêutica e das críticas históricas com a finalidade ontológica de desenvolver, a partir delas, a pré-estrutura da compreensão. Já nós, pelo contrário, perseguimos a questão de como, uma vez liberada das inibições ontológicas do conceito de objetividade da ciência, a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão. A autocompreensão tradicional da hermenêutica repousava sobre seu caráter de teoria da arte. Isso vale inclusive para a extensão diltheyana da hermenêutica como organon das ciências do espírito. Pode até parecer duvidoso que exista uma tal teoria da arte da compreensão; sobre isso voltaremos mais tarde. Em todo caso, cabe indagar pelas consequências que tem para a hermenêutica das ciências do espírito o fato de Heidegger derivar fundamentalmente a estrutura circular da compreensão a partir da temporalidade da pre-sença. Essas consequências não necessitam ser tais, como se aplicasse uma nova teoria à práxis e esta fosse exercida por fim, de uma maneira diferente, de acordo com sua arte. Poderiam também consistir em que a autocompreensão da compreensão exercida constantemente fosse corrigida e depurada de adaptações inadequadas; um processo que mormente se optimalizaria por meio da arte do compreender. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Face a isso, a descrição e a fundamentação existencial do círculo hermenêutico, devidas a Heidegger, representam uma mudança decisiva. E claro que a teoria da hermenêutica do século XIX falava da estrutura circular da compreensão, mas sempre inserida na moldura de uma relação formal entre o individual e o todo, assim como de seu reflexo subjetivo, a antecipação intuitiva do todo e sua explicação subsequente no individual. Segundo essa teoria, o movimento circular da compreensão vai e vem pelos textos, e quando a compreensão dos mesmos se completa, ele é suspenso. Consequente, a teoria da compreensão de Schleiermacher culmina numa teoria do ato adivinhatório, mediante o qual o intérprete se funde por inteiro no autor e resolve, a partir daí, tudo o que é estranho ou estranhável no texto. Heidegger, pelo contrário, descreve esse círculo de uma forma tal que a compreensão do texto se encontre determinada, continuamente, pelo movimento de concepção prévia da pré-compreensão. O círculo do todo e das partes não se anula na compreensão total, mas nela alcança sua mais autêntica realização. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Isso se mostra com clareza ainda maior quando observamos a hermenêutica à luz do questionamento desenvolvido por Heidegger. A partir da análise da existência de Heidegger, a estrutura circular da compreensão recupera sua significação de conteúdo. Heidegger escreve: “O círculo não deve ser rebaixado a um vitiosum, mesmo que apenas tolerado. Nele se esconde a possibilidade positiva do conhecimento mais originário que, de certo, só pode ser apreendida de modo autêntico se a interpretação tiver compreendido que sua primeira, única e última tarefa é de não se deixar guiar, na posição prévia, visão prévia e concepção prévia, por conceitos ingênuos e ‘chutes’. Ela deve, na elaboração da posição prévia, da visão prévia e concepção prévia, assegurar o tema científico a partir das coisas elas mesmas”. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

Na analítica de Heidegger, portanto, o círculo hermenêutico ganha uma significação totalmente nova. A estrutura circular da compreensão manteve-se, na teoria que nos precedeu, sempre nos quadros de uma relação formal entre o individual e o todo ou de seu reflexo subjetivo: a antecipação divinatória do todo e sua explicitação consequente no caso singular. Segundo esta teoria, portanto, o movimento circular oscilava no texto e acabava suspenso com sua completa compreensão. A teoria da compreensão culminava num ato divinatório que se transferia totalmente ao autor e, a partir dali, procura dissolver tudo que é estranho ou causava estranheza no texto. Heidegger, pelo contrário, reconhece que a compreensão do texto permanece sempre determinada pelo movimento pré-apreensivo da compreensão prévia. O que Heidegger descreve dessa forma não é outra coisa do que a tarefa de concretização da consciência histórica. Junto com essa concretização, exige-se tomar consciência das próprias opiniões prévias e preconceitos e realizar a compreensão guiada pela consciência histórica, de forma que a apreensão da alteridade histórica e o emprego que ali se faz dos métodos históricos não consista simplesmente em deduzir o que a ela se atribuiu de antemão. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

A reflexão hermenêutica teve que elaborar assim uma teoria dos preconceitos que, sem menosprezar o sentido de crítica de todos os preconceitos que ameaçam o conhecimento, faz justiça ao sentido produtivo da compreensão prévia, que é premissa de toda compreensão. O condicionamento hermenêutico do compreender, tal como vem formulado na teoria da interpretação e sobretudo na doutrina do círculo hermenêutico, não se limita às ciências históricas, nas quais a situação do investigador forma parte das condições práticas do conhecimento. A hermenêutica encontra aqui seu caso exemplar, na medida em que na estrutura circular da compreensão se retrata também a mediação entre a história e o presente. Essa mediação precede todo distanciamento e estranhamento históricos. A pertença do intérprete a seu “texto”, como a pertença do destino humano a sua história, é evidentemente uma relação hermenêutica fundamental que não se pode eliminar, com belas sentenças, como acientífica. Deve-se assumi-la conscientemente como a única atitude adequada à cientificidade do conhecimento. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.