Outra coisa é, porém, a questão da consistência interna da obra, do que se fez dentro de seus limites. Nesse sentido, quero que este volume, o segundo de minhas obras completas, entre como complemento. O seu conteúdo divide-se em três seções: Preliminares, que podem ser úteis à sua própria conceptibilidade prévia; Complementos, que se impuseram no decorrer dos anos (essas duas partes já foram publicadas, no essencial, em meus Kleine Schriften). A parte mais importante desse volume II contém Outros desenvolvimentos; em parte, já previstos, mas em parte provocados pelas discussões críticas de minhas ideias. A teoria da Literatura, especificamente, constava desde o princípio de meus planos como um desenvolvimento de meus pensamentos, e que aparece mais detalhadamente agora (nos volumes VIII e IX dos Gesamelte Schriften) numa sintonia mais estreita com a práxis hermenêutica. As questões fundamentais de caráter hermenêutico receberam novas luzes tanto nas discussões com Habermas quanto nos reiterados encontros com DERRIDA, que se enquadram perfeitamente no contexto deste volume. Por fim, acrescentaram-se no anexo os excursos, os complementos, prefácios e posfácios acrescidos às edições posteriores de Verdade e método. Minha auto-apresentação, escrita em 1973, conclui este volume. Os índices remissivos comuns aos volumes I e II acentuam a pertença mútua dos dois volumes. Com este volume espero ter a oportunidade de melhorar as deficiências de meu livro e de ajudar aos mais jovens na continuidade do trabalho. VERDADE E METODO II Introdução 1
Aqui a dialética de pergunta e resposta não se sustenta. A obra de arte caracteriza-se sobretudo pelo fato de jamais podermos compreendê-la completamente. Isso quer dizer que se nos aproximarmos dela e a interrogarmos jamais receberemos uma resposta definitiva a partir da qual possamos afirmar “agora eu sei”. Dela não se extrai uma informação precisa — e pronto! Não se podem haurir de uma obra de arte as informações que ela esconde em si, de modo a esvaziá-la como ocorre com comunicados que recebemos. A recepção de uma obra poética, seja pelo ouvido real ou somente por aquele ouvido interior que escuta na leitura, apresenta-se como um movimento circular, no qual as respostas repercutem em novas perguntas e provocam novas respostas. Isso motiva a demora junto à obra de arte — seja ela de que espécie for. A atitude de demorar-se é certamente a caracterização específica na experiência da arte. Uma obra de arte jamais se esgota. Ela nunca está vazia. Definimos, pelo contrário, a não-arte, a imitação ou a arte interesseira e similares, precisamente pelo fato de julgá-las “vazias”. Nenhuma obra de arte nos fala sempre do mesmo modo. E a consequência é que nós também precisamos responder cada vez de modo diferente. Diferentes sensibilidades, diferentes percepções, diferentes aberturas fazem com que a configuração única, própria, una e mesma — a unidade da expressão artística — se manifeste numa multiplicidade inesgotável de respostas. Considero um erro querer contrapor essa multivariedade infindável à identidade irredutível da obra. Frente à estética da recepção de Jauss e ao desconstrutivismo de DERRIDA (que nesse ponto se aproximam), parece-me ser o caso de afirmar que insistir na identidade de sentido de um texto não significa recair no superado platonismo de uma estética classista e nem aprisionar-se na metafísica. VERDADE E METODO II Introdução 1
Por isso, não consigo ver claramente por que alguns dos melhores críticos recentes da hermenêutica, como Heiner Anz, Manfred Frank ou Thomas Seebohm, consideram que o fato de eu continuar empregando conceitos tradicionais da filosofia seria uma inconsistência de meu projeto de pensamento. Este argumento foi empregado de maneira semelhante por DERRIDA contra Heidegger. Heidegger teria malogrado na superação da metafísica levada a efeito, na verdade, por Nietzsche. Na sequência lógica dessa argumentação, a recente recepção francesa de Nietzsche acaba desembocando na dissolução da questão do ser e da questão do sentido como tais. VERDADE E METODO II Introdução 1
Talvez aqui seja o lugar para se fazer algumas observações às ampliações e apresentações autônomas do problema hermenêutico, do modo como foram apresentadas de um lado por Hans-Robert Jauss e Manfred Frank e, por outro, por Jacques DERRIDA. É sem dúvida incontestável que a estética da recepção, desenvolvida por Jauss, enfocou sob uma nova luz toda uma dimensão da pesquisa literária. No entanto, será justo seu posicionamento contra o que tenho em mente com minha hermenêutica filosófica? Parece-me que a ilustração da historicidade da compreensão, que apresentei no exemplo do conceito do clássico, é mal-entendida, toda vez que atribuímos a palavra aqui ao classicismo e ao conceito vulgar de platonismo. Dá-se exatamente o contrário. O exemplo do clássico, em Verdade e método I, quer ilustrar o quanto a mobilidade histórica está incluída na atemporalidade daquilo que se chama de clássico (e que contém, todavia, um componente normativo, mas nenhuma caracterização de estilo), de tal forma que a compreensão se transforma e se renova constantemente. O exemplo do clássico, portanto, nada tem a ver com o ideal de estilo clássico e nem com o conceito vulgar de platonismo, que considero uma deformação das reais intenções de Platão. Neste ponto, Oskar Becker viu melhor do que Jauss, quando me acusou, em sua crítica, de estar sendo tomado pela história, e arrolou contra mim o pitagorismo do número, do som e do sonho. Não me senti atingido, neste particular. Mas não vamos tratar disso aqui. A estética da recepção de Jauss seria, ela própria, truncada, segundo me parece, se quisesse dissolver a obra que subjaz em cada configuração receptiva em meras facetas. VERDADE E METODO II Introdução 1
Os novos trabalhos de Manfred Frank forneceram, nesse meio tempo, ao leitor alemão as bases do neo-estruturalismo. Isso esclareceu-me muita coisa. De modo especial ficou claro, na explanação de Frank, até que ponto a refutação da metafísica da présence em DERRIDA orienta-se pela crítica que Heidegger dirige a Husserl e sua crítica à ontologia grega, sob o conceito do “ser simplesmente dado” (”Vorhandenheit”). Nesse proceder, porém, não se faz plenamente justiça nem a Husserl, nem a Heidegger. Husserl não se deteve no ideal-da-significação-una, sobre a qual fala a primeira investigação lógica, mas intentou demonstrar a identidade por ele ali suposta, através de uma análise do tempo. VERDADE E METODO II Introdução 1
A identidade do eu, assim como a identidade do sentido, que se constrói através dos participantes do diálogo, permanece intocada. É evidente que nenhuma compreensão de um pelo outro dialogante consegue abranger todo o âmbito do compreendido. Nesse ponto, a análise hermenêutica deve se desfazer de um falso modelo de compreensão e entendimento. Por isso, no entendimento, jamais se dá o caso de a diferença ser tragada pela identidade. Quando dizemos que nos entendemos sobre alguma coisa, isso não significa, em absoluto, que um tenha uma opinião idêntica ao outro. “Chega-se a um acordo”, como diz muito bem a expressão. É uma forma mais elevada de syntheke, se quisermos servir-nos da genialidade da língua grega. A meu ver, querer isolar e fazer objeto de crítica os elementos do discurso, do discurs, é um desvirtuamento da perspectiva. Assim, na realidade, esses elementos não se dão, e torna-se compreensível por que, do ponto de vista dos “signos”, precisamos falar de différance ou différence. Nenhum signo, no sentido absoluto de significado, é idêntico a si mesmo. A crítica de DERRIDA contra o platonismo, que ele supõe encontrar-se nas Investigações lógicas de Husserl e no conceito de intencionalidade, no Ideen I, não deixa de ter razão. Isso, porém, já foi esclarecido por Husserl há muito tempo. Partindo do conceito de síntese passiva e da teoria das intencionalidades anônimas, parece-me, na verdade, haver uma linha transparente que chega à experiência hermenêutica, a qual, suposto que se refute a violência metodológica do modo de pensar transcendental, pode coincidir amplamente com minha máxima: “Quando se consegue compreender, compreende-se de modo diferente”. Depois da conclusão de Verdade e método I, o tema preferencial de minhas pesquisas foi durante décadas o lugar que o conceito de literatura ocupa no círculo de questionamento da hermenêutica. Confira neste volume os artigos “Texto e interpretação” e “Destruição e desconstrução”, assim como os trabalhos apresentados nos volumes VIII e IX. Como disse inicialmente, em Verdade e método I, parece-me que ainda não se alcançou, com precisão, a diferenciação necessária entre o jogo da linguagem e o jogo da arte e, na realidade, a mútua pertença de linguagem e arte em nenhum lugar é tão palpável como no caso da literatura, que se define justamente através da arte da linguagem — e do escrever! VERDADE E METODO II Introdução 1
Pequena errata: Atualmente, a discussão entre hermenêutica e desconstrutivismo continua viva. Cf. a excelente crítica de J. Habermas a DERRIDA, in: Der philosophische Diskurs der moderne (O discurso filosófico da modernidade), Frankfurt 1985, p. 19ls, assim como o debate Text und Interpretation, em língua inglesa, por Dallmayr (preparado em Iowa), as observações que eu fiz a F. Dall-mayr, Polis and Praxis (Cambridge 1984), que completam Destruição e desconstrução (cf. abaixo, p. 418). VERDADE E METODO II Introdução 1
O problema hermenêutico adquiriu uma nova ênfase na esfera da lógica das ciências sociais. Certamente, dever-se-á reconhecer que a dimensão hermenêutica encontra-se à base de toda experiência de mundo, desempenhando por isso uma função também no trabalho das ciências naturais, como ficou demonstrado sobretudo por Thomas Kuhn. E isso vale ainda com mais decisão para as ciências sociais, pois, à medida que a sociedade possui sempre uma existência compreendida no âmbito da linguagem, o próprio campo de objetos das ciências sociais (e não apenas sua formação teórica) é presidido pela dimensão hermenêutica. Em certo sentido, a crítica hermenêutica ao objetivismo ingênuo das ciências do espírito tem sua contrapartida na crítica da ideologia, inspirada em Marx (Habermas; cf. também a forte polêmica de Hans Albert contra essa corrente). Também a cura pelo diálogo representa um fenómeno hermenêutico eminente, cujas bases teóricas foram rediscutidas por J. Lacan e P. Ricoeur. O alcance da analogia entre doenças mentais e doenças sociais parece-me profundamente questionável. A situação do cientista social frente à sociedade não é a mesma que a do psicanalista frente a seu paciente. Uma crítica da ideologia que pensa estar isenta de toda preocupação ideológica não é menos dogmática que uma ciência social “positivista” que se compreende como técnica social. Frente a essas tentativas de mediação, parece-me compreensível a oposição defendida por DERRIDA entre a teoria da desconstrução e a hermenêutica. A experiência hermenêutica, no entanto, defende seu próprio direito contra uma tal teoria da desconstrução do “sentido”. Apesar de Nietzsche, buscar “sentido” na écriture nada tem a ver com metafísica. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8
Nesse sentido, o encontro com o cenário francês significa um verdadeiro desafio para mim. DERRIDA assevera que o Heidegger tardio não rompeu realmente com o logocentrismo da metafísica. Ao perguntar pela essência da verdade ou pelo sentido do ser, Heidegger segue falando, segundo DERRIDA, a linguagem da metafísica, que considera o sentido como algo que está à mão e que é preciso encontrar. Nessa questão, Nietzsche teria sido mais radical. Seu conceito de interpretação não significa a busca de um sentido simplesmente dado, mas a posição de sentido a serviço da “vontade de poder”. Somente assim rompe-se com o logocentrismo da metafísica. Essa continuação das ideias de Heidegger por obra sobretudo de DERRIDA, e que se apresenta como a radicalização dessas ideias, deverá repudiar logicamente a exposição e crítica de Nietzsche feita por Heidegger. Segundo DERRIDA, Nietzsche não representa o ponto extremo do esquecimento do ser, que culmina nos conceitos de valor e de ação. Ele constitui a verdadeira superação da metafísica, na qual Heidegger fica prisioneiro quando pergunta pelo ser, pelo sentido do ser como um logos a ser buscado. Não resta dúvidas de que, para fugir da linguagem da metafísica, o Heidegger tardio elaborou ele próprio sua linguagem semipoética. De ensaio em ensaio aparece uma nova linguagem, que impõe ao leitor a tarefa de constante tradução dessa linguagem para seu próprio uso. A questão é saber até que ponto alguém consegue encontrar a linguagem para expressar essa tradução. A tarefa, porém, está proposta. É a tarefa de “compreender”. Sobretudo ao defrontar-me com os seguidores franceses, tenho plena consciência de que minhas próprias tentativas de “traduzir” Heidegger denunciam meus limites, e mostrando sobretudo até que ponto eu mesmo estou preso à tradição romântica das ciências do espírito e do legado humanista. Mas é exatamente frente a essa tradição do “historicismo” na qual estou imerso que adotei uma postura crítica. Numa carta pessoal já publicada, Leo Strauss já me chamara a atenção de que se Nietzsche constituía o ponto de orientação crítica para Heidegger, Dilthey o era para mim. Talvez a característica determinante da radicalidade de Heidegger tenha sido o fato de que sua própria crítica ao neokantismo fenomenológico de cunho husserliano acabou levando-o a considerar Nietzsche como o ponto extremo do que ele chama história do esquecimento do ser. Mas essa é uma afirmação eminentemente crítica que não se detém aquém de Nietzsche, mas ultrapassa-o. Na corrente nietzschiana francesa, sinto falta de um esclarecimento do que significa a dimensão sedutora do pensamento nietzschiano. Creio que é por causa dessa falta que chegam a pensar que a experiência do ser que Heidegger buscou descobrir por trás da metafísica é superada pela radicalidade do extremismo nietzschiano. Na verdade, a imagem de Nietzsche apresentada por Heidegger mostra melhor a profunda ambiguidade que se apresenta em seu pensamento quando se alcança segui-lo até seu ponto extremo e de ver em ação, justamente ali, o absurdo da metafísica, uma vez que a criação e transmutação de todos os valores acabam convertendo o próprio ser num conceito axiológico a serviço da “vontade de poder”. A tentativa de Heidegger de pensar o ser supera essa conversão da metafísica em pensamento axiológico, ou melhor, retrocede para além da própria metafísica, sem conformar-se com o extremismo de sua autodissolução, como acontece em Nietzsche. Esse perguntar retrospectivo não suspende o conceito de logos e suas implicações metafísicas, mas descobre sua unilateralidade e, por fim, sua “superficialidade”. Nesse sentido, o fato de o ser não se esgotar em sua automanifestação, mas, com a mesma originariedade com que se mostra, também se retraia e subtraia, isso reveste-se de uma importância decisiva. Essa é uma intuição autêntica defendida primeiramente por Schelling contra o idealismo lógico de Hegel. Heidegger retoma esta questão, reforçando-a com uma riqueza conceitual da qual Schelling carecia. VERDADE E METODO II OUTROS 24
De minha parte, procurei não esquecer o limite implícito em toda experiência hermenêutica do sentido. Ao escrever que “o ser que pode ser compreendido é linguagem”, essa frase dava a entender que o que é nunca pode ser inteiramente compreendido. Isso porque o que serve de orientação a uma linguagem sempre ultrapassa aquilo que nela se enuncia. O que vem à linguagem permanece como aquilo que deve ser compreendido, mas sem dúvida é sempre tomado e percebido como algo. Essa é a dimensão hermenêutica na qual o ser “se mostra”. A “hermenêutica da facticidade” significa uma transformação do sentido da hermenêutica. Na tentativa que empreendi buscando descrever os problemas, deixei-me guiar pela experiência de sentido que podemos fazer com a linguagem para demonstrar o limite que lhe é imposto. O “ser para o texto”, que me serviu de orientação, não pode competir em radicalidade de experiência de limite com o “ser para a morte”, e a pergunta inesgotável pelo sentido da obra de arte ou pelo sentido da história que nos acontece, tampouco significa um fenômeno tão originário como a questão da finitude imposta à pre-sença (Dasein) humana. Nesse sentido, posso compreender por que o Heidegger tardio (e sobre isso talvez DERRIDA estivesse de acordo com ele) disse que eu não havia abandonado realmente a esfera da imanência fenomenológica presente em Husserl e em minha primeira formação neokantiana. Também consigo compreender que alguém creia ver esta “imanência” metodológica na insistência no círculo hermenêutico. De fato, querer romper este círculo parece-me uma exigência irrealizável, e até verdadeiramente contraditória. Como ocorre em Schleiermacher e em seu sucessor Dilthey, essa imanência nada mais é que a descrição do que é a compreensão. Desde Herder, entendemos por “compreender” algo mais que um procedimento metodológico para descobrir um sentido determinado. Ante a amplitude da compreensão, a circularidade que medeia entre o sujeito que compreende e aquilo que ele compreende deve reclamar para si uma verdadeira universalidade, e justamente aqui está o ponto no qual eu creio haver seguido a crítica de Heidegger ao conceito fenomenológico de imanência implícito na última fundamentação transcendental de Husserl. O caráter dialogai da linguagem, que eu busquei elaborar, ultrapassa o ponto de partida da subjetividade do sujeito, inclusive o do falante em sua referência ao sentido. O que se manifesta na linguagem não é a mera fixação de um sentido pretendido, mas um intento em constante mudança ou, mais precisamente, uma tentativa reiterada de deixar-se tomar por algo e com alguém. Mas isto significa expor-se. A linguagem está longe de ser uma mera explicitação e credenciamento de nossos preconceitos. Ela os coloca, antes, em jogo, os expõe à própria dúvida e à contraposição do outro. Quem já não fez a experiência — sobretudo frente ao outro, a quem queremos convencer — da facilidade com que alguém expressa suas razões, sobretudo as razões contrárias ao outro? A mera presença do outro, mesmo que ele nada diga, ajuda a revelar e desfazer a própria clausura e estreitamento. A experiência dialogai produzida aqui não se limita à esfera das razões de uma e outra parte, cujo intercâmbio e coincidência podem definir o sentido de todo debate. Há algo mais, como mostram as experiências descritas; um potencial de alteridade, por assim dizer, que está além de todo consenso comum. Esse é o limite que Hegel não ultrapassou. É verdade que ele se deu conta do princípio especulativo que rege o logos, demonstrando-o até com certa figura de dramaticidade. Hegel desenvolveu a estrutura da autoconsciência e do “conhecimento de si mesmo na alteridade” como a dialética do reconhecimento, elevando essa dialética ao extremo da luta pela sobrevivência. Também Nietzsche, com sua aguda visão psicológica, revelou o substrato de “vontade de poder” presente até na submissão e no sacrifício: “também no escravo há vontade de poder”. Mas o fato de esta tensão entre a auto-renúncia e a auto-relação invadir a esfera das razões de uma e outra parte, a esfera portanto do debate temático, e de certo modo instalar-se nela, constitui o ponto onde Heidegger permanece para mim decisivo, justamente porque detecta aí o “logocentrismo” da ontologia grega. VERDADE E METODO II OUTROS 24
Não podemos analisar aqui como foi que, partindo de sua intenção fundamental, Heidegger manteve e subsumiu em seu pensamento tardio a obra de destruição de seus inícios. O estilo sibilino de seus últimos escritos atesta isso muito claramente. Ele estava plenamente consciente de sua carência de linguagem assim como da nossa. Ao lado de suas próprias tentativas de abandonar “a linguagem da metafísica” com a ajuda da linguagem poética de Hölderlin, parece-me que só houve dois caminhos transitáveis para indicar esse caminho que leva ao aberto, frente à autodomesticação ontológica própria da dialética. Esses dois caminhos foram efetivamente transitados. Um deles é o regresso da dialética ao diálogo e desse à conversação. Eu mesmo procurei seguir esse caminho em minha hermenêutica filosófica. O outro caminho é o da desconstrução, estudado por DERRIDA. Não se trata aqui de resgatar o sentido que desaparecera da vivacidade da conversação. No pano de fundo da trama das relações de sentido que sustentam todo falar, num conceito ontológico de écriture, portanto — em lugar do falatório ou da conversação — deve-se dissolver a unicidade de sentido, levando a cabo, assim, a verdadeira ruptura da metafísica. VERDADE E METODO II OUTROS 25
No âmbito dessa tensão, produzem-se as mais peculiares mudanças de acento. Segundo a filosofia hermenêutica, a teoria de Heidegger sobre a superação da metafísica que desemboca do esquecimento total do ser durante a era tecnológica, passa ao largo da permanente resistência e tenacidade das unidades da vida, que continuam existindo nos pequenos e grandes grupos de coexistência inter-humana. Segundo o desconstrutivismo, ao contrário, quando Heidegger pergunta pelo sentido do ser falta-lhe radicalidade extrema. Com isso, ele se atém a um sentido interrogativo que, de certo modo, não pode obter nenhuma resposta razoável. À pergunta pelo sentido do ser, DERRIDA opõe a diferença primária. Ele considera Nietzsche como uma figura muito mais radical frente à pretensão metafisicamente mediana do pensamento heideggeriano. Heidegger estaria ainda situado na linha do logocentrismo, ao que ele contrapõe o lema do sentido que está em constante desconexão e deslocamento que desfaz toda reunião em unidade, e que ele chama de écriture. Fica claro que Nietzsche representa aqui o ponto crítico. VERDADE E METODO II OUTROS 25
A dimensão interrogativa em que nos movemos aqui nada tem a ver com um código que se procura decifrar. De certo, esse código decifrado forma a base de toda escritura e leitura de textos. Representa, porém, uma mera condição prévia em função do esforço hermenêutico para saber o que se diz nas palavras. Nesse sentido, concordo plenamente com a crítica ao estruturalismo. 371] Mas creio ultrapassar a desconstrução de DERRIDA, ao afirmar que as palavras só existem na conversação, e as palavras na conversação não se dão como palavras isoladas, mas como o conjunto de um processo de fala e resposta. VERDADE E METODO II OUTROS 25
E evidente que o princípio de desconstrução busca o mesmo. Também DERRIDA busca superar um âmbito de sentido metafísico que forma a base das palavras e seus significados no processo que ele chama de écriture e cuja realização não é um ser essencial, mas a linha, o rastro indicador. Desse modo, DERRIDA ataca o conceito metafísico de logos e fala de um logocentrismo, que afetaria inclusive a questão do ser em Heidegger como pergunta pelo sentido do ser. Trata-se de um Heidegger estranho, reinterpretado na perspectiva de Husserl, como se a fala consistisse sempre em enunciados ao modo de juízo. Nesse sentido, pode-se dizer que a infatigável constituição de sentido a que se dedica a investigação fenomenológica e que se realiza no ato de pensar como cumprimento de uma intenção da consciência, refere-se à “presença”. A voz (la voix) que anuncia está subordinada de certo modo à presença do que é pensado no pensamento. Na verdade, também no esforço de Husserl em favor de uma filosofia honesta é a experiência de tempo e a consciência de tempo que precedem toda “presença” e toda constituição, inclusive de aquela de validade supratemporal. Mas o problema do tempo torna-se insolúvel no pensamento de Husserl porque no fundo ele mantém o conceito grego de ser, que o próprio Agostinho já havia desqualificado através do enigma presente no ser do tempo, a saber, o tempo “agora” é e também não é, para expressá-lo com Hegel. VERDADE E METODO II OUTROS 25
É por isso que tanto DERRIDA quanto Heidegger aprofundam-se na misteriosa variedade existente na palavra e na multiplicidade de seus significados, no potencial indeterminado de suas diferenciações semânticas. Quando, pelo questionamento, Heidegger remonta da frase e do enunciado para a abertura do ser que possibilita as palavras e as frases, ultrapassa de certo modo toda dimensão das frases formadas de palavras, dos contrastes e contradições. Numa linha semelhante, DERRIDA parece seguir as pegadas, que só dão na sua leitura. Sobretudo a partir da análise do tempo de Aristóteles, tentou inferir que “o tempo” aparece diante do ser como difierance. Mas como lê Heidegger a partir de Husserl, lança mão da conceitualidade husserliana que se deixa sentir em Ser e tempo e em sua autodescrição transcendental, como prova do logocentrismo de Heidegger; e quando eu considero como a verdadeira realidade da linguagem não só o diálogo mas também a poesia e sua manifestação ao ouvido interior, DERRIDA o classifica “fonocentrismo”. Como se a fala ou a voz só ganhassem presença em sua realização, mesmo para a consciência reflexiva mais esforçada, e isso não fosse antes seu próprio desaparecimento. A indicação de que não estaria consciente justamente porque está “pensando” não é um argumento arbitrário da reflexão, mas uma recordação do que acontece a todo aquele que fala e a todo aquele que pensa. VERDADE E METODO II OUTROS 25
Talvez a crítica que DERRIDA dirige à interpretação heideggeriana de Nietzsche — interpretação que a mim me convenceu — possa servir de ilustração para a problemática que levantamos e que nos tem ocupado. Temos de um lado a desconcertante riqueza de aspectos e o incessante jogo de disfarces, no qual a audácia mental de Nietzsche parece dispersar-se numa variedade inapreensível. De outro, a pergunta a ele dirigida: o que significa o jogo dessa audácia. Não que o próprio Nietzsche tivesse presente a unidade na dispersão, nem que tivesse traduzido em conceitos o nexo interno entre o princípio básico da vontade de poder e a mensagem meridiana do eterno retorno do mesmo. Se eu compreendo Heidegger, é precisamente isso o que Nietzsche não fez, de modo que as metáforas de suas últimas visões aparecem como facetas reflexivas, detrás das quais não há uma realidade unívoca. Essa seria, segundo Heidegger, a posição final de Nietzsche, onde se esquece e se perde a pergunta pelo ser. Assim, a era tecnológica na qual o niilismo alcança sua perfeição, significaria de fato, segundo o próprio Heidegger, o eterno retorno do mesmo. Pensar isso, assimilar a Nietzsche pelo pensamento, não me parece ser nenhuma recaída na metafísica e em seu esquema ontológico, que culmina no conceito de essência. Nesse caso, os caminhos de Heidegger, que estão a caminho de uma “essência” de estrutura radicalmente distinta, temporal, não se perderiam sempre de novo no intransitável. O diálogo que continuamos em nosso próprio pensamento e que talvez se enriquece em nosso tempo com novos e grandes interlocutores, numa humanidade de dimensões planetárias, deveria buscar sempre seu interlocutor… especialmente se esse interlocutor é radicalmente distinto. Aquele que me leva a valorizar muito a desconstrução, e insiste na diferença, se encontra no começo de um diálogo, e não no final. VERDADE E METODO II OUTROS 25